Greve geral
Primeiro foi o Panga: o sem-vergonha (E outros tantos nomes que não ouso publicar aqui, dado a virulência dos mesmos...) resolveu pegar carona em um petroleiro qualquer e se mandou lá prá bandas do rio Mekong, lá bem no meio das selvas vietnamitas, talvez com saudades do seu tempo de guerrilha. Na mesma batida, vimos partir o Agulhão, escafedendo-se num palheiro inescrutável, deixando para nós o esfarrapado argumento de que precisava meditar; anda, segundo ele próprio, com a cara mais deslavada deste mundo, precisando ter um importante diálogo consigo mesmo. O Robalo, que eu ainda contava como uma alternativa, dentre as poucas de que dispúnhamos, embarcou, repentinamente e sorrateiramente, num desses ônibus da Viação São Geraldo, rumo às tranqüilas terras da Bahia, alegando que havia sido assaltado vezes sem conta nestas inseguras terras paulistas em que estamos ancorados, Lili e eu.
A coisa estava indo de mal a pior: nem sombra do brilho do Dourado eu consegui vislumbrar, por mais que campeasse por todos os cantos da cidade. As minhas preocupações atingiram o ápice quando vi, num desfile monumental, a Pescada, uma multidão da família dos Corimbatás e o arredio clã das Tainhas, todos batendo em retirada rumo a um bunker a prova de armas atômicas.
Aí é que foi cair a ficha de vez em meus incrédulos orelhões: os peixes estavam fazendo uma greve geral. Até as Anchovas, antes tão cordatas, estavam a engrossar aquele indigesto caldo da rebelião pisciana. Apavorado, consultei aos meus botões em busca de uma explicação para aquela situação insustentável: nem uma reles Sardinha sobrara para incrementar as nossas já esquálidas refeições, visto que já havíamos sido escorraçados pelos Suínos e Bovinos, juntamente com seus aliados de penas, os Galináceos (Sem falar nos Caprinos, Ovinos e outros...) que se juntaram numa guerra sem quartel contra nossos estômagos insaciáveis em outras eras )creio que lá pelo Mesozóico, tão longe essa lembrança se encontra em minha mente.
Lili e eu entramos em pane total, muito compreensivelmente, aliás: afinal, o que diabos iríamos colocar em nossas barrigas, a essa altura já mais que nas costas?
O meu arsenal de palavras para consolar Lili estava minguando assustadoramente. Olhei, meio a medo, e a vi no canto escuro de nossa sala, lá perto de nossas babosas, a Risoleta, a mais velha, e a Nastácia, ainda uma adolescente rebelde. Comecei a temer pela vida das meninas: será que Lili, pressionada pela fome estaria pensando em sacrificar nossas filhas? Por minha mente começou a passar um filme dantesco, no qual Lili devorava as meninas, sem tempero e sem mais nada, com a baba delas, digo, o sangue vegetal, escorrendo-lhe pelos dentes destruidores. Nessa hora de calamidade extrema deixei de lado o meu ferrenho agnosticismo e corri a pegar a nossa embolorada Bíblia, uma versão comprada aos indefectíveis crentes que nos aporrinham nos fim de semana que nos pegam, desprevenidos, na porta de nossas casas.
“Eureka!” Berrei a plenos pulmões, numa versão tupiniquim do sábio grego, quando fez sua importante descoberta.
Ao me ver sair pulando e gritando de alegria, Lili pensou que a fome havia me afetado a capacidade de raciocínio, um eufemismo para dizer que eu estava mesmo a bater pinos. Lili se aproximou de mim cautelosamente, talvez com medo de que eu fosse querer abandonar o meu regime pseudo-naturalista em favor de uma dentada mortífera em suas carnes mais do que apetitosas (A essa altura, até o Baltasar tinha tomado chá de sumiço. Todo cuidado é pouco, deve ter ponderado aquele gato esperto...).
Desconfiada de que eu finalmente tivesse resolvido aderir a uma seita evangélica qualquer, Lili perguntou, meio sem querer ouvir a resposta, o que eu estava fazendo com aquela bíblia ensebada nas minhas mãos. Eu li nos olhos dela a preocupação de que eu tivesse pensando em devorar o santo livro. Como se tivesse acertado na mega-sena, dei um abraço imenso em Lili, saindo a dançar com ela pela sala, num repeteco de nossa dança do acasalamento, o que só fazemos em ocasiões especialíssimas.
“O que foi, João?” “-Conta logo a novidade.”
Antes que Lili exalasse o último suspiro, quase afogada em sua curiosidade atávica, aliás, inerente a todo bicho fêmea que eu conheço, disse-lhe que nossos problemas de alimentação estavam terminados.
Lili percebera, com sua argúcia proverbial, que eu sequer abrira a tal bíblia. Quis então saber como eu achara o Abre-te, Sésamo para nossas carências alimentares. Nem me dei ao trabalho de lhe explicar a genial idéia que me havia ocorrido: (Deve ter sido inspiração divina a descoberta que fiz, como acontecia àqueles profetas perdidos no deserto, atormentados por virgens lúbricas...) peguei Lili pela mão e lá fomos nós, cartão de crédito em punho, assaltar as bancas de frutas, legumes e verduras do supermercado mais próximo.
O livro sagrado de tantas religiões, carteira de identidade dessa multidão de crentes barulhentos de nossos dias, foi o farol que me direcionou a fazer um regime crudívoro, ao me lembrar que eu lera, séculos atrás, uma referência de que João Batista e Jesus praticavam o crudivorismo, principalmente o primeiro, que ainda enriquecia o seu cardápio com alguns insetos que, porventura, dessem bobeira ali nas proximidades de Qumran...
Lili não se entusiasmou muito com a possibilidade de absorver as proteínas de alguns gafanhotos que vi num gramado próximo, já voltando para casa com um caçuá de vegetais nas costas, mas repetiu umas quatro vezes o prato de salada de repolho, cenoura e beterraba que temperamos com azeite de oliva grego, cebola picada, sal e uma pitada de cominho. Após trucidarmos algumas bananas e uma meia dúzia de peras, uma suculenta melancia veio rebater a nossa salvadora refeição crua, dando-nos condições para aguardar o fim da greve daqueles pestes ordinários, os peixes ingratos que costumávamos degustar em nossa mesa.
Eis-nos então, a partir dessa infausta greve pisciana, ferrenhos defensores, e praticantes juramentados, do crudivorismo, pelo menos uma vez na semana.