Dicas Para Quem Gosta De Ler
Segundo Harold Bloom a leitura deve ser a satisfação de interesses pessoais. Uma das funções da leitura é nos preparar para uma mutação de caráter universal. Ele considera a leitura enquanto hábito pessoal, não enquanto prática educativa. Bloom cita Samuel Johnson: “A leitura precisa atender a uma preocupação central, ou seja, algo que nos diz respeito e que nos é útil”.
Ele cita Francis Bacon: “Não leia com o intuito de contradizer ou refutar, nem para acreditar ou concordar, tampouco para ter o que conversar, mas para refletir e avaliar”. A seguir ele cita Emerson: “Os melhores livros levam-nos à convicção de que a natureza que escreveu é a mesma que lê”.
Ao propor uma fusão das citações de Bacon, Johnson e Emerson, ele chega à “fórmula” de leitura: “Encontrar algo que nos diga respeito, que possa ser utilizado como base para avaliar, refletir, que pareça ser produto de uma natureza semelhante à nossa, e que seja livre da tirania do tempo.”
Bacon, Johnson e Emerson chegam ao consenso de que lemos para fortalecer o ego. Para promover uma forma de crescimento que nos proporciona prazer, e que, talvez, por isso mesmo, “os valores estéticos sejam sempre depreciados por moralistas, de Platão aos puritanos de hoje, os que atuam em nossas universidades”.
Fã de Shakespeare (quem não?), afirma que este, mais que Sófocles, é a autoridade máxima no que concerne ao conflito de gerações, e, com mais autoridade do que qualquer outro autor, fala das diferenças entre homem e mulher: “Se nos mantivermos abertos para uma leitura plena de Rei Lear, compreenderemos melhor as origens do que julgamos ser o patriarcado”.
Afirma Bloom que a infância passada diante de um aparelho de tv conduz a adolescência para diante de uma tela de computador, e a universidade recebe alunos que, dificilmente, aceitarão a idéia de que “é preciso sair como se chega [quando for a hora]. A leitura se desintegra e, juntamente com ela, grande parte do ego se esvai.... Se resta à crítica literária hoje em dias alguma função, esta será a de dirigir-se ao leitor solitário, que lê por iniciativa própria, e não segundo interesses que, supostamente, transcendam o ser”.
Passados quatro séculos Shakespeare é mais atual do que nunca. O universalismo de sua dramaturgia, ainda agora original, era atribuído por Borges, citado por Bloom, à grande magnanimidade do Bardo, ao diferencial shakespeariano que Bloom denomina de “sua imensa força cognitiva”.
A leitura de Shakespeare torna nossas mentes mais originais. Há uma entropia na maioria das mentalidades que entram em contato direto ou encenado com sua dramaturgia. Essa entropia pode ser definida como antes e depois dele.
Bloom afirma: “O prazer da leitura é pessoal, não social”. Depende do indivíduo que lê, usufruir dos ensinamentos e da imaginação suscitados e incentivados pela leitura. A fruição é pessoal, como diria Borges: “Um livro que quer permanecer, é um livro que podemos ler de diversas maneiras. Permite uma leitura variável, mutante. Cada geração lê de modo distinto os grandes livros.”
Bloom atesta não ser por acaso que, “para os historiadores (críticos que acreditam sermos, todos nós, predeterminados pela História Social), os personagens literários não passam de nomes impressos numa página”. Ora, se nossos pensamentos não nos pertencem, Hamlet nem sequer pode ser uma lembrança em nossa memória. Na realidade ele quer dizer que, ao lermos Hamlet, cada leitor exercita uma maneira inusitada, pessoal, criativa, de fazer uma empatia pertinente com as demandas do personagem em pauta.
Do contrário, para que ler essa e outras tragédias shakespeareanas?
Se não podemos nos identificar com as controvérsias e os confrontos emocionais, pessoais, sociais, políticos e culturais das personagens? Um leitor tão insensível e irracional não possui as ferramentas da razão e da sensibilidade para fazer sequer a leitura pertinente, inteligente, emocional, de um livro infantil.
