SENNA: SEIS VOLTAS PARA A ETERNIDADE

Tinha tudo para ser um calmo domingo de maio. O céu límpido e a temperatura amena, em grande parte do país, prenunciavam um belo dia, em que não faltavam atrações: São Paulo x Palmeiras no Morumbi, Flamengo x Vasco no Maracanã, show de Milton Nascimento no Ibirapuera, inúmeras festividades pelo Dia do Trabalho. E, como é tradicional nas manhãs de domingo, Fórmula 1 ao vivo na TV. Em Imola, norte da Itália, teria lugar o GP de San Marino. Nenhum dos 120 mil torcedores presentes ao autódromo, nem os brasileiros sonolentos que assistiam pela TV e nem os milhões de telespectadores espalhados pelo mundo imaginavam, mas aquela prova estava destinada a entrar para a história da F1. Da pior maneira possível. Faltando poucos minutos para a volta de apresentação, as câmeras focalizam o grid de largada e mostram uma imagem rotineira e ao mesmo tempo inusitada. A imagem de rotina é Ayrton Senna ocupando a pole-position pela 3ª vez consecutiva na temporada. Era sua 8ª pole em Imola e a 65ª em 10 anos de F1, recorde absoluto na época. Naquele ano de 94, com a aposentadoria de Alain Prost, Senna era o único campeão em atividade e o grande favorito ao título. Nenhum dos outros 24 pilotos presentes tinha um retrospecto sequer próximo ao de Ayrton. Gerhard Berger, o mais vitorioso dos “outros”, tinha 8 triunfos na F1 contra 41 do brasileiro. A imagem incomum é a atitude de Senna. Como se a corrida já tivesse terminado, ele tira o capacete e o capuz anti-fogo, fecha os olhos e respira fundo. Não parece, nem de longe, o piloto obstinado de sempre. Seria consequência daquele estranho final de semana, com tantos fatos inusitados e preocupantes? O primeiro sinal foi o acidente de Rubens Barrichello nos treinos de sexta-feira. Assustador, mas sem consequências graves para o piloto, deu a falsa impressão de que a F1 realmente vivia uma nova fase, em que acidentes fatais eram coisa do passado. O inusitado apareceu pela primeira vez no sábado com a morte de Roland Ratzenberger após 12 anos sem fatalidades em provas de F1 e teve seu auge no início da 7ª volta da corrida com a quebra de uma emenda (mal)feita na coluna de direção do bólido Nº 2 da então poderosa Williams, principal equipe da época, campeã nos 2 anos anteriores e exemplo de sofisticação tecnológica. A pancada do carro no muro da curva Tamburello fez com que um braço da suspensão se soltasse e atingisse exatamente a borda da viseira do capacete de Senna. Uma sequência de eventos imponderáveis, absurdos e trágicos que causou a morte instantânea do piloto. Para a maioria do povo, Senna era um esportista de alto nível que enchia de orgulho a nação quando derrotava concorrentes franceses, ingleses e italianos, entre outros. Um dos poucos brasileiros reconhecidos mundialmente. Por esse aspecto, se ele fosse tenista ou nadador, o reconhecimento provavelmente seria o mesmo. Mas todos aqueles que curtem o ronco de um motor como se fosse música e se embriagam com o cheiro de óleo e borracha queimada, sentiram que o mundo da velocidade perdeu um piloto fora de série. Nacionalismos à parte, Ayrton tinha um dom natural que, aliado à sua obstinação o tornavam praticamente imbatível em certas condições, como nas ruas de Mônaco e em pistas molhadas, onde ele se destacava mesmo com carros nitidamente inferiores. Algumas de suas melhores apresentações, inclusive, foram com os carros da Toleman e da Lotus. Senna não foi o mais vitorioso dos pilotos, mas talvez nenhum outro tenha reunido na mesma proporção, técnica, arrojo e velocidade em níveis tão altos. Fangio o considerava seu sucessor. Niki Lauda, que foi contemporâneo de Stewart, Fittipaldi, Villeneuve, Prost e Piquet, afirma que Senna foi o maior piloto que já existiu. Era, acima de tudo, um predestinado. Em sua primeira corrida oficial de kart, aos 9 anos, largou na pole. E na última, saiu de cena no auge, na liderança de uma prova transmitida ao vivo para o mundo, num dia festivo. Em 1986, quando perguntado sobre o que fazia nos minutos que antecediam a largada, Ayrton disse que costumava rezar, para sair vitorioso e, principalmente, inteiro. Talvez isso explique sua atitude no grid de Imola. Mas naquele 1º de maio, para tristeza de seus milhares de fãs, parece que Alguém estava ocupado demais para ouvi-lo.