A ARTE DA CRIAÇÃO DE SI EM BLAISE PASCAL
UNIP Universidade Paulista
Campus Itatiba
Curso: Licenciatura em Filosofia
A ARTE DA CRIAÇÃO DE SI EM BLAISE PASCAL
Luiz Carlos Cassimiro
Trabalho Monográfico – Curso de Graduação – Licenciatura em Filosofia, apresentado à comissão julgadora da UNIP, Itatiba, sob a orientação do professor: Dr. Fernando Henrique Cavalcante de Oliveira
“Onde reina a verdade não há civilização. Ser civilizado é, em cera medida, fazer um pacto com a mentira que funda as relações sociais, e por consequência, as mantêm.”(MARTINS, 2019, pg. 17)
1 Resumo
O objetivo deste trabalho é discutir uma característica intrínseca ao ser humano em sua definição subjetiva, a partir de uma perspectiva antropológica analisada pelo Filósofo Francês Blaise Pascal em sua obra Pensamentos. Na obra, Pascal conclui no fragmento 978 da edição de Luis Lafuma, que o ser humano nada mais é do que “disfarce, mentira e hipocrisia”. Neste sentido, pretende-se resgatar a motivação do pensamento original de Blaise Pascal e avaliar a sua validade prática em nossa época, analisando o significado do conceito de Amor-Próprio e sua relação com a forma que agimos socialmente.
Palavras chaves: Amor-Próprio, Blaise Pascal, Disfarce, Mentira Hipocrisia.
2 Abstract
The objective of this paper is to discuss an intrinsic characteristic of the human being in its subjective definition, from an anthropological perspective analyzed by the French philosopher Blaise Pascal in his work Pensées. In the work, Pascal concludes in fragment 978 of the edition by Luis Lafuma, that the human being is nothing more than “disguise, lies and hypocrisy”. In this sense, we intend to rescue the motivation of Blaise Pascal's original thought and evaluate its practical validity in our time, analyzing the meaning of the concept of Self-Love and its relationship with the way we act socially.
Key words: Self-Love, Blaise Pascal, Disguise, Lie, Hypocrisy.
3 Introdução
A motivação para desenvolver este trabalho e a escolha pelo autor surgiram simultaneamente durante a leitura do livro A verdade é insuportável, de Andrei Venturini. composto por uma coletânea de ensaios curtos nos quais o tema da hipocrisia é explorado. A referência principal do livro são a introdução e o capítulo I, cujas ideias e todo o desenvolvimento sintetizam de forma direta os objetivos deste trabalho. A epígrafe introdutória deste trabalho:“...onde reina a verdade não há civilização. Ser civilizado é, em cera medida, fazer um pacto com a mentira que funda as relações sociais, e por consequência, as mantêm.”(MARTINS, 2019, p. 17) denuncia de uma maneira um tanto contundente uma condição do ser humano bastante delicada. O tema da verdade é muito sensível dentro do contexto das relações humanas, sobretudo em relação a hipocrisia, à vaidade e a arte de auto engano. Blaise Pascal, sendo educado unicamente por seu pai, e ainda que nunca tenha frequentado nenhum tipo de educação formal, destacou-se em inúmeras áreas de pensamento, da física a matemática, da filosofia a teologia, entre outras que na época nem existiam nos termos que conhecemos hoje. Sendo profundamente religioso, fundamenta seus pensamentos em uma tentativa de fazer uma apologia da religião cristã e neste processo, o pensador em estudo analisa o comportamento humano de uma forma um tanto pessimista e angustiante, destruindo qualquer ideia de perfeição humana, e de certa forma, Pascal pode ser considerado um pensador do existencialismo. Uma forma de reforçar a consistência do pensamento pascaliano a respeito do tema deste trabalho, será investigar passagens de obras de outros autores de gêneros literários diferentes, de diferentes épocas e de diferentes regiões do mundo. Citaremos Fernando Pessoa e Machado de Assis
A ideia central do presente estudo não se resume em acusações rasas da mentira pela pura mentira, mas pela forma como o ser humano pode criar versões de si mesmo de forma que mascare algumas de suas imperfeiçoes que não são bem-vistas pela sociedade e assim possa se apresentar perante ela sem danos a sua reputação. Em um contexto contemporâneo, com a proliferação de redes sociais, existe uma certa manipulação de determinadas características que são aparentemente melhoradas como objetivo de ser um “produto” mais aceito nas “vitrines do mercado midiático”
Um outro tipo de “disfarce” como forma de apresentação pode ser enconcontrada nos processos seletivos do mundo corporativo, com um curriculum vitae muito bem elaborado, dado que uma sinceridade nua e crua durante uma entrevista de emprego, poderá inviabilizar o candidato à vaga. Veremos adiante que em determinadas passagens dos Pensamentos, Pascal parece dissecar as justificativas que um candidato com a autoestima elevada poderia ter usado para se sair bem no hostil ambiente de seleção do mercado de trabalho.
