O Que é Niilismo e Por Que Nos Importa - ou não.
Nietzsche era um grande crítico do niilismo, embora, em sua filosofia, o niilismo seja fundamental para o entendimento de seu pensamento e o processo de criação de um homem potente, uma força vingadora que diz “sim” à vida. Contudo, o que o filósofo alemão vai chamar de niilismo é um pouco diferente do que comumente se definia como tal.
O niilismo, tradicionalmente, era entendido como uma doutrina que pregava o “nada”, a ausência de sentido na vida ou na existência. Mas, para Nietzsche, essa visão de pensar é própria de alguém cujo corpo entrou em decadência fisiológica e, por isso mesmo, precisa negar a vida. Ainda assim, para Nietzsche, o conceito de niilismo é muito mais amplo. Ele considera niilista também aquele que nega o mundo da vida, o mundo real, dos afetos – o único existente e perceptível para nós – em favor de um mundo ideal: o mundo das ideias, ou a crença em um além-mundo. Na concepção cristã, este além-mundo seria o paraíso. Para Nietzsche, esse mundo ideal é meramente inventado, e seus criadores foram justamente aqueles cujos corpos estavam em decadência, incapazes de aceitar o vazio da vida ou a falta de significado da existência. Por isso, inventaram um mundo perfeito, destinado aos bons e justos.
Dessa invenção surgiram os conceitos de pecado e virtude teológicos, como fé, esperança e piedade. Na verdade, esse foi um artifício criado por aqueles que sofrem, que não aceitam a vida como ela é e, assim, precisam de uma doutrina de resignação, com punição (inferno) e recompensa (paraíso). Esse tipo de niilismo, Nietzsche chamará de niilismo passivo.
Os valores morais criados pelo homem moderno – o homem da razão – também entram na categoria de niilismo. Para Nietzsche, conceitos como “bem” e “mal” são invenções humanas, e não há na natureza elementos que os justifiquem. Esses valores foram criados, sobretudo, para controlar os mais fortes, aqueles que agem por impulso dominante. Por meio de sua genealogia da moral – que, em linguagem simples, significa investigar as origens históricas da moral –, Nietzsche afirma que não existia originalmente o conceito de “bem” e “mal”, mas sim de “bom” e “ruim”.
O “bom” era aquele apto para a vida, forte, cuja vitalidade transbordava em potência, criador, estimador das coisas, o que batiza e dá nome ao mundo com sua força. Já os “ruins” eram os fracos, dominados pelos fortes, incapazes de exteriorizar seus pensamentos. Eles se voltavam para dentro, para crenças redentoras que justificassem suas vidas sofridas. Essa distinção moral cria duas morais: a dos nobres (fortes) e a dos escravos (fracos). É importante destacar que Nietzsche, em nenhum momento, procura nessa condição histórica elementos políticos. A política, para ele, faz parte da moral. Nietzsche não é um filósofo político, e o uso político de sua obra é completamente desvirtuado e incorreto.
Em oposição ao “bom” (forte), os inventores criaram o “homem do bem” (bondoso), que antes era considerado fraco. Os sacerdotes e os primeiros cristãos fazem parte dessa categoria. Nietzsche ressalta que, mesmo no sofrimento e na vida esgotada, há certa capacidade criativa: os fracos criaram crenças e mundos ideais para sobreviver, apegando-se a eles.
Os ateus, embora não creiam em Deus, muitas vezes também são niilistas, pois criam mundos ideais terrenos aqui mesmo, como os socialistas, que almejam uma sociedade sem desigualdade social. Nietzsche era um grande crítico tanto dos metafísicos quanto dos socialistas, que, segundo ele, buscavam constituir o paraíso cristão na Terra.
Ao observar o comportamento niilista, Nietzsche conclui que, quando o ser humano percebe que o mundo não tem finalidade, sentido ou significado, surge o niilismo ativo. Esse tipo de niilismo ocorre quando o indivíduo aceita que o mundo não tem sentido e, em vez de se resignar, decide criar seus próprios valores, seu próprio bem e mal, suas virtudes. Essa aceitação do não sentido da vida, junto à criação de novos valores, é uma expressão de um corpo saudável, cuja vontade de potência – que para Nietzsche é a essência da vida – está forte e bem definida (super-homem).
Aqueles cuja vontade de potência e condição fisiológica estão deterioradas desprezam o corpo. São os ressentidos, incapazes de esquecer os acontecimentos, que vivem reclamando da vida como ela é e buscando culpados para tudo.
Por fim, Nietzsche sintetiza esses pensamentos de forma brilhante em uma passagem de seu livro Crepúsculo dos Ídolos, que reproduzo aqui na íntegra para ilustrar:
Qual pode ser a nossa doutrina?
— Que ninguém dá ao ser humano suas características, nem Deus, nem a sociedade, nem seus pais e ancestrais, nem ele próprio (— o contra-senso dessa última ideia rejeitada foi ensinado, como “liberdade inteligível”, por Kant, e talvez já por Platão). Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstâncias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será. Ele não é consequência de uma intenção, uma vontade, uma finalidade próprias, com ele não se faz a tentativa de alcançar um “ideal de ser humano” ou um “ideal de felicidade” ou um “ideal de moralidade” — é absurdo querer empurrar o seu ser para uma finalidade qualquer. Nós é que inventamos o conceito de “finalidade”: na realidade, não se encontra finalidade… Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo — não há nada que possa julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo… Mas não existe nada fora do todo! — O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo do ser não pode ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande libertação — somente com isso é novamente estabelecida a inocência do vir-a-ser… O conceito de “Deus” foi, até agora, a maior objeção à existência… Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade em Deus: apenas assim redimimos o mundo.”