Minha história com canivetes.

Marco Bittar

 

Quando criança, anos sessenta, raramente via alguém portando um canivete na cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, era comum ver um canivete sobre qualquer balcão de loja ou padaria. A maioria era usado em embrulhos, cortando os barbantes de algodão nas padarias ou de sisal nas lojas de ferragens e afins. Não sabia nada de canivetes, pois meu pai nunca portou nenhum que eu soubesse. Mas, não sei explicar, sempre quis ter um. Quando completei a idade de dez anos, fui agraciado com um canivete extraordinário para mim. Era um pequeno canivete japonês, Shell, que fechado tinha sessenta milímetros, cuja lâmina tinha trinta e seis milímetros. Era um verdadeiro “multitool”, possuía essa lâmina de corte com os trinta e seis milímetros, uma pinça, uma chave de fenda, uma tesourinha de unhas, uma lima de unhas com um limpador de unhas. Para um garoto de dez anos era um achado, uma vez que no Brasil isso não era fabricado e nem encontrava-se com facilidade nada parecido, naquela época. Usei muito esse canivetinho, ele era um faz tudo, de apontar os lápis na escola, até fuçar qualquer coisa com uma das suas ferramentas.  

- Nossa como ele sofreu, nesses dois primeiros anos!

 Entretanto, como as boas energias nos proporcionam um certo “up-grade” na vida e nos nossos anseios, novamente próximo ao meu aniversário dos doze anos, me deparei em uma importadora, de uma amiga da minha mãe, com o primeiro Victorinox que vi na vida. Nossa, era um Golias, tinha mais que cinquenta por cento do tamanho do meu canivete. Tinha mais funções do que eu saberia a função certa para o trabalho certo. Seja como for acho que olhei demais, talvez mesmo hipnotizado pela peça vermelha com uma balestra e uma cruz no meio de cor meio amarelada quase dourada. Eu não tinha a menor noção do que era aquele ícone dos canivetes, para mim como garoto, era uma ferramenta para um ritual de passagem em um mundo onde a responsabilidade era dada a quem tinha algo que pudesse fazer coisas boas ou não tão boas, ou seja virar “adulto”. Acho que todo o tempo que fiquei na loja não sai de perto daquela maravilha hipnótica, provavelmente devo ter sido notado por todos da loja, já que me conheciam desde a mais tenra idade. Bem fui para casa sonhando com tal canivete, mas sem saber nada sobre ele e muito menos ousar pedir para os meus pais, não era tão abusado assim, apenas comentava sobre o que vi, mais nada.

 

Para minha surpresa no dia do meu aniversário abri uma caixa que continha uma máquina de hipnose, um Victorinox vermelho de um modelo próximo ao Ranger atual, mas que nunca consegui identificar com fidelidade. Nossa que alegria ganhar tal máquina, agora eu já era um “adulto” na minha cabeça, os meus pais confiavam em mim, eu agora tinha responsabilidades com terceiros, afinal eu tinha uma lâmina de sessenta milímetros, isto é, uma lâmina do tamanho do canivete que eu possuía anteriormente. Era um mar de funções e todas tinham necessidades óbvias. Carregava ele no meu estojo escolar, junto aos lápis e no bolso na hora do recreio para abrir refrigerantes, com isso eu era o máximo, ou pelo menos me achava. Com os anos passando e a idade símbolo dos dezoito anos chegando, vestibular e outros afazeres, ele era colocado em uma bolsinha de feltro, não posso chamar de bainha, pois ela era sem nada para fechar ou prender na roupa, era apenas para não arranhar muito as talas, e carregava ora no bolso ora em uma bolsa de livros ou coisas parecidas, até o advento das “Capangas” onde ele passou a residir com mais frequência.

 

A vida foi seguindo, veio a faculdade, e ele comigo. Veio o primeiro emprego e ele comigo, o primeiro carro e ele comigo, a formatura e ele junto. Perdi as contas das vezes que ele me tirou do sufoco, fosse serviço mecânico ou elétrico ele estava lá. Sem contar é claro as garrafas abertas as frutas descascadas ou mesmo os sandubas que eu comprava o pão (Bisnaga) mortadela e fazia os sanduiches para dividir com a turma. Todos sabiam que eu e ele estávamos sempre juntos. Então normalmente sempre que precisavam de algo que só ele poderia resolver, meus amigos pediam socorro comigo, ou melhor, com ele.

