Não sou cozinheiro, sou fazedor de comida!

EU NÃO SOU COZINHEIRO, SOU FAZEDOR DE COMIDA!

Por Carlos Henrique Mascarenhas Pires

É mais do que pomposo ser chamado de “chef”. Uma palavra francesa que determina quem é o líder, o cabeça de uma cozinha. O sujeito que elabora e organiza tudo que será servido num ambiente que serve variado cardápio, inclusive a supervisão de cozinheiros!

Quase ninguém sabe, mas o emprego de “cozinheiro” em lugares de muito destaque, via de regra é supervisionado por um chef. Muito antigamente, o chef era o cara de maior respeito, e ainda o é, mas atualmente, o termo é usado por qualquer profissional de cozinha.

Costumo dizer que nunca fui fã da gastronomia, porque isso é algo que exige muita responsabilidade, tanto de ser um conhecedor, como ser um degustador refinado. Desde adolescente eu sempre tive curiosidade e disposição para preparar minha própria comida; algo que me satisfizesse, que também via de regra, nem sempre estava acessível.

Lembro bem que na minha casa havia um hábito quase diário de servir-nos no almoço bifes de carne bovina ao molho de tomate. Essa forma de apresentar o nosso cardápio, com certeza é uma forma simplificada de exemplificar uma das nossas necessidades a época. Minha família tinha que combinar um orçamento baixo, com a fome voraz de quatro crianças em fase de crescimento, e começando a ficar exigente.

Minha madrasta cortava uma peça de patinho em bifes muito finos. Depois de tirar aqueles nacos finíssimos, ela ainda batia neles com um martelo de carne, para que ficassem macios. Depois preparava um tempero a base de alho, cominho, pimenta do reino e uma pitada de colorífico. Então era passar esses bifes temperados no óleo quente, e quando eles começavam a soltar a água retida na carne, ela punha rodelas de tomates, cebolas e pimentão! – Pimentão?

Eu odeio pimentão até hoje, e acredito que foi por causa dele que eu me vi na iminência de fazer a minha própria comida, sem pimentão é claro! E depois disso, tudo passou a ser um desafio, de combinar o que eu encontrava na geladeira ou no armário, com o que eu podia criar de oportunidade de matar minha fome, e ao mesmo tempo, me fizesse ter prazer em saborear a minha comida...

Eu morava em Salvador, a belíssima capital da Bahia. Banhada por um mar generoso, e que abriga milhares e milhares de excelentes cozinheiras anônimas, especialistas em transformar qualquer fruto do mar em pérolas de mesas frequentadas pelos mais exigentes paladares. E assim sendo, aprendi com certa facilidade a elaborar minhas diferentes moquecas, sem esquecer da paixão antiga pelas cores e aromas do azeite de dendê e do coentro.

Certa vez meu pai teve muita dificuldade financeira, e a única alternativa na família era aderir a uma dieta a base de zigotos de aves, ou o tradicional “zoiudo”, ovo de galinha. Comíamos ovos no café da manhã, no almoço e às vezes no jantar; e por mais que fosse por uma necessidade, eu sempre acrescentava algo para transformar o ovo num prato desigual.

Ovos mexidos com diferentes condimentos simples, que tínhamos a disposição em nosso quintal, faziam de mim um jovem perspicaz, e a cozinha de minha casa, minha zona de conforto. Duvido que muitas pessoas de fora da Bahia, saibam o que é uma moqueca de ovos? Se você curte provocações culinárias, experimente.

Alguns chamam de moqueca, outros de peixada; e todo mundo sabe que a verdadeira moqueca é a baiana; então, quando fizer uma moqueca, seja do que for, delicie-se e a sobra do caldo, guarde no seu refrigerador. Num dia bem inspirado, separe coentro, cebolinha e alho picados. Corte uma cebola e um tomate (sem semente) em rodelas. Sal e gosto, um fiozinho de azeite de dendê, somente para dar sabor. Ponha tudo junto para cozinhar por uns 10 minutos no máximo em fogo baixo, e despeje 3 ovos no cozimento. Desmanche com um garfo os ovos, para que não fiquem inteiros, e quando eles solidificarem, está pronta a as Moqueca de Ovos; simples, deliciosa e nutritiva!

