No gramado da saudade: reminiscências romanceadas de um espetáculo que não vivenciei
No gramado da saudade: reminiscências romanceadas de um espetáculo que não vivenciei
Eu era apenas uma criança de cinco anos, ainda envolta nas brumas da inocência e dos primeiros lampejos de memória, em minha terra natal, São Gonçalo, quando a Sociedade Esportiva Sousa desafiou o Club Sportivo Sergipe, em 1974. Aquele jogo aconteceu no Estádio Antonio Mariz. Não pude estar presente, e a memória que hoje carrego não é a de um testemunho ocular, mas de um encanto tardio, arquitetado e romanceado nas recordações e histórias que ouvi ao longo dos anos. As décadas que se seguiram moldaram em minha mente uma anamnese não menos real, porém forjada nas histórias que cruzaram gerações e que o sertão preservou e reverberou como uma lenda.
As lembranças desse jogo, moldadas pelas narrativas e pelo fascínio do futebol sertanejo, foram gestadas ao longo do tempo.
Como em um romance, os detalhes da partida entre Sousa e Sergipe transbordam em minha imaginação, fundindo-se à paisagem árida e encantadora do sertão. Através das histórias compartilhadas ao pé da calçada ou no convívio familiar, o jogo que nunca vi tornou-se um espetáculo grandioso dentro de mim — uma saga onde heróis errantes, como Edilson, despontam entre lendas e contradições.
As vozes do sertão ecoaram esse conto como uma fábula, e o protagonista, o craque da Sociedade Esportiva Sousa, naquele dia aprontaria uma de suas maiores peripécias.
Esse confronto, distante e ao mesmo tempo tão próximo, habita o coração de Sousa como uma daquelas memórias coletivas que resistem ao tempo, marcando gerações e se enraizando na alma do sertão. O gramado da saudade, assim, floresce nas minhas reminiscências, ainda que romanceadas, de um espetáculo que, paradoxalmente, vivi através dos outros.
O vento soprava leve, mas trazia consigo a eletricidade de um domingo que prometia entrar para a história. As ruas de Sousa fervilhavam com a energia de torcedores ansiosos, como se o próprio Sertão respirasse o jogo que se aproximava.
Assim, com o sol pintando o horizonte em tons dourados, a cidade se preparava para muito mais do que uma simples partida. Naquele gramado, o destino de um herói seria escrito, e a saudade, um dia, faria deste momento uma lenda.
Aquele domingo era ansiosamente aguardado, uma expectativa própria dos grandes confrontos do futebol. O estádio de Sousa estava lotado, e não era para menos: a Sociedade Esportiva Sousa enfrentaria o poderoso Club Sportivo Sergipe, uma equipe cujo nome trazia consigo um peso histórico imenso. O Sergipe, tricampeão sergipano nos anos de 1970, 1971 e 1972 e detentor dos títulos de 1974 e 1975, era temido em todos os campos onde atuou. Um verdadeiro gigante do futebol nordestino. Além de seu plantel fortíssimo, contava com um pilar defensivo formidável: Chico de Dalva, um sousense de sangue e um dos maiores zagueiros de sua geração, que já fora companheiro de Edilson em tantas batalhas sob o manto da Sociedade. Do outro lado, a Sociedade, empurrada pela força e paixão da torcida sousense, preparava-se para um duelo que seria mais do que uma simples partida — seria um embate entre a glória consolidada e o talento irreverente de um homem que, naquele dia, parecia ter escolhido outro campo para jogar.
Era uma tarde de sol ardente, típica do sertão, e a expectativa no estádio de Sousa estava alta.
A Sociedade Esportiva Sousa, orgulho da cidade, enfrentava o Sergipe em um jogo decisivo para a glória do futebol sousense. O nome que mais ecoava pelas arquibancadas era o de Edilson, o maior craque que o sertão já havia visto. Mas o craque não apareceu. Todos o esperavam para dar início à partida, mas o silêncio era profundo quanto a ele.
