OS BÁRBAROS ESTÃO DE VOLTA
Futebol e Corinthians sempre foram minhas paixões desde criança. Nos anos sessenta e setenta, na época de Pelé, fui muitas vezes ao Pacaembú, ao Morumbi, ao Parque São Jorge e outros estádios, para assistir partidas memoráveis em que o Corinthians mais perdia do que ganhava. Contra o Santos, por exemplo, o Pelé nunca deixava a gente ganhar. Levamos onze anos para vencer uma partida contra o Peixe e mais vinte e três para festejar um título. Que eu me lembre, nesses vinte e tantos anos de tortura, gozações e decepções nunca houve uma morte entre torcidas rivais no Estado de São Paulo. Corintianos e palmeirenses, por exemplo, sentavam-se nas mesmas arquibancadas, uns aos lados dos outros e o máximo que saia era uma ou outra briga pessoal, quando um torcedor, para comemorar um gol, levava mais longe uma gozação.
Perdi a vontade de freqüentar estádios há muito tempo. Desde que inventaram as torcidas organizadas. Na última vez que fui assistir a um jogo ao vivo, fiz a besteira de levar minha família junto. Minhas filhas eram ainda pequenas e ficaram assustadas com tanto palavrão, tanta violência e demonstrações de má educação desses bandos de trogloditas que fazem parte desses grupos de verdadeiros marginais.
Naqueles áureos tempos sessenta mil pessoas podiam se sentar juntas nas arquibancadas do Pacaembú e torcer, cada uma para o seu time. Hoje, no Pacaembú não cabem mais de quarenta mil e mesmo assim, quando jogam dois times rivais, as torcidas não podem ficar juntas.
O que houve? Mudou o futebol, ou mudamos nós, os torcedores? O que é que faz um grupo de torcedores sair de seus país, para brigar, e matar torcedores de outro país, como aconteceu com o menino boliviano no último jogo do Corinthians na Bolívia?
O responsável pelo foguete que matou o garoto Kevin foi identificado como sendo outro garoto de dezessete anos. É membro de uma torcida organizada, que já tem um longo histórico como promotora de badernas, tumultos e rixas que já fizeram outras vítimas, inclusive fatais. No mínimo, isso parece muito conveniente. Parece coisa de quadrilha organizada. Quando os integrantes da gang são presos por algum crime, elas arranjam um “menor” para assumir a autoria. Esse, aliás, é a conseqüência dessa legislação maluca que existe no país, que acha que uma pessoa tem idade para votar, mas não para trabalhar e assumir responsabilidade por seus crimes.
Lembro-me que há alguns atrás havia um promotor público tentando acabar com essas verdadeiras quadrilhas que se acoitaram dentro das chamadas torcidas organizadas. Parece-me que a coisa não foi para a frente e é uma pena. Eu gostaria muito de poder voltar aos estádios com a minha família sem o medo de ser agredido, ou até mesmo morto por um desses marginais que se dizem membros de uma torcida organizada.
Sabemos que são os próprios clubes que incentivam a existência dessas organizações.
Pode ser que eu esteja enganado, mas acho que foram essas tais torcidas organizadas que afastaram dos estádios o grande público. Não foi a televisão, como muita gente diz, pois naqueles tempos, ela já transmitia ao vivo os jogos de grande apelo popular.
Na verdade, torcida organizada é coisa tão antiga quanto corrida de cavalo. Sua origem mais remota vem dos circos de Roma, na época dos primeiros Cézares. Chegou ao auge da organização no tempo do Imperador Justiniano, quando as torcidas se organizavam nos hipódromos para apoiar as corridas de bigas, ou as lutas entre gladiadores. O historiador Gibbon que as grandes metrópoles do Império, tais como Roma, Alexandria, Constantinopla, Corintho, Antioquia e outras, os aurigas (condutores das bigas) se vestiam de branco ou vermelho e os espectadores se organizavam para torcer para um ou outro. Com o tempo, essas torcidas começaram a se vestir com as cores do seu auriga, ou gladiador favorito, para ir ao circo e ao hipódromo.[1] Não tardou muito e as torcidas começaram a se identificar mais com as ideologias das facções que representavam do que com a própria disputa no estádio. Nos tempos de Justiniano havia quatro facções, que se organizaram legalmente e passaram a refletir os conflitos filosóficos, religiosos e políticos da época, Em conseqüência, começaram as brigas entre as torcidas fora dos estádios, e a evolução para verdadeiras batalhas campais foi uma conseqüência natural. Até as próprias autoridades, não raras vezes, entravam na briga para apoiar uma ou outra facção. Houve momentos que as brigas das torcidas organizadas, em Constantinopla, principalmente, se tornaram tão comuns e tão sérias que a ordem pública ficou ameaçada de tal forma que o próprio estado esteve a ponto de ser extinto.
