ENTRE LINHAS & ENTRELINHAS
OBS: devido ao tema abordado, MUITO ATUAL, reproduzo meu artigo postado no site OVERMUNDO em 25 de junho de 2009, agora sem a INTENÇÃO DE POLEMIZAR ou diminuir quem quer que seja !!! (2/abril 2021)
ENTRE LINHAS & ENTRELINHAS
Somente ontem, 20 de junho/2009, tomei conhecimento do texto de mestre Moraes -- sobre os apelidos na Capoeira -- mas o artigo traz tantos "ganchos" que me foi impossível ignorá-lo.
Afastado voluntariamente desta luta (nem sempre muito leal!) desde 6/1993, quando um "mestre-patinador" (...) quase matou meu irmão a pauladas, na presença de 15 alunos e um visitante/praticante americano (Jim Sera), sinto-me intimado a comentar trechos do pitoresco escrito do doutor Moraes "Diga-me o seu nome e dir-te-ei quem és", postado em seu blog
http://mestremoraes.blogspot.com/ em 11 de maio pp., mas meus comentários só farão sentido para quem ler antes o texto citado acima.
A meu ver a obra é uma imensa "casca de banana", na qual a maioria escorregou feio... pois, mais do que criticar apelidos, a mensagem é um libelo contra os Batizados.
Não há "envolvimento das elites" na Capoeira... e se, no distante passado, houve algum bispo, ministro do Império ou jornalista de renome envolvidos com ela, eram todos (mulatos, na maioria) gente do povo. Manifestação popular (?!) com elite dentro são os desfiles nos Sambódromos, num "carnaval de bobagens" que o povo verdadeiro paga apenas para ver e de longe. A tal "classe média" do Brasil mal consegue quitar as prestações do carro velho e a escola particular dos filhos.
Mestre Moraes admite que (a Capoeira? a elite?) "absorveu elementos EXTERNOS, ligados à escravidão" como não utilizar calçado, usar calças na canela. Faltou pouco para declarar que foram os senhores de engenho que "INVENTARAM" a Capoeira.
Embora praticada por escravos, êle praticamente lamenta que ela simbolize a ESCRAVIDÃO e vai além, declarando que sua confirmação "como mais uma manifestação de matriz africana passa por uma pesquisa mais apurada".
A perda do próprio nome -- argumento maior do texto -- se torna relativa no Brasil. Angolas e nagôs, entre muitos outros povos africanos, eram separados, as famílias desfeitas vendidas para locais distantes. Não falando português (talvez até falassem, Luanda era possessão reinol), poucos se lhes importava serem chamados de Beneditos ou Franciscos.
Definir o Batizado (na Capoeira ou fora dela) como "mais uma forma de racismo" é pura sandice de mestre Moraes, mesmo que a maioria dos apelidos fosse pejorativa, afirmação da qual discordo.
Moraes incorre em dois êrros: a) aceita que as elites entraram na Capoeira e o Batizado seria consequência disso; e b) apelidar o aluno só se constituiria RACISMO se o praticante fosse mulato ou negro. Na época da criação do Batizado (e da Cap. Regional, junta êle na mesma frase!), nos anos 50/60 do século passado, eram poucos os negros na Capoeira, à exceção da Bahia e Maranhão, salvo engano meu. Frequentei a Capoeira da zona sul carioca -- onde Moraes atuava, aliás -- entre 1975 e 80, em diversos grupos e locais, sem ver nelas mais do que 2 ou 3 negros.
Quanto aos negros alforriados, depois da Lei Áurea possibilitou-se a muitos deles retornarem para a África. Imagina-se que recuperariam lá os nomes de seus ancestrais africanos... ledo engano ! Luanda tem bairros inteiros de Duartes, Santos, Gomes, Souzas e Silvas, todos orgulhosos de suas origens... brasileiras.
Mas, se a elite deu na marra seu sobrenome ao ex-escravo, providenciou imediatamente a TROCA do seu próprio. Resumindo, Moraes virou Morais, os Matos e os Rebelos acrescentaram mais um T ou L ao sobrenome, o S virou Z e assim por diante.
Escravizados já na própria África -- por via de disputas tribais (ainda existentes 5 séculos depois) e devido a dívidas, furtos e outros crimes -- o africano adulto não teria como esquecer seu nome E ORIGEM.
Batizados ainda nos portos da África ? Com a imensa falta de missionários para a catequese, fica dificil se imaginar um jesuita a postos só para "renomear" o escravo, sem anotação ou registro algum... até porque a Igreja Católica considerava o Negro um ser SEM ALMA, por isso concordava com a escravidão. Nas fazendas, sim, graças aos barões cristãos isso faria sentido.