Edilson, o maior nome da Sociedade, estava desaparecido, e boatos circulavam entre os torcedores que o craque não jogaria. Os torcedores não podiam acreditar no que estava acontecendo. Aos 24 anos, no auge de sua genialidade, Edilson deveria ser o protagonista daquela tarde. Mas rumores percorriam as arquibancadas como rastros de pólvora: diziam que ele havia passado a noite no cabaré, mergulhado em álcool e prazeres momentâneos, envolto nos braços das "mulheres da vida", em uma farra que havia durado até a manhã.
Era uma história repetida, como se a genialidade de Edilson fosse uma faca de dois gumes — onde nascia sua arte, nascia também sua indisciplina.
Para muitos, ele era indomável, tanto dentro quanto fora de campo. Era difícil imaginar que ele deixaria o time na mão em um jogo de tamanha importância. A partida começara sem a presença dele, ídolo maior de uma cidade, tragado pelos excessos da noite anterior, deixou-se levar pelas tentações dos cabarés sousenses. Entre goles de cachaça e abraços das mulheres da vida, o craque da cidade adormeceu no calor do pecado.
O primeiro tempo daquela partida foi um espetáculo de superioridade do Sergipe. Desde o apito inicial, a equipe campeã sergipana mostrou por que era uma das maiores forças do futebol nordestino. Jogava com a confiança de quem carregava inúmeros títulos estaduais em seu currículo, uma verdadeira máquina montada para vencer. Enquanto o sol castigava o gramado, o Sergipe parecia inabalável, atuando como se o calor fosse apenas mais um detalhe insignificante diante de sua fome por mais uma vitória.
Chico de Dalva, que agora defendia o time de Aracaju, parecia uma muralha intransponível, com sua experiência como antigo companheiro de Edilson na Sociedade lhe dando uma vantagem estratégica. Os torcedores sousenses já temiam pelo pior, assistindo seu time ser sufocado por aquela máquina de jogar futebol. A equipe dominou todo o primeiro tempo.
Aos quinze minutos, veio o primeiro golpe. Uma troca de passes rápida no meio de campo, liderada pelo camisa 10 sergipano, desmontou a defesa da Sociedade com precisão cirúrgica. Em um lampejo, ele encontrou uma brecha e lançou a bola em profundidade. O centroavante alvi-rubro, veloz como um raio, avançou, invadiu a área e, de frente para o goleiro sousense, tocou rasteiro no canto esquerdo, sem chances de defesa. O estádio emudeceu por um instante, enquanto os jogadores do Sergipe celebravam o primeiro gol com tranquilidade, como se fosse algo natural.
Aos trinta minutos, o Sergipe ampliou o placar com uma jogada ainda mais impressionante. A defesa da Sociedade estava perdida, sendo constantemente sufocada pelos ataques coordenados do adversário. O gol adveio de um cruzamento perfeito da direita, em que o ponta esquerda estufou as redes em uma cabeçada fulminante. A bola parecia ter sido disparada de um canhão. O goleiro da Sociedade, Marcelo, apenas observou, impotente, enquanto o Sergipe marcava o segundo gol. Faltava apenas torcida sergipana no estádio para a festa ser completa.
Já perto do fim do primeiro tempo, aos quarenta minutos, veio o terceiro golpe — um verdadeiro soco no estômago da Sociedade Esportiva Sousa. O Sergipe, jogando com a frieza de um campeão, não deu sinais de desacelerar. Em mais uma jogada envolvente, a bola foi trabalhada com maestria pelo ponta esquerda, que encontrou espaço para um lançamento preciso. Desta vez, foi ponta direita quem aproveitou a chance. Ele driblou o último defensor com elegância e, com calma quase arrogante, encobriu Marcelo com um toque sutil, selando o terceiro gol para o Sergipe.
O domínio era total. O Sergipe estava irrepreensível. Parecia uma equipe imbatível, praticamente flutuando em campo. Seus passes eram rápidos, suas movimentações, precisas. A defesa da Sociedade, por sua vez, estava desorientada, sem respostas para o bombardeio que vinha de todos os lados.
O placar de 3 x 0 ao final do primeiro tempo parecia irremediável. A temível Sociedade estava encurralada, sendo dizimada por um Sergipe implacável, que demonstrava por que era uma potência indiscutível do futebol nordestino.