Certo que o império romano, nos dias de Justianiano, já estava em franco declínio. A dissolução dos costumes e a subversão dos valores que fizeram de Roma a senhora do mundo era uma realidade irreversível. Os gregos inventaram os esportes para emular as virtudes que se adquirem com uma boa educação física. Os jogos eram, para eles, uma forma de superação de limites. Qualquer espectador que tivesse condição podia participar deles e sentir-se um Aquiles, um Heitor, um Hércules. Já em Roma era diferente. Os jogos do Circo eram patrocinados pelo próprio estado, como uma forma de deleite para um público ocioso e servil, e usado como estímulo para a emulação das virtudes guerreiras que constituíam a principal característica do espírito romano.
As loucuras das facções do hipódromo bizantino tem sido, amiúde, apontada como um exemplo da corrupção dos costumes que levou a grandiosa civilização romana à ruína. Tanto é que o termo “bizantino” tem hoje o significado de coisa vazia, inútil, fútil. Na verdade, isso retrata o que tornou a civilização romana nos tempos de Justiniano.
Parece que as coisas não mudaram nestes nossos dias. Por mais que tente não consigo ver na civilização atual uma coisa melhor do que era nos tempos de Roma. Hoje, a matança dos inocentes está tão banalizada que mal nos comovemos com uma morte tão estúpida como essa de um menino num estádio de futebol, morto, supostamente por outro menino que viajou mais de dois mil quilômetros só para assistir a um jogo de futebol.
Inclusive saindo de seu país, levando em sua bagagem uma arma tão mortal como o sinalizador que matou o jovem boliviano. Ninguém viu. Nem os pais, que agora choram o leite derramado, nem os responsáveis pela torcida organizada, nem os policiais que patrulham as fronteiras, nem os guardas que revistam os torcedores...
Vários torcedores foram presos por causa dessa tragédia. Em princípio parece ser uma grande injustiça manter preso um grupo de pessoas que parecem não ter culpa do que aconteceu. Mas ás vezes a gente não paga pelos atos em si, mas pelo comportamento que induz aos atos. É o que parece estar acontecendo com os corintianos presos na Bolívia. Diz o velho ditado que quem fala como pato, anda como pato, veste-se como um pato, só pode ser um pato. E acaba levando tiro como pato. Um indivíduo que se dá ao trabalho de ir á uma longínqua cidade da Bolívia, numa quarta-feira á noite, levando no mínimo dois dias para ir e outros dois para voltar, para assistir á uma partida de futebol, com certeza, trabalhador e pai de família é que não é. Se for, quero ter um patrão e uma esposa assim.
A propósito, os historiadores dizem que Roma foi destruída pelos bárbaros. Será que isso não está acontecendo outra vez?
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(1) Edward Gibbons- Ascensão e Queda do Império Romano- Melhoramentos, 1986
Futebol e Corinthians sempre foram minhas paixões desde criança. Nos anos sessenta e setenta, na época de Pelé, fui muitas vezes ao Pacaembú, ao Morumbi, ao Parque São Jorge e outros estádios, para assistir partidas memoráveis em que o Corinthians mais perdia do que ganhava. Contra o Santos, por exemplo, o Pelé nunca deixava a gente ganhar. Levamos onze anos para vencer uma partida contra o Peixe e mais vinte e três para festejar um título. Que eu me lembre, nesses vinte e tantos anos de tortura, gozações e decepções nunca houve uma morte entre torcidas rivais no Estado de São Paulo. Corintianos e palmeirenses, por exemplo, sentavam-se nas mesmas arquibancadas, uns aos lados dos outros e o máximo que saia era uma ou outra briga pessoal, quando um torcedor, para comemorar um gol, levava mais longe uma gozação.
Perdi a vontade de freqüentar estádios há muito tempo. Desde que inventaram as torcidas organizadas. Na última vez que fui assistir a um jogo ao vivo, fiz a besteira de levar minha família junto. Minhas filhas eram ainda pequenas e ficaram assustadas com tanto palavrão, tanta violência e demonstrações de má educação desses bandos de trogloditas que fazem parte desses grupos de verdadeiros marginais.
Naqueles áureos tempos sessenta mil pessoas podiam se sentar juntas nas arquibancadas do Pacaembú e torcer, cada uma para o seu time. Hoje, no Pacaembú não cabem mais de quarenta mil e mesmo assim, quando jogam dois times rivais, as torcidas não podem ficar juntas.
O que houve? Mudou o futebol, ou mudamos nós, os torcedores? O que é que faz um grupo de torcedores sair de seus país, para brigar, e matar torcedores de outro país, como aconteceu com o menino boliviano no último jogo do Corinthians na Bolívia?
O responsável pelo foguete que matou o garoto Kevin foi identificado como sendo outro garoto de dezessete anos. É membro de uma torcida organizada, que já tem um longo histórico como promotora de badernas, tumultos e rixas que já fizeram outras vítimas, inclusive fatais. No mínimo, isso parece muito conveniente. Parece coisa de quadrilha organizada. Quando os integrantes da gang são presos por algum crime, elas arranjam um “menor” para assumir a autoria. Esse, aliás, é a conseqüência dessa legislação maluca que existe no país, que acha que uma pessoa tem idade para votar, mas não para trabalhar e assumir responsabilidade por seus crimes.