Mas fazer comida e deliciar-se com o resultado não se resume a algumas receitas com ovos e bifes ao molho sem pimentão. Quando você passa a acreditar que já pode fazer a sua própria comida com a maestria que você mesmo exige, então inicia-se a fase de pesquisa para conhecer técnicas, mesmo que simples; novos temperos e seus bálsamos, outros tipos de carnes, diferentes aplicações de temperaturas. É nessa hora que até pensei que eu fosse ou quisesse ser um chef, mas na verdade, descobri que eu queria mesmo era ser um fazedor de comida!

Tradicionalmente quem sempre fez comida na minha família são as mulheres. Eu cresci vendo tias, avós e outras agregadas da família junto aos diferentes fogões, e quando o assunto era reunião da parentalha na sede da centenária fazenda, a cozinha fervia de gente e aromas.

Essa coisa de preparar o desjejum, confesso que nunca foi o meu forte, mas via que a mesa da fazenda sempre esteve recheada de iguarias regionais. O leite produzido por lá, além de misturar o café, era usado com fécula de milho no vapor (cuscuz), ou com arroz, ou puro, ou ainda, dava lugar a coalhada, manteiga e requeijão. Associe tudo isso com uma variedade de biscoitos, pães e ovos, para que fosse servido o café da manhã para dezenas de pessoas, em épocas festivas.

Tudo isso que fez parte da minha infância, de fato me fez associar alguns ingredientes para meus futuros pratos, mas o café da manhã, confesso que prefiro comer, nunca o fazer. A minha hora preferida é o almoço, e em algumas ocasiões, o jantar também pode ser feito uma verdadeira festa.

O que eu quero comer amanhã, prefiro deixar preparado, ou quase isso, no “hoje”. Eu sou daqueles que ainda acredita que os temperos entranham mais nas carnes, no dia anterior; então, prefiro elaborar meu prato de amanhã, com paciência, bebendo um uísque enquanto inicio o processo primário, porque no dia seguinte, já tenho tudo provado, como ponto do sal e ingredientes de emergência, se houver necessidade.

Enquanto estou escrevendo esse artigo, no dia 16 de dezembro, às 22:31h, já imagino o que farei amanhã, para o almoço de domingo. Eu quero comer churrasco de cordeiro, com farofa molhada e vinagrete, mas o tempo chuvoso ameaça a minha churrasqueira que fica em local descoberto; portanto, já tenho o Plano B, que é um Bacalhau à Gomes de Sá. Vou esperar até à meia noite para planejar, e seja um ou outro, preciso retirar do freezer e organizar os ingredientes, principalmente se for o bacalhau.

Se eu tivesse que adotar o rótulo de chef, com certeza diria que sou meu “personal chef”, porque prefiro fazer comida para mim e para meus filhos, mas já arrisquei fazer comida por muitos lugares por onde passei nesse meio século de vida!

Certa vez eu estava sem fazer nada e fui para um dos lugares mais exóticos do Brasil, a Chapada Diamantina. Por lá, fiz alguns amigos e num hotel de requinte, onde eu estava hospedado, resolvi fazer pizzas. Era para ser uma brincadeira ingênua de fazer uma massa fina tradicional, colocando alguns ingredientes locais que havia na cozinha do hotel. Na sala de espera, alguns amigos e o dono do hotel; e quando eu cheguei com o primeiro disco de pizza, com mussarela de cabra, banana verde amassada e charque desfiada, foi uma verdadeira algazarra; e depois de várias outras pizzas diferentes, fui chamado numa sala, onde havia alguém a minha espera para elogiar a primeira receita. Era ninguém menos que o Governador do Estado.