No intervalo, com o placar adverso para a Sociedade, já se tinha a derrota como certa. O Sergipe jogava como um relógio suíço, com Chico de Dalva à frente da defesa, impondo uma muralha intransponível. Nada passava. Ele parecia decidido a calar sua cidade natal com uma atuação impecável, em um duelo que parecia já perdido antes mesmo de Edilson colocar os pés em campo.
A torcida estava calada. Aquele primeiro tempo terminou em 3 a 0, e o domínio era absoluto. O time da casa parecia resignado à derrota. Alguns torcedores rubro-verdes pensaram em ir embora, achando que nada interessante iria acontecer naquele campo castigado pelo tempo e pela pressa das críticas. No entanto, algo na torcida pediu paciência, com uma distante expectativa que o melhor ainda estava por vir. Os torcedores murmuravam, divididos entre a decepção e a esperança de que algo improvável acontecesse, mas decidiram ficar.
Logo surgiu um burburinho entre a comissão técnica, jogadores e torcida. Comentavam que a diretoria havia mandado buscar Edilson à força. E não demorou muito até que o vissem, cambaleante, entrando no vestiário com o olhar cansado e os traços de uma ressaca evidente. Como uma cena tirada de um drama improvável, Edilson apareceu. Seu uniforme mal ajustado e a barba por fazer contrastavam com o craque que todos esperavam ver.
Trazido quase à força pelos dirigentes, ele saiu dos bastidores cambaleante, o rosto marcado pela noite insone. Havia nele uma mistura de cansaço e desprezo, mas também aquela fagulha nos olhos, a mesma que fazia dele uma lenda viva nos campos de Sousa.
Foi como um acontecimento surreal, as portas do vestiário se abriram, e lá estava ele. A torcida o viu. Edilson, ainda com o cheiro da ressaca e os olhos semicerrados. Seu rosto trazia a marca das horas mal dormidas, mas, de alguma forma, os torcedores sentiam que aquela genialidade poderia brilhar naquela tarde.
A indignação na arquibancada deu lugar a uma tensão silenciosa. Será que ele ainda poderia mudar o rumo do jogo?
Fosse como fosse, o fato é que o jogador apareceu no campo, mal amarrando as chuteiras, com os olhos ainda turvos, cabelos molhados de um banho forçado, mas com a aura de um gênio que todos conheciam.
Quando Edilson pisou o gramado no segundo tempo, o ambiente mudou. O Sergipe, tão seguro até ali, começou a sentir a presença do craque, e, aos poucos, a confiança deu lugar a uma inquietação perceptível. A tensão mudou de dono.
Quando o segundo tempo começou, ninguém esperava o que viria a seguir. O jogo viraria uma história épica, quase um mito. Aos poucos, o impossível se desenrolava diante dos olhos dos presentes.
Logo nos primeiros quinze minutos, Edilson, com a bola nos pés, arrancou pela ponta direita. Ele passou por dois marcadores como se fossem simples estacas fincadas no chão. Chegou à área, olhou para o goleiro adversário e, num toque sutil, colocou a bola no canto oposto. Era o primeiro gol da Sociedade, e a torcida renasceu das cinzas como um fênix. O estádio, como que atônito por alguns segundos, explodiu em um grito uníssono. Todos sentiram que a fera estava acordada.
Se eu estivesse lá, olharia para os lados, incrédulo. Indagaria: Teria mesmo visto aquilo? Teria aquele homem ressacado feito algo que mais parecia uma mágica? Mas o espetáculo estava apenas começando.
A bola parecia gravitar em torno de Edilson. Apesar da ressaca, sua magia falou mais alto. Era como se o talento natural, adormecido até então, estivesse esperando exatamente por aquele momento. Edilson mostrou que, mesmo que fisicamente debilitado, carregava algo que nenhum treino ou zaga poderia conter: um instinto inato para o gol. A ressaca, o cansaço e a noite de boemia eram apenas sombras que evaporavam ao sentir o couro em seus pés.
Minutos depois, o Sergipe ainda se recuperava do baque quando um contra-ataque se desenhou. Mais uma vez a bola caiu nos pés de Edilson. Como se o tempo desacelerasse, ele olhou ao redor e, com uma calma que beirava a arrogância, de fora da área, chutou sem força, como quem não quer nada. A bola foi ganhando altura, se curvando no ar, até que o goleiro, desesperado, tentou alcançá-la, mas foi em vão. A bola entrou, encostando no travessão antes de beijar a rede. O segundo gol. Edilson era o dono absoluto do campo. A cada passe, a cada toque, o atleta encarnava o jogador que ninguém mais poderia ser.