Neste contexto, os coachs modernos parecem figurar os Sofistas que foram tão desprezados por Sócrates e Platão na antiga Grécia. O discurso otimamente elaborado e a retórica com adequada fluides são ferramentas fundamentais não apenas para o auto engano, mas para sustentar a ideia de um produto perfeito, elaborado de forma a convencer a contraparte que aquela opção negociada é a escolha mais inteligente. Tendo em vista que o dinheiro é necessidade primordial para a sobrevivência, a luta do dia a dia para conseguir manter o status social está repleta de situações nas quais a mentira é a única alternativa possível, desde a ilusão prometida pelo fetiche da mercadoria, no processo de compra e venda de mercadoria, das mais distintas aplicações.
4 Vazio infinito
Para entender o desenvolvimento do pensamento de Blaise Pascal é de fundamental importância analisar a raiz da sua concepção antropológica, a qual encontra-se no pecado adâmico, influenciado por Agostinho de Hipona e Cornélio Jansenius. Segundo Andrei,
“A reflexão pascaliana” é realizada a partir de um marco bíblico, a queda de Adão no paraíso, expressão do pecado, que marca o advento de um estado de natureza precário e pleno de misérias, angustiado, insatisfeito, inconstante, inquieto, ignorante, frágil diante da natureza, aturdido pelas doenças e comicamente incapaz perante a morte”. (MARTINS, 2017)
Pascal manifesta sua teoria pela primeira vez ao escrever uma carta de consolação para sua família, em decorrência da morte de seu pai, em 17 de outubro de 1651, a partir das respostas dada a duas perguntas realizadas nesta carta: Qual a origem de todo o mal? Quais as consequências para o homem com a origem deste mal? A demarcação da condição humana é realizada a partir do pecado do primeiro homem, portanto existia uma condição humana antes do pecado, e uma segunda condição, depois do pecado, que Blaise denominou de Vazio infinito, definido por um excesso de amor direcionado a si mesmo, como consequência do abandono do homem por Deus.
Essa quantidade de amor infinito que seria redirecionada para um objeto infinito compreendida pela figura de Deus, perde em proporções quando redirecionada para um objeto finito, ou seja, a si próprio: Segundo Venturini, “Com o pecado adâmico, Deus, objeto digno de amor infinito, abandona o homem que, como criatura finita, faz de si objeto precário de sua capacidade de amor infinito, direcionando para si o amor que deveria ser dirigido a Deus.
Venturine argumenta que “É por meio deste amor-próprio sem Deus que o homem vive o drama de amar infinitamente um objeto precário, que não corresponde a sua capacidade de amor, restando dele um vazio infinito”.(MARTINS, 2017).
Essa visão Pascaliana possui uma perspectiva fundamentada através de uma leitura religiosa e verídica através do livro do Gênises, no entanto, existe a possibilidade de considerar uma interpretação desta teoria através de um ponto de vista metafórico, trazendo para o nosso contemporâneo um sentido mítico sem perder o contexto filosófico da questão. Ressaltamos que, assim como Santo Agostinho, Pascal contraria a defesa de Pelágio de que o pecado de Adão não seria transmitido para as gerações futuras.
4.1 A miserabilidade humana
Na passagem do século XVI para o Século XVII William Shakespeare escreve a peça “A Tragédia de Hamlet”, cerca de vinte e três anos antes do nascimento de Pascal. Esse marco histórico mostra, através de uma manifestação artística, a miséria da condição humana cheia de defeitos. Enquanto pascal no fragmento 978, argumenta que o homem “quer ser objeto do amor e da estima dos homens, e vê que seus defeitos só merecem a aversão e o desprezo deles.”(PASCAL, 2005, pg 413), a personagem principal da peça Shakesperiana sugere que “Se tratarmos as pessoas como merecem, nenhuma escapa ao chicote.”(SHAKESPEARE, 2018).
