Comida de hospital
Quando nós resolvemos ir para Dourados, cidade do Mato Grosso do Sul, no feriado prolongado da Semana Santa católica de 2011, tínhamos a inocente perspectiva de lá encontrar uma grande variedade de peixes para degustar nas sortidas gastronômicas que planejávamos fazer por lá – afinal, os dois estados homônimos, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, sendo que o primeiro foi originado de um desmembramento do segundo, são tidos e havidos como grandes celeiros de pescado fluvial.
Foi com essa expectativa em nossas famintas cabecinhas que enfrentamos com galhardia uma maratona de dar inveja a Fedípedes, o legendário mensageiro de Maratona, a começar pela inesperada (Pelo menos para Eliana e eu, dois notórios cabeças de vento.) multidão que queria viajar para São Paulo na quarta-feira da dita semana acima já referida, dia que escolhemos para embarcar para São Paulo, aonde pegaríamos o ônibus da Viação Motta no Terminal da Barra Funda.
Quem quase afundou foi o barco de nossa projetada viagem, pois parece que todo mundo havia tomado a resolução de viajar no mesmo horário que nós queríamos. Eu já estava quase a arrancar os parcos cabelos de minha cabeça oca, ao descobrir que só havia passagens para São Paulo duas horas antes do horário marcado para estarmos no terminal paulistano para embarcar no ônibus que nos levaria a Dourados.
Encenei então o meu melhor momento canastra junto ao funcionário da Viação Pássaro Marrom, que condoído com a minha desesperada carantonha, me segredou uma possibilidade - remota, é bem verdade - de embarcar antes da hora marcada em nossas passagens: teríamos de convencer o motorista do ônibus que estava partindo dentro de quinze minutos, no qual restavam algumas poltronas não ocupadas, a nos leva para São Paulo.
Lá fomos nós, Eliana a arrastar a minha carcaça desalentada pela rodoviária de São José dos Campos, em direção a plataforma de embarque.
Primeiro susto: em hipótese nenhuma eu conseguia encontrar os fugidios bilhetes que nos daria acesso à famigerada plataforma com um cabalístico número que eu não conseguia lembrar. Eu os havia guardado tão bem que nem aquela famosa oração de São Longuinho conseguia trazer aqueles preciosos bilhetinhos de volta a vida. Foi aquele fuzuê: Eliana fazendo beicinho, e eu, todo sem jeito, atirando todas as coisas com que ia me deparando (Uma infinidade delas, do tipo: figurinha carimbada do Franz, inesquecível goleiro do Olaria do Rio de Janeiro; um anel de coco dendê comprado numa feira de quinquilharias de Porto Seguro, o meu inseparável time de futebol de botão, campeão de várias etapas dos campeonatos que eu mesmo organizava e outras tantas preciosidades que a gente não pode deixar para trás sob nenhuma justificativa.) no chão da rodoviária, na desesperada tentativa de encontrar os fatídicos bilhetinhos.
Folheei a minha carteira vezes sem conta e nada de tropeçar com os tais bilhetes para passar na catraca eletrônica, igualzinha àquelas do metrô, enquanto a ampulheta do tempo corria célere – dos quinze minutos iniciais que eu tinha, oito já havia ido para o espaço. Foi quando, após recorrer a todas as mandingas possíveis e imagináveis, só faltando plantar bananeira no meio de todo aquele povaréu, uma repentina ordem do Além fez com que uma de minhas mãos derrapasse na entrada de um dos muitos bolsos dessas modernosas calças de hoje, (Calças que Eliana insistiu que eu deveria usar para a viagem, jurando por todos os santos que a tal me caía muito bem. (Embora o espelho insistisse em me dizer o contrário...) E na é que lá estavam, hibernando sossegadamente, os dois bilhetes que nos dariam acesso a plataforma de embarque para São Paulo? Calma: eu murmurei para mim mesmo, não era hora para festividades prematuras; ainda nos restava convencer o motorista do ônibus a nos levar antes da hora marcada em nossas passagens.
Depois de um rápido conciliábulo particular resolvemos tirar a sorte (Ou o azar, a depender da perspectiva de quem olha...) para ver quem teria a tarefa de se debulhar em lágrimas para conseguir antecipar a nossa ida para a capital dos bandeirantes. Se desse ímpar, eu ganharia; par, Eliana perderia e seria ela (Claro, a ostentar o seu melhor sorriso...) a corromper o motorista para que nos deixasse embarcar antes do prazo fatal.
Segundo susto: a nossa maré de encrencas mal parecia estar começando, a julgar pelo que vimos quando chegamos a tal plataforma - um fornido exército de ônibus a esperar seus passageiros, (Os que haviam, milagrosamente, conseguido comprar as suas passagens para o horário das 18.30 hs, o mesmo que nós almejávamos.) sendo que, logo ao lado, um outro bando de humanos sedentos por viajar esperava para suplicar uma redução do seu tempo de espera. Ou seja: todo mundo queria viajar ao mesmo tempo.
