Degustação às cegas?

Não surpreendo mais ninguém quando o assunto é gastronomia. Apesar de ser repetitivo, tenho ainda muito prazer em escrever sobre os eventos que ainda se revelam com qualidade e requinte gastronômico.

No dia 21 de outubro deste ano, presenciei um encontro entre o Restaurante Piantella (Brasília) e o Enólogo Eng. Paulo Laureano (Portugal) com jantar patrocinado pela Adega Alentejana.

O Piantella tem parceria com a importadora e distribuidora Expand que, para nós consumidores da bebida dos deuses (Dionisio ou Baco), resulta num grande atrativo quanto a qualidade e preço. Ninguém merece pagar o dobro ou mais por um vinho em restaurantes inescrupulosos, sem respeito ao deguste e com muito afinco ao dinheiro dos frequentadores. Em Brasília é mais complicado ainda, porque é o único lugar do mundo onde se têm contas caríssimas nos restaurantes e são pagas em espécie (o cartão de crédito não é confiável na maioria dos casos!).

Chegamos, minha esposa e eu, juntos com um casal de amigos ao andar superior do restaurante, reservado para exposição de vinhos e com uma grande mesa, aproximadamente com 20 lugares, já preparada para a recepção dos convidados. Antes de ocuparmos nossos lugares, fomos servidos com espumante nacional. Um passo ligeiro para o início do evento.

Acomodados à mesa, fomos apresentados à personalidade agradável e muito simpática do português Eng. Paulo Laureano, enólogo premiado da Paulo Laureano Vinus, proprietário de uma pequena vinha localizada no Alentejo, junto a Évora e também de alguns hectares de vinhedo na região de Vidigueira.

Passado as apresentações e os discursos originais sobre o amor pelo trabalho e pelo vinho, complementado pelo desprezo ao dinheiro e a paixão pela terra e vinhas, chegamos ao início do que realmente interessa ao gourmet: comer e beber!

A entrada foi com Polpettine (italiano?) de Bacalhau com Amêndoas e Mini Salada, prato discreto e sem pretensões, mas bem feito e saboroso acompanhado do vinho Dolium Escolha Branco 2009. No vinho a grande surpresa: 100% da casta Antão Vaz, novidade agradabilíssima para todos os presentes no evento. Sabor refrescante, aromas complexos e muito untuoso. A uva Antão Vaz é autóctone, de sabor único, sem parâmetros. Vinho fácil de se beber e de muita personalidade. As explicações para a untuosidade veio do processo “batonnage” (do francês baton, haste ou vara), que significa a técnica de recolocar em suspensão as leveduras mortas que se depositam no fundo do tanque ou do barril após a fermentação, aumentando a untuosidade do vinho e a complexidade no sabor. Coisa de francês, particularmente Alsácia e Borgonha. Tomamos um grande vinho, maravilhoso e totalmente desconhecido no mercado brasileiro.

Antes de continuar a descrever a sequência dos pratos e a devida harmonização, gostaria de abrir um parênteses sobre as degustações às cegas que tanto ouvimos falar. Na realidade, degustação às cegas não se refere somente aos vinhos, a complexidade do assunto vai bem mais longe. Você vai ao evento com poucas pessoas, todas vão beber muito e você não conhece ninguém. Então prepare-se porque “in vino veritas” sai de tudo e todos os lados. E com o avanço do evento a empolgação toma conta da mesa e você que honestamente estava lá para degustar é obrigado a aguentar a alegria descontrolada e, às vezes, a inconveniência dos seus companheiros de mesa. No nosso caso especificamente, tivemos um orador oficial, representando todos os presentes, que não parava de falar. Apresentou seu colega como bebedor de vinhos somente de Borgonha (constrangimentos à parte) e disse, com grande conhecimento, que os brasileiros gostavam de vinhos mais fáceis, mais leves e mais fracos para se beber, contrariando a hierarquia com que foram servidos os vinhos, apreciando mais o primeiro vinho tinto do que o segundo. O Eng. Paulo Laureano, sempre muito simpático, aguentou os horrores da ignorância do nosso orador com um sorriso sob o bigode retorcido à moda portuguesa. Não se contentando em opinar sobre os vinhos, nosso representante divagou sobre os povos asiáticos, africanos e árabes, referindo-se as influências genéticas sobre o paladar, desconsiderando que gosto se discute e é uma questão de educação e cultura. A insistência em falar, aos poucos desinteressou os convivas. Ao primeiro sinal de incômodo, nosso voluntário eleito sem voto, levantou-se e bateu na garrafa com um talher para chamar nossa atenção. Fez um convite a todos presentes para visitar seu lindo sítio, tomarmos vinho e ouvirmos os pássaros, a poucos quilômetros de Brasília.