Nesta citação supõe-se uma condição natural do ser humano digna de desprezo. Pascal elabora seu discurso introduzindo o tema sobre a verdade insuportável dessa condição humana quando o ser humano lança olhar para seu íntimo e se da conta de um vazio infinito. Segundo Pascal, o homem busca a grandeza, a perfeição e a felicidade, não obstante, na maioria dos casos ele está aquém daquilo que almejaria ser, ao passo que tenta disfarçar para o mundo todas as imperfeiçoes que detecta em si. Nas palavras de Pascal o homem “quer ser grande, vê-se pequeno; quer ser feliz, vê-se miserável; quer ser perfeito, vê-se cheio de imperfeições.” (PASCAL, 2005, pg 413)
O melhor dos cenários seria conhecer seus males e buscar corrigi-los, dado que Blaise destaca que “Não há dúvida de que é um mal-estar cheio de defeitos; mas é um mal ainda maior estar cheio deles e não querer reconhecê-los…”(PASCAL, 2005, pg 413). no entanto não é o que o que acontece na prática, como tentaremos explicar a seguir.
Esse mascaramento de sua verdadeira condição é realizado não apenas para os outros, mas também para si próprio. A respeito dessa indesejável condição, pascal defende que o homem decaído “desejaria aniquilá-la e, não podendo destruí-la em si mesma, ele a destrói, tanto quanto pode, no seu conhecimento e no dos outros…”(PASCAL, 2005, pg 413). É neste contexto que o homem representa um disfarce para si mesmo, desviando o olhar de suas imperfeições, buscando divertir-se para o esquecimento de suas misérias. O termo divertir-se, refere-se ao significado de desvio da palavra palavra divertissement, o qual Pascal desenvolveu de maneira sistemáica, levando em conta a miséria do homem sem Deus.
Sobre o desvio de sua própria condição, o homem projeta sua imagem ao mundo, a imagem que ele criou exaltando grandeza, perfeição, e felicidade, no entanto, caso essa projeção se desintegra por algum motivo revelando suas mazelas, o homem desenvolve um ódio profundo contra aquele que revela a si essa infeliz condição. Nas palavras de Pascal, “Esse embaraço em que se encontra produz a mais injusta e a mais criminosa paixão que se possa imaginar; pois ele concebe um ódio mortal contra essa verdade que o repreende e que o convence de seus defeitos.”(PASCAL, 2005, pg. 413)
4.2 A verdade é insuportável
A respeito da mentira, podemos dizer que ela sempre foi motivo de aversão pela sociedade. Em primeiro lugar é intolerável que mintam para nós, não gostamos que nos enganem, no entanto, quando se trata da verdade a qual dedicamos grande esforço para ocultá-la, é razoável supor que odiaremos aqueles que nos revelariam. É neste contexto que pascal faz o seguinte questionamento: “Não é certo que odiamos a verdade e aqueles que no-la dizem, e que gostamos que se enganem em benefício nosso, e que queremos ser estimados como se fôssemos outros e não aquilo que realmente somos?”.
O que Pascal quer fazer-se entender é que dentro das relações humanas do cotidiano, a verdade deve ser usada de forma moderada, ocultando aquilo que pode ferir o orgulho daquele que escuta a verdade sobre o seu verdadeiro estado de imperfeições. Eis que então surge uma condição paradoxal: Se por um lado é desagradável que mintam para nós e também desagradável que nos revelem a verdade a respeito de nossa miserável condição, a qual esforçamos muito para esconder do mundo, no processo de recriação individual. Assim pascal conclui que “odiamos a verdade, escondem-na de nós; queremos ser bajulados, bajulam-nos; gostamos de ser enganados, enganam-nos.”(PASCAL, 2005, pg. 414).