E juntos, pelo infortúnio, na mesma senzala continuavam inimigos: se um nagô planejasse fuga, haveria sempre um benguela, um bantu, quimbundo, cambinda, congo, fulah ou angola para denunciá-lo ao capataz. Isso é História...
(Consulte-se o diário dos cientistas SPIX & von MARTIUS, que cruzaram o Brasil por 10 ou 15 anos, para mais detalhes.)
Andar descalço e com calças pelas canelas nunca foi "privilégio" de escravos: quase todos os pobres da Idade Média na Europa andavam assim, calçados eram caríssimos e longas roupas arrastando no chão eram luxo da realeza. A Angola baiana, cansada das perseguições de uma polícia venal, corrupta e injusta -- qualquer semelhança com os dias atuais é mera "coincidência" -- deu ares mais decentes (?!) (ou brancos ?) às suas rodas e festas, definindo a calça social e o SAPATO como partes integrantes de sua prática.
Fotos antigas do "brinquedo" no cais dos portos baianos (ou em praias próximas) mostram angoleiros descalços e com sapato, rodas só com 2 berimbaus e sem atabaque, até porque a falada TRADIÇÃO nunca existiu na Capoeira, onde a qualidade maior de quase todos é o CINISMO e sua filosofia (se é que têm alguma ?!) é... "faça o que eu digo, mas não o que eu faço!" Isso perdurará pelos séculos afora.
Doutor Moraes se preocupa com um pequeno aspecto (os apelidos) da Capoeira, quando parcela maior -- instrutores, professores, mestríssimos e grãos-mestres -- está a deturpá-la e "modernizá-la" sempre mais.
Chulas racistas (dá no Negro / pega esse Negro...), rodas nas ruas que viram verdadeiras batalhas e os preceitos antigos (vulgo tradições) sendo desrespeitados a toda hora são coisa comum.
Essa confederação-maravilha inventou toda sorte de aberrações, em seus primeiros dias (1992/3), inclusive festivais de "passo-a-dois" e campeonatos infantis. Admitia considerar como velhos Mestres (?!), dezenas de preguiçosos oportunistas que se dedicaram muito pouco à Capoeira... e sabiam menos ainda. (...)(trecho autoCENSURADO, para "adequar-se à nova LEI DA MORDAÇA, de Dilma Roussef.)
Não posso me alongar mais, embora os deslizes cometidos por mestre Moraes dêem para "fazer uma feira", tal a quantidade. Conheci Moraes (*1) num jogo memorável com "Camisa" (em 1976?) num clube na Ladeira do Leme que. dizem os boatos, funcionava como cassino.
Quase todos os velhos professores do Grupo Senzala nessa época (1975/80) se diziam alunos vindos de Bimba ou, pelo menos, da Regional Baiana. Os uniformes ("abadás") eram longos, cobriam a frente do pé e alguns tinham UMA ALÇA que passava pela sola. Eram de lycra, cintura alta quase cobrindo o umbigo. Hoje, vejo fotos de Batizados onde o aluno expõe "meio rabo" para a platéia e um trazia o nome do grupo estampado de um lado a outra da bunda.
Os NOMES, como as caras e os títulos, hoje em dia ENGANAM ao mais sagaz dos filósofos e não vai ser mudando apelidos que iremos melhorar isso. Como bem diz o amigo... "a História está repleta de fatos", que o sr. cita sem esclarecer, além de frases que são verdadeiros enigmas.
Os apelidos, nos antigos, protegiam SEUS NOMES REAIS e não serviam "para se esconderem da polícia" (?!), absurdo intencional da parte do Autor. A "explicação" sobre a investida policial contra homônimos carece de sinceridade e clareza, a não ser que Moraes admita que cada "capoeira" perseguido tinha um bandido COM IGUAL ALCUNHA.
É obrigação de quem me lê (ou leu o artigo de me. Moraes) consultar o romance da capoeiragem chamado O CORTIÇO, de Aluísio de Azevedo. Famintos, sem casa nem trabalho, os ex-escravos uniam-se em cortiços, as "cabeças-de-porco" ou, dos Morros próximos, desciam à noite com paus e pedras, a assaltar quem encontrassem pelas vielas e caminhos.
-- "Aqui, del Rey!" -- substituido ao sabor dos tempos por... "Acuda", "Valha-me, Deus" ou "Socorro" -- tornou-se o têrmo mais usado pela plebe ignara, abandonada à própria sorte por uma polícia preguiçosa e covarde.
A sanha policial contra os "capoeiras" tinha intenção original: providenciar VOLUNTÁRIOS para as Guerras contra o Uruguai (1864/65) e o Paraguai (1865/69) ou, no Nordeste dos "cabras de LAMPIÃO", prover milícias, as "volantes", para combater os fanáticos do Antônio CONSELHEIRO (1895/97), mais dois apelidos a fazer História. Como filho de barão não podia ser soldado, "limpava-se as cadeias" (no país inteiro) da escumalha que enchia seus porões.
