Comida de hospital (Parte II)

Dando braçadas e caneladas a revelia, finalmente alcançamos a tal plataforma vinte e sete, depois de transitar perigosamente por entre os ônibus estacionados nas plataformas que se interpunham entre nós e a nossa tão querida e desejada plataforma vinte e sete. (O raio do número da plataforma ficou tão impregnado na minha mente que andei sonhando com o dito durante dias...) Nela, na tal plataforma, vimos um ônibus da Viação Motta estacionado: Eliana, deduzindo que se tratava do nosso ônibus, já que estávamos em cima da hora, deu um daqueles piques de corredor de cem metros rasos (Se bobeasse, ela cravaria um novo record mundial...) e se plantou na entrada do coletivo. Foi atendida imediatamente por dois bondosos funcionários da empresa, que gentilmente lhe informaram que aquele veículo era o das vinte e uma horas, sendo que o nosso ainda demoraria em torno de uma hora para partir.

Quando esperei que Eliana fosse ter uma crise de nervos, (justificadamente, aliás, visto que corremos tanto para não nos atrasarmos...) vi um sorriso de satisfação iluminar o seu belo rosto e ela me dizer toda feliz:

“-Amor, agora eu posso ir ao banheiro. Tem um bem bonitão bem ali em frente...”

Dei um suspiro de alívio e tratei de arrumar nossas bagagens o melhor possível, em razão de cada centímetro de espaço ser de importância vital para os milhares de passageiros que compartilhavam aquele exíguo espaço do Terminal da Barra Funda.

Durante o tempo em que ficamos ali, (Mais ou menos uma hora e vinte minutos.) vi mais partidas de ônibus do que jamais havia pensado antes: a cada cinco minutos encostava um ônibus diferente, menos o nosso. Pensar em sentar seria um despautério, dado o tremendo acúmulo de pessoas naquele recinto. Eu, de forma sorrateira, fui me encostar num balcão aonde um funcionário da Motta fingia organizar as partidas dos ônibus, e assim que voltou do banheiro, devidamente perfumada, Eliana se postou ao meu lado.

Depois de alguns minutos de pé e cercada por um verdadeiro mar de gente que parecia não ver um banho há semanas, vi que Eliana começava a fraquejar, a cabeça já pendendo em cima de meu ombro. Olhei então para a minha amada mala de viagem, companheira fiel de várias e épicas jornadas: sem outra saída a vista, ajeitei a maleta e acomodei os sessenta e um quilos de Eliana em cima dela, torcendo febrilmente para que a valente maletinha não se desconjuntasse ali mesmo.

Perto de mim estava um rapaz querendo embarcar com o seu filho para Presidente Prudente. Como soe acontecer com os rapazes imprudentes, esse meu incidental companheiro de infortúnio havia esquecido os documentos que comprovavam a sua paternidade do garoto em questão. Teve então o moçoilo, o tal imprudente que queria viajar para Presidente Prudente, de convocar a mãe do menino para assinar a autorização de viagem. O fato é que os dois dividiam o mesmo balcão em que eu me apoiava para gastar o tempo até a hora da partida, o que me propiciou o acompanhamento de um diálogo no mínimo curioso:

“-Coloca aí o meu nome: Paulo de tal...”

“-Repete de novo que eu não entendi direito”. Disse a mãe do garotinho.

A tal autorização de viagem estava sendo preenchida com uma caneta que eu emprestara para a mãe da criança, já que os dois não tinham nenhuma caneta em mãos, o que me permitiu estudar de perto as expressões daqueles dois seres que haviam gerado um filho e nem sequer sabiam direito o nome um do outro.

Já perto das onze horas da noite, Eliana confortavelmente instalada em minha mala de viagem, encosta na plataforma vinte e sete, aquela, um ônibus portentoso com destino a Dourados. Achamos imediatamente que seria o nosso, e já começávamos a comemorar quando o solícito funcionário da Motta (O mesmo que continuava fingindo organizar as partidas, completamente deixadas ao deus-dará) nos avisou que o nosso ônibus seria o próximo. O primeiro ônibus, aquele em que sonháramos embarcar, tinha o sugestivo nome de “Fofinho” pintado em suas laterais, e, para nossa enorme decepção, aquele em que viajaríamos (Assim que encostou, o monstrengo, muito parecido com um mamute, nos olhou com cara de poucos amigos...) com muita boa vontade, quando muito, poderia ser chamado de “Sujinho”.

Sob os nossos olhares expectantes o “Sujinho”, apelido carinhoso que lhe pespegamos de comum acordo, finalmente adentrou a plataforma vinte e sete do Terminal Rodoviário da Barra Funda, sendo que nós dois fomos os primeiros jubilosos passageiros a subir naquela coisa antediluviana que a Viação Motta dava o pomposo nome de ônibus interestadual. Lá dentro, longe de ouvidos indiscretos, instei com Eliana para que fizesse uso do banheiro do ônibus de imediato, coisa que eu também faria logo em seguida, avisando-a, já escaldado por trágicas experiências anteriores, de que em pouco tempo ninguém que tivesse amor a vida entraria naquele recinto. Ela ainda quis resistir, alegando que havia ido ao luxuoso banheiro do Terminal há pouco tempo, mas, finalmente cedeu a minha argumentação.

Por volta das onze horas da noite, com mais de uma hora de atraso, o “Sujinho” começou a se mover lentamente para empreender o caminho em direção a Dourados, em pleno coração do Mato Grosso do Sul.

Conforme as minhas mais funestas previsões, nem bem o “Sujinho” começou a pegar a Via Anhanguera, um sujeito de péssima catadura (E tresandando um bodum pior ainda...) entrou no banheiro. O resultado da sortida do tal sujeito da catadura ruim só veio à luz quando o próximo usuário, (ou melhor, usuária, já que era uma mulher, coitada...) deu o alarme:

“-Quem foi o porcalhão que fez essa imundície aqui???”

A pobre infeliz só obteve um sepulcral silêncio como resposta ao seu lamentoso repto.

Claro que ninguém, em sã consciência, (E muito menos o autor da proeza...) iria assumir a autoria da façanha de ter emporcalhado o banheiro do já castigado “Sujinho”.

Menos mal que as janelas do “Sujinho” eram passíveis de abertura, um paliativo para o mau cheiro que vinha daquele antro de sujeira em que se transformara o banheiro do “Sujinho” a cada vez que algum desatento passageiro tentava usá-lo.

(Vai continuar)

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 04/05/2011
Reeditado em 08/08/2018
Código do texto: T2949605
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