Consideramos que a aversão pela verdade é o que sustenta as relações humanas, temê-mos dizê-la para aqueles que estimamos, já que a sua revelação seria motivo de ódio. Essa condição estranha é lamentada por pascal, pois aquele que nos diz a verdade estaria ajudando-nos “a livrar de um mal, que é a ignorância de nossas imperfeições.” Citamos dois exemplos que indicam a dificuldade humana na busca pela verdade: Um provérbio Bíblico e o legado de Sócrates.
4.2.1 Referência a salomão
Existe uma referência a Salomão, encontrado na Bíblia, em Provérbios 9:8-9: “Não repreendas o escarnecedor, para que não te odeie; repreende o sábio, e ele te amará. Dá instrução ao sábio, e ele se fará mais sábio; ensina o justo e ele aumentará em entendimento”. No senso comum, esta passagem pode ser interpretada como “Corrijas um sábio e o tornará mais sábio, corrija um ignorante e ganharás um inimigo”, de certa forma o legado de Sócrates representa este parâmetro.
O provérbio bíblico citado acima mostra que essa sabedoria de se reconhecer como miserável é a possibilidade de combater este mal e se tornar de fato uma pessoa melhor, no entanto a humanidade massificada age com profunda repulsa a adotar essa sabedoria de vida. Assim Blaise conclui que: “É isso que faz com que cada degrau de boa fortuna que nos eleva num mundo mais nos afasta da verdade, porque mais se fica apreensivo em ferir aqueles cuja afeição é mais útil e cuja aversão, mais perigosa.”. (PASCAL, 2005, pg. 414)
A famosa frase inscrita no templo de apolo “Conhece te a ti mesmo” pode ser entendida como uma maneira de reconhecer suas próprias imperfeiçoes e a partir de então, através do exercício da virtude, aperfeiçoar a si próprio. Mas para isso ser concretizado, é preciso agir de uma forma fiel ao que de fato nos define e estar preparado para ouvir a verdade em em relação a nossa própria natureza, tantas vezes de forma insuportável.
Machado de Assis cita o autor dos pensamentos em várias passagens do seu clássico “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, uma delas, referindo-se ao caniço pensante e fazendo um complemento a ideia do filósofo Jansenista: "Deixa lá dizer Pascal que o homem é um caniço pensante. Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes."(ASSIS, 2018) Tal passagem se refere ao fragmento “O homem não é senão um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante." (PASCAL, 2005, pg 75)
Quanto a afirmação de Machado de Assis, podemos acrescentar uma pequena objeção quanto ao fato de que com a passagem do tempo o homem pode sim se tornar versões melhores de si mesmo, não obstante, assumindo que a saúde humana esteja plena, o envermelhecimento não é garantia quanto ao acumulo de sabedoria, dado que as condições sociais alienantes do atual estado da civilização, as condições de aperfeiçoamento social tornam-se precárias.
Sugere-se que, o “Conhece-te a ti mesmo” do Templo de Apolo aproxima-se do pensamento Pascaliano, referente ao ato de melhorar nossas imperfeiçoes, e não apenas mascará-las. Por esta via. Uma das possíveis formas de se ler Blaise Pascal é interpretar a velha inscrição do santuário da ilha de Delfos.
4.2.2 O legado de Sócrates e Blaise Pascal
Sócrates pagou com a vida aquilo que o Oráculo de Delfos lhe deixou como legado: Desmascarar o pedantismo intelectual, colocando em dúvida as certezas que os seus contemporâneos tinham como absolutas. Sócrates conhecia-se como homem ignorante do seu tempo, e usando seu método irônico no processo de indagar aqueles que se diziam sábios, deixa evidente que o pensamento pascaliano se fundamenta de forma experimental afirmando esse paradoxo da condição humana no qual o homem não deseja ser engando, mas o mecanismo que fundamenta sua existência está cravado no mundo das aparências.
O criador da maiêutica buscava a verdade, e a consequência dessa busca incessante o levou ao envenenamento por cicuta. Metaforicamente, levantamos a ideia de que expressar a verdade insuportável de nossa miserável condição é envenenar a si próprio, conduzindo à morte.
