DO CAMINHO DO CRIADOR: De Nietzsche ao Amor.

Dando continuidade à minha série focada em Nietzsche, no livro Assim Falou Zaratustra, através do seu personagem, ele define as condições necessárias para alguém se tornar criador. Silêncio e solidão são imprescindíveis para o caminho da criação. É preciso se livrar do barulho da multidão, ou das “moscas do mercado”, como ele as chama, que, por sentirem a proximidade de sangue nobre, tentarão picá-lo de qualquer maneira. É necessário também se libertar do instinto de rebanho, que são os valores morais impostos pela maioria. A criação, para Nietzsche, é fundamentalmente o estar só, o refletir, a introspecção. Na metáfora de Zaratustra, a primeira etapa é ter o espírito do camelo. O camelo, para suportar as dores da existência no mundo, como um animal de carga, e saber digeri-las sem ressentimento.

 

Mas, então, no deserto do camelo, em sua solidão, é necessário transmutar-se em leão. Após sofrer tantos infortúnios e passar muito tempo em reflexão, o espírito se fortificou no deserto e deseja se tornar um leão, para dar a si a força de agir conforme seus próprios valores. Mas há algo que Zaratustra diz que não está nem na capacidade do camelo nem do leão: a criação de novos valores. Por isso, é necessário, por último, transformar-se em criança. Pois a criança é esquecimento, é inocência, é um novo vir-a-ser.

 

No filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, o final, em que o homem velho se torna criança, faz referência justamente a essa teoria de Zaratustra. Aquele homem evoluiu do macaco, passou pelo homem e se tornou finalmente o super-homem em forma de criança. E esse é o caminho do criador, segundo Nietzsche. Mas aqui, o filósofo está se referindo mais à criação de novos valores morais para si mesmo, diferentes dos dominantes, suas próprias virtudes, além do bem e do mal. Mas isso também pode se aplicar à criação artística. Não há nada mais invejável do que a vida do artista. Todos nós amamos nossos poetas, disse Leminski em um belo documentário. E é verdade. O artista, por excelência, não é o ator, mero reprodutor, mas sim quem cria a obra. Esse é o verdadeiro artista, embora nem todos tenham o reconhecimento que merecem.

 

Talvez o Brasil ganhe o Oscar pelo novo filme de Walter Salles, e ele é autor, um artista, um criador por excelência. E por isso será admirado e eternizado. “Ergui uma obra mais duradoura que o bronze”, diz Horácio ao falar de sua obra. E esse é o objetivo do artista. Segundo Nietzsche, a criação da obra de arte é símbolo de uma vontade de potência fortificada, que procura se expandir através da obra criada. Para isso, é fundamental que o possível artista cuide de sua fisiologia para beneficiar os impulsos ativos de criação. O grande empecilho para o criador é o ressentimento, ou a resignação, o “sempre tornar-se camelo”. Isso é uma incapacidade, de origem até fisiológica, de não conseguir reagir aos estímulos do mundo.

 

Ser criador é o grande objetivo da vontade de potência. E, sendo essa a vontade, me incluo nesse objetivo de criação. Criar algo para além de si. Para isso, é necessário absorver todas as suas referências culturais, sociais e de aprendizados e refletir isso na forma de arte. Mais, honestamente, ainda me falta muito para tal. Falta-me a força de vontade do leão.

 

Embora, para mim mesmo, eu tenha criado meu próprio sistema de valores, meu bem e mal, cuja bondade se personifica no amor que sinto pela pessoa que amo. E quando amamos de verdade, somos incapazes de fazer o mal à pessoa amada. É claro que às vezes me imagino fazendo loucuras na cama com ela na minha imaginação, mas elas são movidas por amor e pelo desejo de propiciar prazer e desejo para quem amamos, desde que seja prazeroso para ambos.

 

Por isso, quando puxo na memória algumas coisas que disse para ela no passado, agindo no impulso, que é algo justamente de alguém com a fisiologia em declínio, que não suporta e reage imediatamente a um estímulo do mundo, quando o melhor seria não agir, me encho de tristeza e constrangimento. E espero que ela me perdoe por tudo o que foi dito, porque não refletia a realidade, o que realmente penso nela. Era só ressentimento. Mas aqui registro minhas desculpas formais e espero que quem amo tenha um pouco o espírito da criança nela, o do esquecimento, e não ressinta tudo o que eu disse. Pois eu a amo.

 

E Spinoza falava que o afeto do amor é tão forte, que amamos até a pessoa que fez a nossa pessoa amada se alegrar. E isso é o bem para mim, o amor que eu sinto. E o mal é o que me distancia de estar com ela. Mas Spinoza disse que o que pode exatamente curar o mal é um afeto ainda mais forte, como o amor. E assim, como diz Guimarães Rosa, “aos poucos o escuro fica claro”. Ou o caminho do criador se torna mais possível.

 

 

Dave Le Dave II
Enviado por Dave Le Dave II em 19/12/2024
Reeditado em 20/12/2024
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