Lembro-me que há alguns atrás havia um promotor público tentando acabar com essas verdadeiras quadrilhas que se acoitaram dentro das chamadas torcidas organizadas. Parece-me que a coisa não foi para a frente e é uma pena. Eu gostaria muito de poder voltar aos estádios com a minha família sem o medo de ser agredido, ou até mesmo morto por um desses marginais que se dizem membros de uma torcida organizada.
Sabemos que são os próprios clubes que incentivam a existência dessas organizações.
Pode ser que eu esteja enganado, mas acho que foram essas tais torcidas organizadas que afastaram dos estádios o grande público. Não foi a televisão, como muita gente diz, pois naqueles tempos, ela já transmitia ao vivo os jogos de grande apelo popular.
Na verdade, torcida organizada é coisa tão antiga quanto corrida de cavalo. Sua origem mais remota vem dos circos de Roma, na época dos primeiros Cézares. Chegou ao auge da organização no tempo do Imperador Justiniano, quando as torcidas se organizavam nos hipódromos para apoiar as corridas de bigas, ou as lutas entre gladiadores. O historiador Gibbon que as grandes metrópoles do Império, tais como Roma, Alexandria, Constantinopla, Corintho, Antioquia e outras, os aurigas (condutores das bigas) se vestiam de branco ou vermelho e os espectadores se organizavam para torcer para um ou outro. Com o tempo, essas torcidas começaram a se vestir com as cores do seu auriga, ou gladiador favorito, para ir ao circo e ao hipódromo.[1] Não tardou muito e as torcidas começaram a se identificar mais com as ideologias das facções que representavam do que com a própria disputa no estádio. Nos tempos de Justiniano havia quatro facções, que se organizaram legalmente e passaram a refletir os conflitos filosóficos, religiosos e políticos da época, Em conseqüência, começaram as brigas entre as torcidas fora dos estádios, e a evolução para verdadeiras batalhas campais foi uma conseqüência natural. Até as próprias autoridades, não raras vezes, entravam na briga para apoiar uma ou outra facção. Houve momentos que as brigas das torcidas organizadas, em Constantinopla, principalmente, se tornaram tão comuns e tão sérias que a ordem pública ficou ameaçada de tal forma que o próprio estado esteve a ponto de ser extinto.
Certo que o império romano, nos dias de Justianiano, já estava em franco declínio. A dissolução dos costumes e a subversão dos valores que fizeram de Roma a senhora do mundo era uma realidade irreversível. Os gregos inventaram os esportes para emular as virtudes que se adquirem com uma boa educação física. Os jogos eram, para eles, uma forma de superação de limites. Qualquer espectador que tivesse condição podia participar deles e sentir-se um Aquiles, um Heitor, um Hércules. Já em Roma era diferente. Os jogos do Circo eram patrocinados pelo próprio estado, como uma forma de deleite para um público ocioso e servil, e usado como estímulo para a emulação das virtudes guerreiras que constituíam a principal característica do espírito romano.
As loucuras das facções do hipódromo bizantino tem sido, amiúde, apontada como um exemplo da corrupção dos costumes que levou a grandiosa civilização romana à ruína. Tanto é que o termo “bizantino” tem hoje o significado de coisa vazia, inútil, fútil. Na verdade, isso retrata o que tornou a civilização romana nos tempos de Justiniano.
Parece que as coisas não mudaram nestes nossos dias. Por mais que tente não consigo ver na civilização atual uma coisa melhor do que era nos tempos de Roma. Hoje, a matança dos inocentes está tão banalizada que mal nos comovemos com uma morte tão estúpida como essa de um menino num estádio de futebol, morto, supostamente por outro menino que viajou mais de dois mil quilômetros só para assistir a um jogo de futebol.
Inclusive saindo de seu país, levando em sua bagagem uma arma tão mortal como o sinalizador que matou o jovem boliviano. Ninguém viu. Nem os pais, que agora choram o leite derramado, nem os responsáveis pela torcida organizada, nem os policiais que patrulham as fronteiras, nem os guardas que revistam os torcedores...
Vários torcedores foram presos por causa dessa tragédia. Em princípio parece ser uma grande injustiça manter preso um grupo de pessoas que parecem não ter culpa do que aconteceu. Mas ás vezes a gente não paga pelos atos em si, mas pelo comportamento que induz aos atos. É o que parece estar acontecendo com os corintianos presos na Bolívia. Diz o velho ditado que quem fala como pato, anda como pato, veste-se como um pato, só pode ser um pato. E acaba levando tiro como pato. Um indivíduo que se dá ao trabalho de ir á uma longínqua cidade da Bolívia, numa quarta-feira á noite, levando no mínimo dois dias para ir e outros dois para voltar, para assistir á uma partida de futebol, com certeza, trabalhador e pai de família é que não é. Se for, quero ter um patrão e uma esposa assim.
A propósito, os historiadores dizem que Roma foi destruída pelos bárbaros. Será que isso não está acontecendo outra vez?
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(1) Edward Gibbons- Ascensão e Queda do Império Romano- Melhoramentos, 1986