Por falar em guerras, como o Brasil ignorara os tratados de 1817 e 1827 e a Lei de 1831 -- que exigia o fim do tráfico de africanos -- a Grã-Bretanha em 1845 declarou guerra aos navios negreiros, além de proibir ao Brasil comerciar com qualquer nação, exceto ela. Nenhum motivo cristão a impeliu, dizem que os "tumbeiros" capturados iam parar nas costas da Jamaica, Antilhas e Cuba, ainda com escravos.
A produção nacional de açúcar, mais barata pela mão-de-obra escrava, e o comércio francês farto e variado, incomodava os súditos da velha Rainha. Com a desculpa de impedir o tráfico, capturavam navios comerciais aos montes, "às pencas".
O Brasil criou a pêso de ouro um tribunal internacional para condená-la (espécie de ONU), mas perdeu tempo, dinheiro e a causa. Ninguém ousava ir contra o poderio naval da Inglaterra, com uma esquadra de 1200 barcos, o terror dos 7 mares.
Daí, quando INGLESES aportaram aqui, verdes ou azuis, alforriados ou livres, foram postos a ferros. Afinal, a elite da época estava sendo privada das sedas e perfumes, dos vinhos, licores e champagnes, espelhos e vitrais, calçados e chapéus, corpetes e espartilhos, pintores, arquitetos e até LIVROS com as idéias de liberdade, igualdade e fraternidade.
Quanto à ANCESTRALIDADE do nome, só a tem quem OS PAIS instruíram para compreender isso. Iracemas oriundas de romances famosos, Albertinhos e Gabrielas nascidos de novelas de TV ou as "Lêyddis Khêittys" que os pais modernos "adaptam" do inglês para dar aos filhos não têm ORIGEM, afora as Louises e Francinettes, os Jean, Charles e François "importados" de França. Da raiz latina (ou grega) vieram 80% dos nomes atuais, sejam êles de santos, reis ou plebeus e suas preocupações com as "plagas européias" fazem pouco sentido.
ESCRAVA de todos nós, a CAPOEIRA segue mais LIVRE do que nunca... com ou sem BATIZADOS, iniciação tribal que existe no seio da Humanidade desde os tempos das cavernas.
Embora o amigo tenha esquecido (?!) é na África que os nomes, por tradição, se fazem acompanhar de apelidos. Primeiro, relativos ao DIA DA SEMANA em que se nasceu... depois, referindo-se à ocupação dos pais, local de nascimento, qualidades de algum membro do clã, vegetação, animais, etc. Em quase toda a Ásia e em boa parte da Europa é o NOME DE FAMÍLIA (leia-se, o sobrenome) que tem valor.
Como rito de iniciação, o Candomblé é um dos exemplos clássicos de "batismo", no caso de mulheres ("yaôs"), pois homens ligados a êle raramente vi. Em geral, apenas como "abatalás ou ogãs" (não sei se é a mesma coisa!), tocadores de atabaque nas cerimônias.
Capoeirista "macumbeiro" se contava nos dedos, até porque macho e religião não se atraem.
Moraes termina conclamando os Movimentos Negros... os mesmos que deixaram os sagrados movimentos das "yalorixás" virarem a "dança da rodinha ou da garrafa" SEM DAR UM PIO. São entidades "políticas"... ficam a espreitar um incauto qualquer que, num gesto discriminatório, possa lhes dar palco e câmeras para suas vaidades.
Dentro deles, nenhum projeto artistico a favor das crianças negras, nenhum cadastro de artistas negros, nenhuma pressão sobre o Poder público para favorecer essa imensa maioria de desassistidos e ignorados.
Quanto à Lei 10.639, a única da qual ouvi falar ordenava o ensino da História da África nas escolas públicas... não tratava nem de Capoeira e nem de apelidos.
Caro mestre: o senhor me surpreendeu... ao contrário. Espero que sejas mais feliz no próximo artigo. Com todo o respeito,
"NATO" AZEVEDO
(escritor e poeta)
OBS: (*1) o jogo com mestre "CAMISA" foi na verdade do "NECO", lá no clube do Leme, e não com Moraes. Essa correção é de 3/abril de 2021.
********
Sobre a obra
A partir de um artigo sobre apelidos, se (re)descobre a História do Brasil e o quanto falta ao povo para que a tal cidadania se instale de vez no país. As desigualdades continuam... enquanto se fala em democracia e POLÍTICA e, 3 séculos depois, o Brasil continua O MESMO, pelo menos para alguns (ou muitos).