4.3 O confessionário
Quanto ao afastamento da verdade, proposto por Pascal, uma das possibilidades de interpretação significa moderá-la, suavizar as expressões de forma a ocultar aquilo de pior que reconhecemos no outro como sinônimo de boa educação. Blaise afirma que “Dizer a verdade é útil para aquele a quem ela é dita, mas desvantajoso para aqueles que a dizem, porque se fazem odiar.”(PASCAL, 2005, pg. 415) Daí tem-se a necessidade da mentira. A aprovação e a estima do outro depende de tratá-lo como ele gostaria de ser tratado, e para manter uma boa convivência esperamos ser estimados e tratados de forma que todas as nossas imperfeiçoes sejam deixadas de lado, ocultando do outro toda forma de miséria.
Diante dessa perspectiva, Pascal observa com terror que os pecados do homem devam ser mantidos a todo custo, em segredos do resto da humanidade, tendo a igreja católica elaborado minuciosamente o confessionário fazendo “exceção de um só, a quem ela ordena descobrirmos o fundo do coração e nos mostrarmos tais quais somos. Há somente esse único homem no mundo que ela nos ordena que não enganemos, e ela o obriga a um segredo inviolável.”
A conclusão pascaliana a respeito das hipocrisias das relações humanas, da necessidade da mentira para suavizar e possibilitar o convívio social através do disfarce como forma de se apresentar ao mundo está esboçada nitidamente no final do fragmento 978, citado a seguir:
Assim a vida humana não passa de uma ilusão perpétua; não se faz mais do que se entreenganar e se entreadular. Ninguém fala de nós em nossa presença como fala em nossa ausência. A união que existe entre os homens não é baseada senão nessa mútua enganação (...) O homem não é portanto senão disfarce, mentira e hipocrisia, tanto em si mesmo como para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade. Evita dizê-la aos outros...”. (PASCAL, 2005, pg. 415)
5 A invenção do eu na literatura
A literatura é uma forma de arte, na qual os autores podem expressar a si próprios criando personagens que são verdadeiros interlocutores de si mesmos. Neste capítulo dedicamos algumas linhas a explorar pequenas passagens literárias que dialogam como pensamento pascaliano. Pela limitação da dimensão deste trabalho evitamos uma análise mais profunda dessas citações, que apesar de muito interessantes, fugiriam do objetivo principal deste artigo.
5.1 Fernando pessoa
O poeta português foi um mestre na arte de criar heterônimos, e neste aspecto a invenção de si toma uma forma que soma características pessoais com crítica à sociedade de sua época. Assim como Pascal, muitas obras de Pessoa denotam um pessimismo em relação a condição humana e mostram que a verdade muitas vezes é mascarada dentro do convívio social, analisemos a seguir, duas obras fundamentais, Autopsicografia e Poema em linha reta.
5.1.1 Autopsicografia
“O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente./E os que leem o que escreve,/Na dor lida sentem bem,/Não as duas que ele teve,/Mas só a que eles não têm./E assim nas calhas de roda/Gira, a entreter a razão,/Esse comboio de corda/Que se chama coração”(PESSOA, 2012)
Em Autopsicografia introduzimos uma possibilidade positiva da arte do fingimento contrariando uma interpretação do sentido comum que tenha alguma forma de falsidade. Aqui o fingimento possui uma força artística, sendo uma forma de reconhecer-se de uma maneira positiva.
O poema carrega um sentido metafísico que permite uma vasta gama de interpretações que podem dificultar o seu entendimento. De acordo com DE ARRUDA, 2019, “Embora, atualmente, haja uma vinculação pejorativa do termo à ideia de falsidade, fingir nada mais é que representar, ou seja, recriar-se a si mesmo e o mundo em volta”. Dada as circunstancias sociais atuais, a necessidade de criar uma identidade pessoal marcante, leva a grande massa de pessoas em um processo e afirmação de si, voltando a arte para o próprio corpo, em estúdios de tatuagens, aplicação de percingis, modificações estéticas em clinicas especializadas, tratamentos de cílios, cabelos, estetização da pele, unhas etc. Uma vasta lista de possibilidades.