Não foi a primeira vez que um bêbado convidou-me para uma festa na casa dele no dia seguinte.

Voltemos ao jantar, segundo prato: Raviole de Coelho com Molho Rústico acompanhado do Dolium Reserva Tinto 2007.

O Piantella é um restaurante de cozinha internacional, mas tem uma queda especial pelos pratos italianos. O Raviole estava divino, o recheio de coelho perfeito e molho rústico com pedaços de tomates foi maravilhoso, desde já parabéns aos chefes Pallito e Aline. O vinho tem o corte característico do Alentejo com as castas Alicante Bouschet e Trincadeira (na Espanha chama-se Tempranilo). Vinho de pequena produção (6.000 garrafas), bastante aromático, refletindo o feliz blend da Alicante com a Tempranilo.

O grande sonho do Eng. Paulo Laureano é fazer das castas portuguesas autóctones (com exceção da Alicant Bouschet, aportuguesada), a identidade do vinho de Portugal e torna-las conhecidas pelo mundo através, é claro, da boa qualidade dos seus vinhos, resultante da paixão e cuidado com a vinha, somado ao terroir e a tecnologia na fabricação.

Ainda no segundo prato foi nos apresentado o Paulo Laureano Selection Tinta Grossa 2006, grande vinho varietal da uva Tinta Grossa, exclusividade do Alentejo. É isso mesmo, só existe lá. Vinho de forte presença, taninos controlados, redondo e pela acidez viva promete que ainda tem mais tempo. Quem guardar saberá porque estou dizendo isso. Este vinho deverá ser conhecido no resto do mundo. Combinou perfeitamente com o prato, apesar do molho rústico normalmente competir com vinhos intensos, dúvida do próprio produtor que confessou sua insegurança na harmonização. Foi ótimo.

Estamos no quarto vinho, o terceiro prato a caminho. Vocês tem ideia da gritaria generalizada à mesa? Minha esposa particularmente foi agraciada com uma companheira ao lado direito da sua cadeira (eu estava no lado esquerdo), que de uma hora para outra ficou amiga de todos e, como a proximidade e a simpatia natural da sua personalidade, extraiu da nova amiga abraços cada vez mais fortes, comemorando as coincidências nas opiniões e ou qualquer outro fato que o álcool não a fizesse se levantar e abraçar minha mulher. Tentamos a todo custo, o casal de amigos e eu, puxar minha mulher para uma conversa mais restrita geograficamente, mas foi impossível conter os ânimos da sua vizinha. Chamamos o garçom e pedimos mais atenção na água mineral, estávamos precisando muito, inclusive a vizinhança. Esperei que o segundo prato viesse com uma porção mais generosa, quem sabe comendo-se mais, diminui-se a bebida.

O grande vinho da noite, bastante aguardado, apesar das grandes surpresas dos anteriores, foi o Paulo Laureano-Laura Regueiro Velho Mundo VI 2007, servido para acompanhar o segundo prato – Cubos de Carne na Cerveja Escura com Polenta Cremosa. Nós, meros curiosos nos assuntos de vinho, já vimos associações entre vinicultores de países diferentes. Os americanos e franceses fazem comumente parcerias bem sucedidas nas Américas na Argentina e Chile, por exemplo, temos chilenos, americanos, franceses, espanhóis, australianos, entre outros, com sociedades felizes com a troca de conhecimento e resultando geralmente em bons vinhos. Mas eu não conheço nenhuma parceria relevante entre conterrâneos franceses, espanhóis e italianos. Agora a iniciativa em Portugal de juntar a experiência do Douro com as do Alentejo, é fato marcante e promissor na história do vinho. Das regiões concorrentes nasce uma sociedade que reúne o melhor delas. Os frutos dessa união presenteiam os amantes do vinho. É inédito o blend, Alicante Bouschet, Tinta Grossa, Tinta Roriz, Touriga Franca e Touriga Nacional. É emocionante como a paixão pela vinicultura supera, e muito, a imaginação de todos. Desta obra prima vieram apenas 150 garrafas para o Brasil, de uma produção de 2.000.

Para fechar o jantar, depois de recuperarmos um pouco a consciência com água mineral, a sobremesa nos foi servida. Mousse de Nutella acompanhada de um porto 10 anos (Burmester). Foi o único momento que o lenço caiu da mesa e tivemos que comentar muito discretamente que houve uma desarmonia entre a qualidade da sobremesa e a qualidade do porto, perfeito é claro. De resto, esses eventos são sempre divertidíssimos. Parabéns ao Piantella e ao engº Paulo Laureano pela elegância do evento.

puccinelli
Enviado por puccinelli em 07/12/2011
Código do texto: T3377073
Classificação de conteúdo: seguro