NA PRÁTICA, A TEORIA É OUTRA
No livro Ecce Homo, que foi o último escrito por Nietzsche antes de sua saúde mental deteriorar, o filósofo relata sua profunda preocupação com a fisiologia. Estou lendo, no momento, o livro póstumo dele, chamado Vontade de Potência, no qual ele se aprofunda na ideia de que o ser humano e a origem do mundo são expressões da vontade de potência: uma tendência inerente ao ser de buscar continuamente mais energia, mais força.
Ciente de que ele mesmo era vontade de potência, Nietzsche descreve como a relação entre nosso corpo e o mundo pode alterar nossa energia vital, ora aumentando, ora diminuindo essa potência. Nietzsche provavelmente se inspirou em Espinosa para criar sua teoria, pois Espinosa chamava essa tendência dominadora do ser humano de potência de agir ou conatus, definida como o esforço do organismo para perseverar no próprio ser. Para Espinosa, prazeres, dores, alegrias, excitações e tristezas são afetos que experimentamos ao nos relacionarmos com o mundo. Alguns desses afetos são nocivos para nossa potência de agir, enquanto outros são benéficos.
Talvez o afeto mais bonito que Espinosa descreva seja o amor, que é a alegria acompanhada pela consciência da causa. Ou seja, quando algo no mundo nos alegra e somos capazes de identificar aquilo que nos trouxe essa alegria, nossa potência de agir se fortalece. Inspirado em Espinosa, Nietzsche, em Ecce Homo, enfatiza como ele cuidava de sua fisiologia, buscando sempre ambientes e condições que favorecessem sua vontade de potência e sua capacidade criativa. Por isso, ele se autodenominava um andarilho, alguém sem pátria, pois estava em constante mudança, procurando lugares que favorecessem sua saúde, energia vital e inspiração criativa.
Por exemplo, ele relata que bebidas alcoólicas faziam muito mal para ele, enquanto acordar às seis da manhã e tomar um chá forte aumentava sua disposição. Durante esse período, ele se sentia inspirado para escrever. Contudo, seu método preferido de criação era caminhar. Ao subir montanhas e contemplar as belas paisagens de Sils-Maria, Nietzsche frequentemente tinha ideias que anotava durante as caminhadas. Um capítulo inteiro de um livro surgiu assim, e foi também nesse contexto que ele concebeu algumas de suas principais teorias, como o conceito de super-homem (Übermensch) e o amor fati (amor ao destino).
Gosto de ler esses filósofos porque suas ideias rejeitam conceitos transcendentais, como a alma ou o espírito. Para eles, tudo o que existe é o corpo, e nossa razão e vontade surgem da relação do corpo com o mundo e das afecções que ele sofre. O sagrado para Nietzsche era o sentido da terra, enquanto o Deus de Espinosa era um Deus imanente — ou seja, Deus é a própria natureza, a força vital que move o mundo. Nada existe fora dele. Por isso, ambos são grandes críticos da metafísica, das ideias transcendentes e da noção de além-mundos.
Para eles, não existem o bem e o mal absolutos — conceitos que Nietzsche considerava invenções humanas, especialmente da moral cristã, fruto de ressentimento e de uma vontade de punir ou recompensar. Em vez disso, o que existe é o bom e o ruim. Bom é o que é apto para a vida, o criador por excelência, aquele que busca sempre expandir sua potência de agir. Ruim é o fraco, o ressentido, aquele que vive preso ao passado e não aceita a vida como ela é, buscando consolo em um mundo superior — como o reino dos céus, que promete redimir o sofrimento.
Esses fracos, segundo Nietzsche em Assim Falou Zaratustra, são os desprezadores do corpo, aqueles que estão cansados de seus corpos e, por isso, acreditam na alma. Porém, tanto para Nietzsche quanto para Espinosa, tudo o que importa é o corpo e a energia vital que o move, ora aumentando, ora enfraquecendo.
Tenho predileção por estudar esses filósofos porque eles redimem o homem de seu sofrimento, de suas circunstâncias e do peso do pecado. Como Nietzsche diz:
“Ninguém é responsável por sua existência, pela sua constituição, pela sua situação, pelo seu ambiente e pelo fato de que se encontra em tais circunstâncias. A fatalidade de sua essência não pode ser desmembrada da fatalidade de tudo o que foi e será. Não se pode julgar, não se pode imputar culpa a ninguém por estar aqui. Ser é uma tremenda fatalidade.”
Julgar o ser humano seria o mesmo que julgar o todo. Mas não existe nada fora do todo. Nietzsche critica, assim, o livre-arbítrio e a ideia de uma razão pura que seria responsável pelas escolhas humanas, como defendiam Descartes e Kant. Para Nietzsche, nossas decisões são tomadas pelo corpo, de forma inconsciente, a partir da relação com o mundo. A consciência apenas chega depois. Por exemplo: o corpo sente fome, e então a consciência pensa em maneiras de se alimentar. O corpo sente dor, e a consciência busca formas de aliviar esse sofrimento.
Essas teorias, desenvolvidas há mais de dois séculos, encontram hoje respaldo em pesquisas da neurociência, como as do famoso neurocientista António Damásio. Ele é autor de obras como O Erro de Descartes e estuda a relação entre corpo e mente, defendendo que os sentimentos e a razão surgem das interações entre o organismo e o mundo. Damásio, assim como Nietzsche e Espinosa, rejeita a separação rígida entre mente e corpo, argumentando que a consciência é um produto da corporeidade e das emoções.
Na prática, no entanto, é difícil aplicar essas ideias. Agir sempre de forma a expandir nossa potência, sem diminuí-la, é um desafio constante. Como diria Nietzsche, na prática, a teoria é outra quando se trata de viver.