O capitalismo trouxe ao mundo essa característica de poder comprar e consumir tudo e neste processo, indivíduos massificados buscam sua individualidade, que acabam como por influência da moda, a tornar aquilo que era diferente e único, em algo comum e repetitivo, fazendo o próprio sistema se modificar, replicar e se realimentar, consumindo produtos e tornando-se produtos simultaneamente. DE-ARRUDA sugere que “o próprio fingimento é um mecanismo ao mesmo tempo emocional e cognitivo. Coração, mente e a mentira resultante deles estão entremeados de maneira indistinguível.” (DE-ARRUDA, 2019)
5.1.2 Em Linha Reta
No poema em linha reta notamos o eu lírico irritado e angustiado com a hipocrisia detectada no convívio social. Ele declara que nunca conheceu ninguém que tivesse sido violentado pela vida já que todos parecem sustentar uma imagem triunfante de si mesmos, sendo “campeões em tudo”.(PESSOA, 2012)
O eu lírico faz uma leitura pessimista de si mesmo, destacando em uma grande lista de adjetivos insólitos, ironizando a impossibilidade de “ouvir de alguém a voz humana”, denunciando o cinismo descarado daqueles que são incapazes de revelar ao mundo as suas fraquezas, seus atos ridículos, suas infâmias, figurando a imagem de príncipes.
5.2 Machado de Assis
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado ironiza a morte como a única possibilidade do homem se desvincular da hipocrisia. Ele argumenta que “Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência”(ASSIS, 2018, pg. 86). Nesta citação, é detectada a forma de disfarce que Pascal menciona no fragmento 978, um disfarce que se faz necessário para uma melhor apresentação à sociedade.
Machado argumenta que na morte podemos “confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há plateia.”(ASSIS, 2018, pg. 88). Para Pascal, essa condição do ser humano tem origem no processo do abandono do homem por Deus no momento do pecado original, um fato que o ser humano conviverá com ele durante toda a duração da vida
Para finalizar, Brás Cubas revela na voz do autor defunto que suas confissões verdadeiras não pesam mais dentro do cenário póstumo. Ele revelou os motivos verdadeiro que o conduziram a desenvolver o “emplasto Brás Cubas”, explicando que o que lhe mais interessava era o “Amor da Glória”, tendo como fundo de pano “aliviar a nossa melancólica humanidade” (ASSIS, 2018, pg. 8)
6 A invenção do eu nas mídias sociais
O tema do amor-próprio, desenvolvido por Pascal relaciona-se com assuntos contemporâneos, como os livros de autoajuda e as palestras motivacionais, bem como a construção daquilo que hoje é conhecido por autoestima. Pascal denuncia que o homem quer ser objeto da estima dos outros, como discutimos no capítulo 4. O filósofo em estudo salienta que “a natureza do amor-próprio e desse eu humano está em não amar senão a si, e em não se considerar senão a si”. Parafraseamos as palavras de Erasmo de Rotterdan para complementar essa ideia, sugerindo que na ausência daquele que possa te elogiar, elogie-te a ti mesmo.(ROTTERDAM, 1995)
Levando em consideração o que foi apresentado no parágrafo anterior, tentaremos observar os assuntos sugeridos, sumariamente, através da ótica de Blaise Pascal. O foco principal do presente capitulo é fazer uma reflexão da possibilidade da invenção do Eu através das mídias sociais.
Ainda quando não existia muita tecnologia com apelo ao visual, os cosméticos preenchiam satisfatoriamente aquilo que os algoritmos de tratamento de imagem faz nos dias atuais de maneira muito mais sofisticada. Os chamados filtros do aplicativo são capazes de corrigir imperfeições de imagens previamente capturadas, podem deixar as famosas ‘selfies’ com imagens aparentemente com menos idade do que realmente se tem, fazendo quase um processo de rejuvenescimento. Neste caso estamos atratanto apenas do aspecto físico, entretanto, o aspecto moral, ético e psicológico são possíveis alvos da mesma crítica,
Esforçamos para analisar a filosofia que possa estar ocultada em uma imagem publicada em certa mídia digital: em um primeiro momento, uma selfie tratada com os melhores disfarces digitais, atuam engando o autor da selfie, que passando a acreditar que aquela imagem largamente tratada representa o que de fato a pessoa é na vida real, (uma ideia muito similar aquela representada pelas sombras da alegoria da caverna de Platão). Em um segundo o momento, aquela publicação da imagem modelada digitalmente nas redes sociais enganam todos aqueles que visualizaram a imagem, pois aquele que está imerso no mundo digital é incapaz de distinguir o tratamento que a imagem recebeu. Em um terceiro momento, o prestígio daquela imagem postada, volta para o autor da publicação, deixando que ele se engane pelo falso prestigio que aquela imagem gerou.
