De pangaré a panga.
Era um sábado promissor. Um desses dias de sábado que se fazia enfeitado de um belo dia de sol, e, para melhor complementar o dia, um céu obscenamente povoado de nuvens de flocos brancos encimava as nossas cabeças. Lá pelas dez horas da manhã, Eliana e eu resolvemos ir até ao supermercado para reabastecer a nossa já combalida dispensa; ela, aventureira que só, topou ir caminhando, (olha que a distância perfazia uns bons oito quilômetros...) a procurar animaizinhos nas tais nuvens postadas acima de nós. Já com a língua de fora fomos dar uma parada para nos reabastecer de água fresca em um shopping que fica um pouco depois da metade de nossa aventuresca caminhada. Com a sede aplacada, e cheios de ânimo novo, completamos o restante do percurso, parando para escandalizar os passantes com as nossas demonstrações de carinho: onde já se viu um casal aparentando mais de quarenta anos ficar aos beijos pelas ruas! Enfim chegamos ao dito supermercado, felizmente sem sermos abordados por nenhuma viatura policial na defesa da moral e dos bons costumes. Lá dentro do estabelecimento comercial (um gigante do ramo) nos perdemos entre tantas opções de frutas e verduras, entre as quais eu me regalei, enquanto Eliana procurava dar conta da lista que levara do que faltava em nossa espelunca, a qual damos pomposamente o nome de casa.
Depois de algumas horas de maratona consumista, o nosso carrinho lotado de coisinhas básicas como goiabada, marrom-glacê (Eliana parece uma formiga por doces), algumas ameixas frescas, uvas passas e quejandos, chegou, finalmente, a hora supliciosa de ter de escolher o pescado que levaríamos para a nossa mesa. Qual o quê!!! Aí foi o momento da porca torcer o rabo; melhor dizendo: o tal peixe. Parecia que a direção do tal supermercado havia armado um complô contra a minha decisão de não consumir carnes, exceção feita, à duras penas, (e após uma longa e tenaz resistência) ao peixe. Havia de tudo nas gôndolas: salmão pela hora da vida, (a morte tá mais cara ainda.) camarões indigestos (alguns tão miúdos que precisava de lupa para localizá-los, se bem que o preço, taxado numa linguagem hieroglífica que eu me recusei a decifrar, ficava bem visível.) e um bacalhau mais do que salgado para as nossas somalianas posses. O açougue, para o qual Eliana voltava sempre seus lindos e cobiçosos olhos azuis, resplandecia de carnes a preços mais do que convidativos. Eu, a essa altura, já completamente desarvorado, via-me batendo uns bifes para Eliana, enquanto lançava mão de alguma perdida lata de atum para providenciar uma omelete salvadora. Eis que, num miraculoso passe de mágica, meu anjo da guarda direciona o meu olhar de míope para uns pacotes enfileirados atrás de uma geladeira envidraçada: Peixe Panga, estava escrito nas embalagens geladas. Nem Eliana, e muito menos eu, havíamos visto tão esdrúxulo nome colocado em um peixe; (Depois, pesquisando na internet, vi que era ainda pior: pangasius hypophthalmus, esse nome que mais parece um palavrão...) fiquei com muita pena do coitado, ter de carregar um nomão desses. Bom. O certo é que, depois de longa confabulação, optamos por levar o tal panga para casa, eu mais cabreiro ainda, pois o rapaz da peixaria me socorrera, informando que o tal panga viera do Vietnam. Com essa prestigiosa recomendação (O de ser um peixe oriundo do país de Ho-Chi-Min) o panga começou a cair nas minhas simpatias: já o visualizava lutando bravamente contra o invasor ianque, de pés descalços e fuzil na mão (o devaneio desfez-se imediatamente ao me lembrar que peixes não tinham pés...). Como o tal panga se encaixava maravilhosamente dentro de nossas posses, contratamos um enlace suspeitoso entre nós e ele. Acondicionamos o bicho de nome estranho em nosso congelador e lá ele ficou num descanso esplêndido até o malfadado dia em que não havia mais nada na geladeira: teria de ser o panga, ou o panga. A alternativa era uns ovos cozidos que estavam a olhar para nós dois com cara de assassinos.
Puxa vida: eu já estava endividado moralmente com Eliana. No dia anterior fi-la caminhar por horas pelos morros de Mauá, periferia mal-afamada de São Paulo, (Cidade não menos mal-afamada também...) a zanzar perdido pelo soturno bairro de Itapark. Decidido a reconquistar o coração de Eliana pelo tradicional caminho do estômago, fiz um acordo tácito com o panga. Eu fingiria que sabia lidar com ele e ele não oporia mais resistência que a necessária para nos alimentar do jeito que desse. Acordo estabelecido, coloquei as postas de panga para descongelar. Até então não fazia a mínima idéia do que iria engendrar para o nosso almoço: Eliana, coitada, bota uma fé inquisitorial nos meus dotes culinários. Mal sabe ela que mal me defendo num sofisticado ovo frito e um guerreiro arroz “unidos venceremos”. Mas, plenamente cônscio de que por amor tudo vale, (até o arrojado preparo de um panga.) dei início a perigosa tarefa de preparar aquele peixe de nome exótico. Dei tratos a bola e fui resgatar da memória um bonito que preparara há alguns milhares de anos; cortei um caminhão de cebolas, piquei toda uma plantação de alho e pus o danado do panga prá marinar, regado com sal a gosto e uma pitada de vinho tinto. (Um pouco também veio para mim: afinal, dizem que sou filho de Deus.) Depois dessas salutares providências, peguei o panga e o coloquei numa água que pusera a ferver antecipadamente. Depois de uns cinco minutos retirei o rebelde vietnamita e o coloquei a grelhar, em postas mais estreitas. Por prevenção, dei o primeiro pedaço para Eliana provar. (Vai que algo saísse errado...) Graças ao bom Deus que o sorriso no rosto dela, de orelha a orelha, indicava que eu havia sido perdoado do massacre mauaense do dia anterior. A convivência familiar em nosso cafofo foi garantida com um acompanhamento de inhames refogados num molho de cebola, alho e uma gota de vinho, uma rubra salada de rabanetes e algumas intrometidas batatas cozidas com azeitonas.
Estava tão bom que ficamos pensando em estender o domingo até as duas horas da tarde de segunda-feira...
Terras de São Paulo, tarde de Terça-Feira, meados de Setembro de 2010.
João Bosco