A RELIGIÃO NA CAPOEIRA

A RELIGIÃO NA CAPOEIRA

"Na ânsia de liberdade /

nasceu a luta brasileira..."

Mestre SUASSUNA (1972)

Em 1994 "rabisquei" mais de 90 páginas sobre temas ligados à Capoeira e esse -- da prática pessoal "invadindo" atividade coletiva -- foi um deles. Talvez na época tal abordagem fosse prematura e, por interferência do Destino, tudo se perdeu. Agora, tal discussão (ou melhor, debate) se faz necessária, urgente até ! Em meus primeiros dias na Internet (2008/9) tive acesso a emails pessoais nos quais o mestre (de Capoeira) já se adjetivava evangélico... ora bolas, porque não usava então sua profissão, sua atividade de subsistência, entendendo-se que não fosse a própria Capoeira ?!

Recentemente, vi no Facebook convite para inscrição (só de mulheres) num evento de "Capoeira LGBT"... pronto, o leitor afobado já me definiu homofóbico ou, no mínimo, machista. Assim me tachou suposta pesquisadora (?!) local que insiste em levantar "o Passado de glórias" de duas figuras com quase nenhuma dedicação à Capoeira. E insinuou -- por ser negra -- que meu protesto contra sua futura tese era também RACISTA ! Nos "rascunhos" que se perderam havia um nicho dedicado ao "O Negro na Capoeira" e sua quase ausência, de 1970 para cá. Teremos num breve futuro uma Capoeira "só de brancos" -- no Exterior inclusive -- se não se fizer algo para reintroduzir a criança negra (a africana, principalmente) na prática de seus ancestrais.

Abro a bela revista "HISTÓRIA da Biblioteca Nacional" nº 73, de outubro/2011, abordando a Inquisição no Brasil -- de 1591 a 1769 -- que perseguia os "hereges", a maioria do Candomblé, claro. (A Umbanda é coisa recente, dos anos 40 para cá !) Nela consta a perseguição a gays, índios, aos muçulmanos, judeus e "cristãos-novos", aos protestantes e até a frades de outras denominações, porque era guerra política e financeira, a Coroa Portuguesa ficava com os bens dos acusados. Isso dentro de uma Religião que pregava "amar ao próximo como a si mesmo"... e tudo findou com mais de 1.500 condenados, em século e meio, boa parte queimados vivos, só para agradar a Santa Madre Igreja, católica, apostólica, romana.

Nossos tempos "repetem" o antigo ciclo, invertido, são os evangélicos que "apontam o dedo" agora. A revista GALILEU de março de 2000 (nº 104) aborda a "Missão de Pesquisas Folclóricas", de 1938, criada pelo poeta Mário de Andrade, para "resgatar as raízes legítimas do folclore do Norte do país". (Só havia 2 "regiões" na época !) Fotos mostravam delegacias abarrotadas de ATABAQUES e tambores, "que abrem as portas do Inferno para os anjos do mal", conforme imprimiu, em livro de 1986 sobre o ROCK, conhecida publicadora evangélica. O Governo Getúlio Vargas, católico, "decretara perseguição policial aos cultos afro-brasileiros, considerados "baixo espiritismo" (pag. 69) Em nossos dias, quase 100 ANOS depois, temos um presidente evangélico (ou coisa parecida) e vemos a Capoeira -- "camaleão" sempre atento -- ADAPTANDO-SE aos novos "velhos tempos"... para continuar resistindo ! Os ditadores passam, o Folclore se mantém ! Se dobrarmos a prática da Capoeira AOS CAPRICHOS religiosos ou políticos de alguns poucos, corre-se o risco de voltarmos à "Capoeira de Sinhô", só com palmas, socos, pontapés e quase nenhuma ginga, espécie de Batuque, que nem cantos teria, apesar do nome.

Os "crentes" antigos afirmavam que a Capoeira -- como um todo -- seria demoníaca, embora com os "Viva meu Deus" exclamações invocando Nossa Senhora, São Bento (até nos toques), Ave Maria... e por aí ! (*1) O oportunismo da Catequese moderna a qualquer preço reduziu a "guerra santa" somente ao poderoso atabaque. que ressoa Mundo a fora. No Carimbó paraense -- suponho que dançado até por evangélicos locais -- também temos "atabaque", o "curimbó", feito de tronco de árvore e tocado na horizontal. Alguém ouviu falar que "abre as portas do Inferno" ?! Os tangos, boleros e danças cubanas -- em orquestras ou fora delas -- também usam atabaques, denominados tumbadoras... quem os tacha de "DEMONÍACOS" ?!