 

Casei e ele estava lá. Sempre junto, minha filha nasceu e lá estava ele no meu bolso. Até o ano de mil novecentos e oitenta e seis... Fiz uma viagem para o Paraguai com o meu compadre e nessas viagens o risco de assalto era grande, principalmente para quem viajava de ônibus. Na ida era a grana, na volta era a “muamba”. Sempre se corria o risco de um assalto. Então, prudentemente eu não o levei. Mas era uma situação horrível não estar com ele, pois ele era uma espécie de apêndice meu. Mas o objetivo desta viagem era comprar um relógio e algumas coisas que parentes pediram. Mas após rodar um dia inteiro no Paraguai de mil novecentos e oitenta e seis, conseguimos encontrar apenas um relógio verdadeiro, de qualidade e com bom preço, deixei para o meu compadre. Entretanto passei em uma loja com uma vitrine só de Victorinox, eu nunca tinha visto nada daquele tipo, no Brasil de então não tínhamos vitrines de Victorinox e nem o costume de ver tantos modelos. Eu nem sabia que tinha aquilo tudo, por um momento voltei aos meus doze anos e fiquei boquiaberto com tal vitrine e variedades, tinham vermelhos, brancos, pretos e com acabamentos de alox. Como não tinha conseguido comprar o relógio que eu queria, sobrou um dinheiro para outras aventuras. Já estava me sentindo sem roupa devido a ausência do meu canivete, então tomei coragem e comprei o que o meu dinheiro dava para comprar na época. Adquiri um Champion Preto, nossa ele tinha uma lente de aumento, uma chave Philips, o escamador de peixe com régua e tira anzol, sem contar a chave de fenda atrás, nossa era mais completo que o meu parceiro de juventude. Mas não tive grana para adquirir o SwissChamp que havia sido lançado naquele ano e que tinha até um alicate. Porém o medo de trazer e ser parado na fronteira com ele era real. Eu o coloquei ele na minha bota que era bem alta e vim. Torcendo para não ser assaltado no caminho.

 

Um ano depois e com a vida melhor profissionalmente, soube de um amigo que viajaria para o Paraguai e pedi a ele para comprar para mim o SwissChamp. Bem ele chegou e foi uma grande alegria, afinal foi um ano pensando se eu tivesse grana na época. Mas tudo se arrumou e lá foi o Champion para a gaveta do escritório do meu pai, já que ele não tinha nenhum. Mas eu sentia falta as vezes de uma ferramenta para limpar o lavador de para-brisa do meu carro, o que era feito com um alfinete para desobstruir os furos. Pensava eu por que a Victorinox não insere um alfinete no canivete. Em alguns poucos anos ela o fez, achei o máximo. Fui e comprei um modelo novo com o furo...

 

Bem assim começou a saga de a cada SwissChamp novo que saísse eu aposentava o que estava em uso e colocaria o novo para o serviço. Mas cada um tinha uma história própria, não possuíam os valores de mercado de hoje, em meados dos anos noventa quando o real e o dólar eram o mesmo valor não havia diferença de preços entre o Brasil e os EUA para a Victorinox, cheguei a comprar alguns lá. E assim foi que um ajuntamento de canivetes usados mas conservados deu início a uma coleção. Que com o tempo foi crescendo e tomando forma por temas e ferramentas. Passando a outros fabricantes e ganhando corpo de coleção. Muitos totalmente Mint sem jamais terem sido tocados, uma vez que estão em Blister, um deles comprei nos EUA durante as olimpíadas de Atlanta em mil novecentos e noventa e seis, lacrado até hoje e com o valor do mercado estampado no blister.

 

Com a minha esposa a situação ficou mais interessante, pois ela vibra com as compras e me incentiva e procura algum modelo que estou caçando ou coisas assim, sem contar os que ela me dá de presente.

Mas é importante lembrar que a minha coleção começou com um ajuntamento, despretensioso, devido a não ter o que fazer com os canivetes usados que inicialmente não tinham o valor de revenda de hoje. Mas a coleção cresceu muito nos últimos anos e o garimpo se tornou muito divertido e ilustrativo com o conhecimento e informações que podemos agregar nas buscas, sem contar que o trabalho de limpeza e restauração, sem apagar a história da peça é super gratificante. Afinal podemos trazer a vida peças que estavam condenadas ao fundo de uma maleta de pesca ou ferramentas, ou quem sabe parar no lixo.

- Ah! Já ia me esquecendo antes que alguém pergunte sobre o meu primeiro canivete o Shell japonês ou sobre o meu primeiro Victorinox, bem eles estão ótimos, em um lugar de destaque dentro da minha coleção, onde periodicamente, os limpo, troco o óleo, passo uma flanela, corto um jornal ou algo menos abrasivo e novamente os guardo lembrando que foram eles que me deram acesso ao mundo dos adultos. Hoje já passei de ser adulto, mas sou um cidadão da terceira idade, pela lei, mas não por vontade. Não me esqueço dos meus canivetes que me acompanharam por tantas situações, da infância a adolescência e nos primeiros anos da vida adulta. Pois os nossos amigos serão sempre inesquecíveis.

 

Marco Bittar,  Rio de Janeiro, 19 de Junho de 2022.  

 

 

 

Marcos Bittar.
Enviado por Taciano Minervino em 27/06/2022
Reeditado em 28/06/2022
Código do texto: T7547314
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