Bloom destaca cinco princípios de leitura. A saber:
1°) Livrar a mente da presunção (da vaidade, do desvanecimento, do orgulho). Do discursivo artificial cheio de “clichês”, de um suposto vocabulário artificial acessível apenas aos “iniciados”.
Como poderia uma cultura acadêmica, universitária, “em que a valorização de roupas íntimas femininas da Era Vitoriana substitui a valorização de Charles Dickens e Robert Browning”? Que dizer de uma cultura universitária que tem isso por norma? E é Bloom que interroga: “Como pode uma cultura acadêmica dessa natureza suster a paródia”? Não ser burlesca, ridicularizada, e objeto de uma situação pessoal, acadêmica e social trágica ?
2°) Não tentar melhorar o caráter do vizinho, nem o da vizinhança, através do que lemos e de como o fazemos. O auto-aperfeiçoamento, ele afirma, é por si só um projeto suficientemente grandioso para ocupar todos os nichos da mente e do espírito. Para Bloom, inexiste a ética da leitura. A mente precisa guardar certa cautela, até ser expurgada da ignorância original. Este discente está de acordo com esse posicionamento literário e de fruição estética do autor: Para a leitura jamais haverá tempo suficiente. Os juízos para a conduta e a depuração da condição humana, presumo, precisam servir ao leitor, não à aferição dos procedimentos morais das personagens que lê.
O leitor celebrado por John Milton, considerado por Emerson é aquele (titular do 3° princípio de leitura): “Estudioso de uma vela acesa pelo afeto e pelo gosto de toda a humanidade”. E qual é esse “gosto de toda a humanidade”? Esta resposta se complica, considerando-se que o gosto atual de toda a humanidade está contaminado pelo besteirol de baixo nível (desculpe a redundância) da tv e pelo “tsunami” de imagens e recursos tecnológicos do “marketing” via Internet.
Nosso crescimento enquanto leitores depende de uma nova e inusitada razão, de uma nova e inusitada sensibilidade, que nos forneça as ferramentas de compreensão intelectual, emocional, do mundo globalizado pelo poder das mídias tv e Internet.
Nossos pensamentos e percepções são diariamente influenciados pelos cardeais caducos que estão ditando o poder do alto do trono de suas instituições mofadas, cheias de teias de aranha, com pensamentos saídos das tumbas de uma mente pré-histórica, com formação na universidade cromagnon. A universidade que Bloom menciona no primeiro princípio: “Como pode uma cultura acadêmica dessa natureza suster a paródia”? Não ser burlesca, ridicularizada, e objeto de uma situação pessoal, acadêmica e social trágica ?
Ele recorre a Emerson para definir o 4° princípio de leitura: Para ler bem é preciso ser inventor. A leitura precisa ser criativa. Porém o leitor criativo não nasce da noite para o dia. Ele necessita de criar o condicionamento mental de gostar da leitura. E isso não é tarefa fácil. E o valor mais precioso no sentido de consegui-la, é o tempo infinito que deve estar disponível para a leitura. Não a leitura apressada da academia de letrinhas. Não as leituras de textos laudativos das academias de letras, incentivadoras de coelhos e de outras espécies “literárias” igual e facilmentemente domesticáveis.
Para ler bem, presumo, é preciso inventar a tradução apropriada da imaginação do autor, ou seja, reescrever, reinventar o domínio das atividades psicológicas. Criar sua própria subjetividade a partir dos incentivos mentais das atividades psicológicas dos autores. Inventar-se enquanto leitor, pessoa, indivíduo social e coletivo. Indivíduo que aprende a valorizar a espécie. Que aprende a aprender.
O 5° princípio: Resgatar a ironia. A ironia infinita de Hamlet, as frases de seu discurso são supostamente incoerentes, e realizam uma síntese magnífica do discurso da incoerência que se torna, magicamente, o discurso da coerência. Na realidade seu discurso é o discurso da denúncia de uma realidade apodrecida pelos fatos:
A corte, o rei, a rainha, as instituições, estão todas mergulhadas na criminalidade, no assassinato, na impunidade, na corrupção, na vida gerenciada pelo mal. Não é ele o louco, mas aqueles que o acusam de estar alienado. A ironia é sua ferramenta de combate ao suborno e à perversão generalizada. O sarcasmo fortuito de seu discurso que a todos parece um escárnio. Não é à-toa que Bloom venera Shakespeare.