Também já fiz comida para mim e para amigos em vários outros países, como Líbano, Portugal, Estados Unidos da América, Argentina, Uruguai, Marrocos e Espanha. Quando eu viajo, sempre tento conhecer uma família que me proporcione o prazer do comer algo bem intrínseco ao lugar; de preferência na casa dessa família, e se me derem chance, cozinho para eles. No Líbano, fiquei na casa da família de um amigo, e por lá, cheio de brasileiros e muitos carneiros, não foi difícil tentar fazer uma espécie de buchada de bode.

Em Portugal, Estados Unidos e na Espanha, também na casa de amigos, e com muita facilidade de ingredientes brasileiros, fiz a nossa tradicional feijoada, com direito a tudo que servimos aqui, como couve refogada e farofa de farinha da Bahia...

Depois da necessidade de fazer comida, como para sobreviver; elaborar um prato e executá-lo com a devida maestria é um dos maiores prazeres de quem aprecia todo tipo de culinária. Cozinhar nasceu da necessidade, e a gastronomia também, mas outra necessidade: a do homem sentir prazer na cozinha, deliciando-se de tudo aquilo que lhe remete ao mais puro, sublime e sincero deleite!

Quem faz comida, e gosta, não precisa de jaleco branco, chapéu fanfarrão ou bandeiras na gola para mostrar o quão o é importante. Quando nós, os fazedores de comida, paramos para criar um sabor, o que mais queremos é tirar o máximo de proveito daquele prato, e esse proveito vai muito mais além do que saciar uma fome simplória!

O fazedor de comida gosta de cultivar sua própria horta, e se por acaso não pode, ele ama ter seu mini empório com o máximo de especiarias que ele pode comprar. O fazedor de comida que é apaixonado pela baixa culinária, regozija-se até quando erra, porque quem ama fazer comida, raramente faz com que um erro faça seu prato ir para o lixo!

Relatos históricos afirmam que um dos maiores gênios da humanidade, Leonardo Da Vinci, era tão apaixonado por cozinha, que produziu um esmagador de alho, regras de etiqueta a mesa, e foi sócio de um restaurante em Florença, sendo um desbravador da nova cozinha francesa.

Qualquer pessoa pode ser um chef ou um fazedor de comida. O que não pode ocorrer jamais para se obter um prato digno de elogio é preguiça e afobação! Esse negócio de chegar em casa às 12:15h e ter que voltar para o trabalho às 13:30h, e no meio desse tempo elaborar um prato, pode funcionar uma vez em um milhão e com muita sorte; mas, via de regra, a convergência é dar errado.

Eu não acredito nem adoto qualquer tipo de preceito para fazer comida, e provo que a única regra é comer! Sabemos que podemos cozinhar sem fogo ou calor. Sabemos que podemos comer sem cozinhar. Muitos comem carne, muitos são veganos. A maioria come isso, a minoria não come aquilo; mas todos, indiferentemente de cor, credo, raça, futebol ou religião, tem que comer alguma coisa, e de preferência, alguma coisa que satisfaça seu paladar; portanto a única regra é escolher o seu alimento e comer, e todo o restante que compõe a culinária moderna, fica a cargo de cada sociedade onde você pretende comer ou cozinhar.

Na primeira vez que fui a França, apaixonado por várias das suas histórias, cheguei no Sul daquele país e fui visitar os Castelos Cátaros, porque eles falam muito do meu “eu místico”. Em Carcassonne, cidade das mais lindas da Europa, conheci alguém, num lugar bem peculiar, que me falou sobre uma ordem muito antiga e secreta, de homens místicos fazedores e apreciadores da boa comida, a Ordem Agathopedes. O tema me caiu duplamente interessante, e desde então, busco encontrar receitas, histórias e uma chance de acessar a távola dessa que parece ser lenda, mas que verdadeiramente lapida homens para que esses produzam a apaixonante comida que todo homem polido merece.