A perseguição ao ATABAQUE, de cunho racista, foi explícita, circunscrita à seara do Candomblé e sua "adaptação brasileira", a Umbanda. Agora, mira a Capoeira -- africana, na essência -- e que se pretende brasileira com o intuito de descaracterizá-la sempre mais. Até onde iremos, nesse "suicídio" coletivo ?! Mestre Pastinha "acende vela a dois senhores" ao admití-la "nascida em Salvador" -- RENASCIDA talvez, (*2) seria o termo exato -- e declarando que "africano é quem a trouxe" !

O GRITO DE LIBERDADE que ela sempre representou não deveria servir, nesses nossos tempos de ódio e "cancelamento", para DESTRUÍ-LA, "embranquecê-la", "santificá-la"... a Capoeira GOSPEL de "crentes" traz os mesmos movimentos da feita nas ruas e academias, só não as mesmas músicas, atualmente EM LOUVOR a Deus ou a Jesus somente, ignorando o PAI maior, jamais entendi isso. Qual a vantagem (para a Capoeira) dessa "adjetivação" de Gospel, LGBT, Universitária, olímpica, "santa" ou seja lá o que nos reserve o surpreendente Destino ?!

Se há LIBERDADE nessa "liberdade" com que utilizamos o termo -- e até a prática -- isso só tem produzido a DESCARACTERIZAÇÃO dela como FOLCLORE, tradição negra, herança africana e PRÁTICA brasileira, mas não COISA brasileira. Nossa "Roda livre" na centenária Praça da República, em Belém, foi IMPEDIDA por outra no mesmo local, na inauguração da Federação - FEPAC em 1995... proibiu-se aos "capoeiras" que sustentavam a Roda no ano inteiro participar da "Roda Oficial (?!), cheia de discursos e interrupções.

Não é esse "tipo" DE LIBERDADE que a Capoeira prega, defende e pela qual foi perseguida e encarcerada. Na Capoeira COM LIBERDADE somos todos iguais, mestres e alunos, não há discriminação E A RELIGIÃO, raça, origem, sexo (preferências individuais), título ou atividade de cada um não interessa a ninguém, NÃO SE SOBREPÕE ao jogo na Roda, "onde entra quem quer e sai quem pode", conceito secular que felizmente não é mais praticado. A Capoeira brasileira... "de matar" -- como cantava mestre Suassuna em 1972 -- se perdeu no Tempo. Hoje, "DE MATAR" só os vídeos postados na Internet, no YouTube principalmente, que estão perto de LIQUIDÁ-LA. Será que ninguém percebe que TAIS IMAGENS, vistas pela primeira vez POR MILHÕES que ainda não a conhecem, darão a entender que aquela SANDICE -- ou, pior, incompetência ou ralo conhecimento -- poderá ser interpretada como... CAPOEIRA ?

Esse mau uso da LIBERDADE de praticá-la está RIDICULARIZANDO nossa Dança-Luta (principalmente na "Angola") sem que Federações e a CBC deem um pio. Vê-se "aulas de Passo a Dois", que era DE USO RARO na Capoeira antiga, feito em consideração a outro mestre na Roda -- no mesmo nível de importância do "puxador" -- e agora virou "brincadeira", com uma CBC em 1993 criando até "torneios de Passo a 2"... tenham a santa paciência !

Que RETORNEM os atabaques às Rodas de mestres evangélicos e "crentes" e que se saiba, em definitivo, que "todo vadio ou ladrão ERA "CAPOEIRA" -- na visão da Polícia de antigamente -- porém quase NENHUM "CAPOEIRA" era vadio, tampouco ladrão... muito pelo contrário, tinham profissão e CONCEITO !

"NATO" AZEVEDO (em 15/fev. 2021)

OBS: (*1) - no antigo texto dizia eu que "a Capoeira não tem altar, dogmas, mandamentos, ritos ou qualquer coisa semelhante" e, mesmo tendo um ou outro padre ou "bispo" oportunista nela, nem por isso VIRA RELIGIÃO !

(*2) além de Salvador, também Pernambuco e o Rio dos imperadores reivindicam o surgimento da Capoeira em suas plagas... e não há PESQUISA que decida a questão !