A ironia nem sempre suscita ou promove a mediação das paixões, as emoções encenadas. Shakespeare sobreviverá a esse nosso tempo e a todos os tempos posteriores. Quer nos detenhamos em um, dois ou em vários aspectos dramáticos de seus cenários, peças, personagens, encenações. Sua dramaturgia é um espelho da condição humana. De todos as épocas. Em todos os nichos da história.
As personagens de um sem número de autores podem desencadear a imaginação, por vezes equivocada, destorcida, de outro sem número de leitores e espectadores. Estes, podem se enredar na imaginação fantasmagótica de larbirintos criados aleatoriamente.
Com a leitura de Shakespeare (segundo Bloom, citando o Prefácio de Johnson), serão eles curados “dos delírios extáticos, ao ler sentimentos humanos descritos em linguagem humana, ao assistir as cenas que permitem ao eremita compreender as transações do mundo, e ao confessor prever o curso da paixão”.
Bloom: “Johnson convoca o leitor a identificar os fantasmas que podem ser exorcizados através de uma profunda leitura de Shakespeare. Um deles é a Morte do Autor; outro, é a asserção de que o ser é uma ficção; outro mais, é a proposta de que personagens literários e dramáticos não passam de caracteres impressos em uma página. Um quarto fantasma, o mais pernicioso de todos, é a proposição de que a linguagem pensa, o leitor não.”
A leitura suscita a libido ou a libido conduz à leitura? De uma forma ou de outra, o leitor articula certa e precaria transcendência, ao ser conduzido pela maré de emoções de personagens dominados pela paixão, pelo arrebatamento dos sentimentos, por emoções exacerbadas, pelo simples, e por vezes pacífico amor. Afinal, os amantes podem se perder, mas o amor não se perderá jamais.
Por que reler os clássicos? Por que são clássicos, ora. Os clássicos da leitura infantil, juvenil, adulta. O leitor que relê é aquele habituado ao condicionamento da leitura desde tenra idade. O ideal seria ler na infância e reler na juventude e, outra vez, na idade madura. Por mais intensa e “completa” que seja a formação literária de uma pessoa, resta sempre um número indescritível de obras que ela não leu. Calvino pergunta, na obra em pauta: “Por que ler os clássicos?”:
“Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídedes levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grande ciclos romanescos do Oitocentos, que são mais citados do que lidos? Na França se começa a ler Balzac na escola primária, e pelo número de edições em circulação, se diria que continuam a lê-lo mesmo muito depois."
"Na Itália, se fosse feita uma pesquisa, temo que Balzac apareceria nos últimos lugares. Os apaixonados por Dickens na Itália constituem uma restrita elite de pessoas que, quando se encontram, logo começam a falar de episódios e personagens como se fossem de amigos comuns.”
Segundo Calvino, ler pela primeira vez um grande livro na idade adulta é um prazer extraordinário. “Na maturidade apreciam-se muitos detalhes, níveis e significados a mais, e os livros constituem uma riqueza inusitada, para quem os tenha lido e amado. Uma riqueza não menor, para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los.”
Em cânones como os de Erza Pound, Harold Bloom, Aldous Huxley, Decio One, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, presume-se que as leituras dos mesmos clássicos precederam a cultura de outros escritores anteriores a eles e de outros mais que os sobrevirão. E todos esses escritores do passado, do presente e do por vir, assim como seus leitores, lerão os clássicos como se fossem uma passagem para descobertas de pontes entre a imaginação pessoal e as melhores criações literárias da espécie.
Homero, Kafka, Dostoisvsky, Turgueniev, Gogol, Dante, Shakespeare, Dickens, Browning, Yeats, H. G. Wells, Borges, Bioy Casares, Dalton Trevisan, Goodnews, Orwell, Sófocles, Eurípedes, Ésquilo, Poe, Proust, Lispector, Jong, Lao-Tsé, Buda, Kafka, Borges, Sun-Tsu, as obras destes autores provocam incessantemente discursos críticos que disseminam seus frutos literários em centenas de milhares de mídias mundo afora. Resulta que há sempre alguém que vê despertada a curiosidade de lê-los pela primeira vez, quando não de relê-los como se fossem novos, inesperados, inéditos.