Eliana, lembrando-se dos seus tempos de muvuca na faculdade, distribuiu algumas cotoveladas prá lá e prá cá e se aproximou, como uma verdadeira ladie, do motorista visado para o nosso embarque, armada com as nossas duas passagens para o Mato Grosso do Sul. Sem ter mais o que fazer, olhei nervosamente para as horas que o celular marcava: 18.15 hs - o tempo continuava a correr vertiginosa e insensivelmente contra nós, já que o nosso ônibus sairia da Barra Funda às 21.30 hs da noite. Nem ouvi direito a peroração que Eliana fez: apenas percebi que em volta dela o bando de querelantes também falava, quase todos ao mesmo tempo, procurando embarcar naquele veículo salvador.
Depois do que me pareceu ser uma eternidade os passageiros, primeiros os regulares, começaram a entrar no ônibus, cada um ostentando o ar de quem havia acertado no milhar do jogo do bicho sozinho. Educadamente, Eliana e eu, nos infiltramos na primeira fila dos pedintes, mercê de alguns empurrões para abrir caminho, e fomos os primeiros a entrar no que nos pareceu ser a Arca de Noé. Para premiar o nosso esforço ainda conseguimos sentar os dois juntos, o que nos vinha como um imenso e alentador presságio de boa sorte.
Deixando para trás uma quantidade enorme de gente que não havia conseguido embarcar, o nosso passaporte para o Éden mato-grossense começou a se mover em Direção a São Paulo, nos deixando com a sensação de que o pior havia passado - o nosso ônibus, depois de tantas escaramuças, finalmente pegou a Rodovia Ayrton Senna e uma hora e meia depois adentrava o Terminal do Tietê, sem mais nenhuma ocorrência digna de nota.
Descemos do ônibus e fomos para o piso superior do terminal em busca do metrô que nos levaria a estação da Praça da Sé, aonde faríamos integração para o Terminal da Barra Funda. Qual não foi o meu espanto ao me deparar com mais uma imensa fila (Mais parecia uma daquelas procissões nordestinas a agradecer por algum milagre conquistado.) para a compra de tickets para o metrô: de novo o medo de não chegar a tempo na Barra Funda voltou a tomar conta de mim.
Como a fila parecia não ter começo e nem fim, ocupamos um lugar que me pareceu vago no meio dela, (mesmo sob os olhares assassinos de quem ficou um pouco para trás de nós...) e quinze minutos depois estamos embarcando num dos vagões do metrô para a estação Sé.
Depois de fazermos a integração com o metrô que vinha da estação Corinthians-Itaquera seguimos em direção ao Terminal Rodoviário da Barra Funda, tão apinhado de gente que mais parecia uma gigantesca feira livre. Fomos até o guichê da Viação Motta e validamos as nossas passagens, já que as havíamos adquirido pela internet. Eram nove horas da noite de quarta-feira, restando 45 minutos de intervalo para nosso embarque, e só então é que fomos respirar aliviados – havíamos conseguido chegar a tempo para a nossa viagem.
Cumprimentamo-nos efusivamente, como uma dupla que conseguiu um strike no jogo de boliche. Como tínhamos tempo de sobra Eliana resolveu fazer uso dos sanitários do terminal antes do inicio da viagem. Entramos na fila, eu para dar apoio moral a ela, claro, visto que pretendia usar o banheiro do ônibus antes que este começasse a rodar.
Como se parecesse pouco, o tamanho da fila para usar o banheiro feminino do Terminal Barra Funda não ficava nada a dever as anteriores que já havíamos enfrentado. A fila, emperrada, não andava de jeito nenhum. Dei uma olhada de soslaio para Eliana e vi o desalento se instalar no rosto dela... Mais de vinte minutos de fila e umas trinta mulheres ainda se postavam heroicamente à sua frente, esperando a vez para entrar nos tão sonhados sanitários. Paradoxalmente, a fila masculina estava vazia, o que me fez mensurar que as mulheres levam bem mais tempo usando os sanitários do que nós, os habitantes deste prosaico mundo masculino, por razões que creio mais do que óbvias.
Quando faltavam quinze minutos para o horário marcado para embarcarmos Eliana desistiu de fazer uso do banheiro, assustada com a eminente possibilidade de perdermos o nosso ônibus. E lá fomos nós de novo a nos embarafustar no meio do povaréu para chegar até a nossa plataforma, a de número vinte e sete. Entre nós e o objetivo desejado um mar de gente se interpunha, colocando, mais uma vez, à prova, a nossa capacidade de furar bloqueios humanos. Olhei para cima e constatei que o número escrito na plataforma era o Cinco, faltando mágicos vinte dois números para chegarmos até o local pretendido. Eu fui a frente, abrindo alas para Eliana, a lembrar os tempos em que pegava um facão e ia desbravando matas nas caçadas que fazia; entre tantos incidentes menores (Como uma referência nada recomendável às reputações das mútuas genitoras de quem empurrava, e de quem era empurrado também...) escutei uma mulher bradando aos céus como se tivesse perdido um filho:
“-Minha passagem!!!”
“-Cadê minha passagem???”
Deduzi que a infeliz mulher deixara cair a sua passagem entre os milhões de pés que superlotavam aquele Terminal, que à essa altura mais parecia um manicômio.
(Vai continuar)