Muita gente diz que o resultado de um bom prato é uma alquimia. Cada vez mais eu escuto e leio pessoas que se dizem críticas de culinária, falando sobre a alquimia de transformar uma série de alimentos, num prato apetitoso. Metaforicamente, sim, podemos dizer qualquer coisa que justifique o produto de misturas, fusões ou cozimentos, rotulando o final de um bom prato, mas o mais perto que cheguei da Ordem Agathopedes, quando falei com um mestre Grande Caçador Real, a respeito da dita “alquimia alimentar”, ouvi dele que no máximo, a boa comida se associa ao mais brioso remédio que alonga a vida, ou a prática de Albedo, ou Operação Branca, mas isso não é tema de quem faz comida!

Alguma vez você já experimentou fazer um cuscuz? Ao menos você sabe o que é um cuscuz?

O primeiro registro de um cuscuz foi descoberto por berberes africanos num livro do Século XIII, que possivelmente já havia estado na Síria. A receita fala de uma mistura de sêmolas de cereais, sobretudo de trigo, que deve ser humedecido e amassado com as mãos, para depois cozinhar no vapor, e finalmente ser associado com inúmeros tipos de carnes cozidas e vegetais. As mais tradicionais são a de carneiro e frango, mas também cai bem somente com vegetais, peixe ou com frutas secas.

Tradicionalmente, no Nordeste do Brasil, o milho sempre foi um alimento excelente e barato, e por essas qualidades, lançamos a nossa versão do cuscuz, com sêmola de milho. Em minha casa, uso sempre uma espécie de milho em flocos, mas o mais comum é com farinha refinada de milho. O nordestino come cuscuz no café da manhã com ovos, manteiga ou com leite, substituindo o pão. Também come no almoço, via de regra em substituição do arroz; e no jantar, come-se cuscuz com qualquer coisa, inclusive puro!

Para se fazer um cuscuz precisa-se de uma panela específica chamada cuscuzeira, mas se você não tiver, há duas formas fáceis de fazê-lo. Primeiro é com a panela que todo mundo tem, que uma encaixa na outra e no meio há furinhos que servem como escorredor; e a segunda é com um pano limpo.

Sabe aquele cozido de frango que sobrou do almoço? Reserve ele! Umedeça levemente com meio copo americano de água, duas xícaras de café de fécula de milho, em flocos ou refinado. Adicione uma pitada de sal, amasse com uma das mãos e deixe descansando por 20 minutos.

Se tiver em casa a panela que se encaixa e é furadinha, despeje o cuscuz descanado, pressionando levemente com uma colher para ele se amoldar a panela. Na parte baixa, ponha duas xícaras de água, ligue o fogo baixo, ponha a parte que se encaixa por cima, tampe e deixe cozinhar por 15 minutos após a fervura. Com cuidado, vire a panela num prato e está pronto o seu cuscuz.

Se não tiver a dita panela, ponha a massa num pano limpo, pressionando para ele se amoldar. Estique o pano numa panelinha com água embaixo, sem deixar molhar o pano. Tampe a panela e deixe por 15 minutos de fervura, e está prontinho seu cuscuz artesanal!

Desenformado, ponha o frango cozido por cima, ou faça um caldo de legumes, ou frite ovos, ou ponha manteiga! Invente! Você é capaz! Se se errar, tente mais uma vez! No final, você ficará orgulhoso da sua invenção; sabendo que ela é somente sua!

Fazer comida é uma arte. Fazer comida para os outros é algo indescritível, merecedor de medalhas de honra. Eu faço comida para mim, para minha família e para alguns amigos; e me orgulho de ser mais uma FAZEDOR DE COMIDA!

CHaMP Brasil
Enviado por CHaMP Brasil em 17/12/2017
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