Diletantismo filosófico X
Descartes, através da dúvida metódica, constata a existência do ser pensante. Algo como: se duvido, não duvido que duvido, então penso, logo existo. Buscava ele um ponto de partida sólido para uma filosofia rigorosa, o que contrastava com o ceticismo da época. Certamente, é uma inovação na história da filosofia, e pensadores posteriores, como Kant, Husserl e Heidegger, o pressupõem. O cogito assim marca uma virada na filosofia, mas também impõe muitas crenças irrefletidas no senso comum e até na academia. Muitos acreditam que o cogito dá fundamento ao "eu". Mas será que essa leitura está correta?
Existe, então, um ente sujeito que se relaciona com um outro ente, o objeto. Ambos os entes emergem da consciência do ser-em-busca-de-si, que é o ser negado. Assim, o sujeito se afirma como forma que é negada e generalizada. O ser, que flui na afirmação da forma, passa pela reflexão na negação de si. Logo, o sujeito aqui é um conjunto de reflexões fruto da negação, que são representações, signos da experiência de afirmação e negação. Essa estrutura do sujeito, particularizada pelo ser-em-busca-de-si, é também a estrutura do objeto e da relação sujeito-objeto, bem como do próprio conhecimento que dela deriva.
O ser-em-busca-de-si, ao negar a forma que particulariza o sujeito, ordena a totalidade das formas de ser. Dessa maneira, as transformações no sujeito resultam da rotação natural das formas de ser estruturadas pela particularização e negação. Cada nova forma implica uma ótica distinta que o sujeito pode assumir. Como o ente é, e assim sendo, ele tem em si, sob a ótica do ser que é, a totalidade das formas. Então, perceber é constatar a própria forma que lhe é ontologicamente implícita. Assim, sujeito e objeto são antes uma distinção de vetor.
Importante observar que a escolha por partir do sujeito para alcançar o objeto se impõe mais pela didática do que por uma exigência racional, sendo indiferente para o ser-em-busca-de-si partir daqui ou de lá.
Sabendo que o ser em busca de si possui um movimento que vai do todo para a parte (particularização) e outro que vai da parte para o todo (generalização), o ente atual é a interseção desses dois movimentos e é sempre o presente no fluxo temporal. Logo, o fenômeno da relação sujeito-objeto-conhecimento se dá pela conjunção dos entes envolvidos neste vértice que conecta os dois movimentos da consciência e assim funda a própria realidade, que é sempre aqui e agora.
Feita essa digressão ontológica do sendo que é ser negado, conjunção de ser e não-ser, que é o ser em busca de si, retornemos a Descartes. Quando ele afirma a proposição "penso, logo existo", ele infere o próprio ser-em-busca-de-si enquanto fenômeno presente, fundamentando a presença que observa o sujeito pensante. Então, o "eu" proposto por Descartes é transcendental e insubstancial, não se confundindo com o que tradicionalmente se entende por "eu".