Este gol inflamou os torcedores, que agora começavam a acreditar no impossível. E o impossível viria, como em um enredo de cinema.
O Sergipe estava atordoado. O craque, mesmo com o corpo aparentemente exausto, exalava uma habilidade que nenhum adversário conseguia conter.
Mas faltava o toque final.
O tempo se esgotava, o placar ainda marcava 3 a 2 para o Sergipe, mas a sensação no ar era de que algo extraordinário estava prestes a acontecer. E aconteceu. Aos 44 minutos, Edilson recebeu um passe de Zamba na entrada da grande área, deixou três marcadores adversários no chão, inclusive seu amigo Chico de Dalva, e tocou rasteiro no canto esquerdo, sem chances para o arqueiro sergipano, e a bola morreu no fundo das redes. O terceiro gol. O empate estava selado, e Edilson havia se imortalizado.
Edilson, o insubordinado, o craque que errava fora das quatro linhas, marcaria três gols espetaculares em 45 minutos. Nem mesmo Chico de Dalva, que tantas vezes dividira o campo com ele, conseguiu detê-lo. Com cada gol, Edilson desafiava o destino, parecia exorcizar seus próprios demônios e lembrar a todos ali que, por mais falho que fosse, sua maestria estava viva, ardente, incomparável. O estádio, antes silencioso, explodiu em um frenesi indescritível. Não restavam mais dúvidas: diante dos meus olhos imaginários, eu já não via apenas um jogador. Via alguém que, de forma quase divina, compreendia o futebol numa profundidade que nós, meros mortais, só podemos sonhar alcançar. O grito da multidão era ensurdecedor. Naquele instante, mesmo sem estar presente, eu me sentia transportado ao centro daquele espetáculo. A história estava sendo esculpida em pleno campo, e eu, por meio das vozes que a contaram ao longo dos anos, era uma testemunha privilegiada.
Naquele exato momento, todos compreendemos a verdadeira essência do futebol. Não é algo que se descreve em palavras, mas algo que vibra no peito e nos faz sentir vivos. Até então, ninguém jamais havia experimentado o que foi visto naquele gramado. Edilson não era apenas uma lenda gerada nas histórias que o sertão canta. Ele era a própria definição de gênio em campo, alguém capaz de transformar a desordem em arte.
Quando o apito final soou, o imponente Sergipe, multicampeão, havia sido reduzido à impotência diante de um homem que, com apenas meio tempo de jogo, subverteu o destino daquela tarde. Nem mesmo Chico de Dalva, o zagueiro monumental, conhecedor profundo das artimanhas de Edilson, conseguiu conter a torrente de magia que se desenrolou no segundo tempo.
Assim, o grande Sergipe, com todo o seu prestígio e poder, foi envolvido não por uma equipe, mas pela chama incontrolável de um homem que, em apenas quarenta e cinco minutos, lembrou ao mundo do futebol quem ele realmente era.
Naquele dia, o sertão não assistiu apenas a uma exibição épica da Sociedade Esportiva Sousa. Assistiu à consagração de um talento bruto e indomável que, apesar de suas fraquezas e excessos, brilhou intensamente, como uma estrela fugaz riscando o céu vasto e eterno do sertão.
Eu não estive lá. Não vi com meus próprios olhos. Mas, ao longo dos anos, o eco daquele jogo me alcançou através das histórias contadas por quem o viveu. E, hoje, ao fechar os olhos, posso sentir o vento quente no rosto, ouvir o clamor da multidão e ver, nítido como nunca, Edilson — o craque que venceu o cansaço, o álcool e a escuridão da noite para escrever, com genialidade, mais uma página inesquecível do futebol sertanejo.
E para os que, como eu, não puderam estar presentes, resta a memória viva que circula em cada canto, nas palavras daqueles que testemunharam — ou imaginaram — o impossível acontecer diante de seus olhos. A partida terminou, mas a lenda permanece, eternizada no coração do sertão.