É necessário não sermos otimistas quanto à disseminação atual deles, exceto via cinema, raramente na tv. Uma vez que estamos vivendo no planeta globalizado pela mediocridade da intenção de seus donos, a meia dúzia de ricaços que fazem a cabeça de bilhões de pessoas através de seus conglomerados de tv via satélite e da mídia do “marketing” Internet.
A literatura e a leitura dos clássicos não estão em ascensão. Ao contrário, estamos vivendo a era da moda que se transtorna em questão de horas. Tudo muito rápido, demasiadamente transitório.
Os clássicos suscitam valores que são comuns e indispensáveis à sobrevivência moral da espécie. E a moral da tv e da Internet, é a inclusão de toda a humanidade nos devaneios da alienação das personagens massificadas, que nada têm a ver com a continuidade dos interesses de sobrevivência do Homo sapiens/demens enquanto indivíduo, sociedade organizada e espécie.
São clássicos os valores que eram ensinados, através dos livros, dos cânones de autores, para persistirem na melhor herança cultural da humanidade. Fazer a espécie sobreviver com dignidade e senso de cidadania. Os clássicos do mundo globalizado são a difusão da prolixidade, a vulgarização das intenções, as mais insignificantes e ordinárias. Quando não o incentivo explícito à prostituição. A exemplo de "11 Minutos".
Hoje, a "cultura clássica" desse tempo de assassinos, é a da disseminação da inconsciência, da ignorância, da banalidade, da criminalidade, da impunidade, do fanatismo pela propagação da platitude irracional pela imagem incestuosa da garota internética, a tirania dos donos das mídias, que fazem a cabeça das pessoas de modo que sua serventia seja, quando muito, a de separar as orelhas, usar shampoo, e outros cosméticos na cara fanatizada pela tirania da programação tvvisiva. Pela vaidade. Pelo entretenimento deletério.
Os internautas navegam num mar de informações onde o descobrimento do site mais recente dos peitos e das bundas, das pegadinhas, são as atrações maiores para uma mentalidade coletiva das cabeças feitas por uma insanidade globalizada sem precedentes.
As cabeças feitas por uma patologia cromagnon que incentiva a cultura do horror, da luxúria e da violência incestuosa que busca a sintonia do próximo clássico da tv, o novo Big-Brother-Brasil Cromagnon, para os milhões e milhões de papais e mamães das salas de aula atentas: as pessoas da sala de jantar fixadas na universidade que realmente vale: a das cabeças feitas pelo horário nobre da tv. Os papais e as mamães das futuras gerações querendo ver a filha Barbie e os pimpolhos fazendo parte da pátria das chuteiras.
Gerações e gerações corrompidas pelos interesses localizados dos favores e dos subornos dos que fazem faculdade visando a "estabilidade" do emprego público. Objetivando uma aposentadoria que mais se parece com a vivência de um mausoléu antecipado.
E os clássicos da literatura? Qual é o cânone pessoal das futuras mãezinhas das salas de aula das academias? Qual será o cânone literário de seus filhos, se é que haverá? E as gerações futuras sem identidade cultural? Quem hoje sabe ou amanhã saberá o que quer dizer "paideuma"?
Quem vai lhes lembrar que um dia existiu Sófocles, Homero, Yeats, Ésquilo, Shakespeare, Burgess, Kerouac, Eurípedes, Dickens, Browning, Garcia Márquez, Cheever, Borges, Faulkner, Dos Passos, Proust, Joyce, Ramos, Rosa, Huxley, Orwell, Drummond, João Cabral, Lygia Telles, Quintana, H. Dobal, Eliot, Pound? E outros. Muitos outros. Quem valorizará, nas universidades, a eterna juventude da literatura? Se grande parte de seus professores sequer aprendeu a ler?