As publicações das redes sociais, ecoam pelas altas velocidades das redes cibernéticas, colocando no ser humano aquele disfarce que conquista os aplausos alheios que pascal detectou na França do século XVII, dessa forma, Venturine nos alerta que “A hipocrisia é um dos sintomas do homem contemporâneo, este artífice do disfarce, da propaganda de si, da aparência de virtude, da invenção de si nas mídias sociais”.(MARTINS, 2019, p. 83)
Dessa forma, a tecnologia fornece condições para que a civilização superconectada recrie-se e reivente-se ante às sombras da ignorância de sua própria condição, projetando e replicando falsas imagens de si, e integrando-se aos costumes sociais do contemporâneo. Reafirmando esta questão trazemos o argumento de Ricardo Mantovani. Segundo ele, “Existir junto a outros eus resume-se a isto: representar uma farsa tão talentosamente quanto possível, a fim de que, após muito inebriar a plateia, possamos ao som dos aplausos – dissolver-nos no personagem ”.(MANTOVANI, 2017)
7 Considerações finais
Este pequeno trabalho buscou levantar algumas reflexões de uma das possíveis consequências do pecado adâmico, propostos por Blaise Pascal. As hipocrisias do cotidiano que permeiam as relações humanas denunciadas pelo filósofo francês permanecem como protagonistas marcantes no grande palco no qual encenamos nossas vidas.
Durante o desenvolvimento deste trabalho ficou evidente que o pensamento pascaliano oferece múltiplas possibilidades de discussão e foi um desafio manter o artigo enxuto o bastante de modo a atendera finalidade a qual se destina.
Foram analisadas as questões originarias dos subterfúgios desenvolvidos pelo homem para viver em sociedade a partir do livro do gênesis, impactando de forma severa toda a civilização. Independentemente de todas as formas de religiosidades as quais podemos assumir, inclusive a ausência delas, estudar pascal enriquece a possibilidade de reconsiderar o campo cristão como interpretação das relações humanas, seja com forte apelo ao sagrado, seja em sentido mais secularizado.
O capítulo 5, tendo a necessidade de suprimir outros autores que gostaríamos de analisar; devido a limitação da dimensão do artigo, merece uma oportunidade de ser desenvolvido posteriormente em uma outra forma de estudo.
O capítulo 6, necessita ainda melhorar a argumentação e passar por um processo de restruturação, encontra-se ainda em estado de desenvolvimento
Concluímos este artigo com as palavras de Ricardo Mantovani, que expressa sua percepção da condição humana, dialogando com o pensamento pascaliano. Ricardo nos leva a uma reflexão que nos encaminha para olharmos para as nossas ações do dia a dia, com a esperança de que venhamos ser aquela errata pensante, na qual Machado de Assis especulou em Memórias Póstumas de Brás Cubas:
“O homem é, antes de tudo, um animal mentiroso. Não obstante, mentir, para nós, é muito mais do que um bom hábito: é uma condição sine qua non de nossa existência desgraçada – isto é, de nossa existência sem Deus”.(MANTOVANI, 2017)
8 Referências
ASSIS, M. DE. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 1. ed. Brasília: Edições Câmara, 2018.
DE-ARRUDA, I. V. A arte de fingir dor: o que diz o poema Autopsicografia sobre quem somos como humanos. Revista Brasileira de Psicoterapia, v. 21, n. 3, 2019.
MANTOVANI, R. V. I. 10 lições sobre Pascal. 1. ed. Petrópolis, RJ: vozes, 2017.
MARTINS, A. V. Do Reino Nefasto do Amor Próprio. A Origem do mal em Blaise Pascal. São Paulo: Filocalia, 2017.
MARTINS, A. V. A verdade é insuportável: ensaios sobre a hipocrisia. São Paulo: Filocalia, 2019.
PASCAL, B. Pensamentos. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
PESSOA, F. Antologia Poética. 1. ed. Porto Alegre - RS: L&PM POCKET, 2012.
ROTTERDAM, E. DE. Elogio da loucura. 1. ed. [s.l.] Edipro, 1995.
SHAKESPEARE, W. Hamlet. 1. ed. Porto Alegre - RS: L&PM POCKET, 2018.