Uma viagem de bike pelo Nordeste – Sodoma, Gomorra e o índio de Araque de Coroa Vermelha.
Fomos acordar bem tarde da noite... E isso só ocorreu por que parecia que haviam antecipado o Carnaval na Terra Brasilis: um som infernal (acho que uma mistura desencontrada de atabaques, ganzás reco-recos, cavaquinhos e outras parafernálias eletrônicas) fazia fundo para um camarada que parecia possuído por todos os demônios da Terra, já que o desinfeliz gritava todo o tempo num compasso capaz de enlouquecer qualquer um “-Tire o pé do chão e sacode!!!”.
Eu não fazia a mínima ideia do que o gajo queria que sacudíssemos. Mas, por via das dúvidas, sei que não demoramos mais do que míseros dez minutos para seguir o conselho do mancebo: pegamos nossas bikes e lá fomos nós para noite amena de Porto Seguro, para bem longe daquela muvuca que prometia atravessar os nossos delicados ouvidos pela madrugada afora.
Mal saímos do hotel e atravessamos, outra vez, bem em frente daquela filial de Sodoma, de cujo interior, feericamente iluminado, partia aquele chamado irresistível. Eliana e sua bike quase entraram na pista de dança, (acho que queriam sacudir a cachola daquele frenético exemplar de homo neanderthalensis que aportara em Porto Seguro) mas, felizmente, optaram por seguir em frente, trocando o desejo de sangue por uma vigorosa pedalada pelo asfalto da via costeira.
O ruído compassado (este bem mais gostoso que aquele outro da tal Gomorra... ou será que era de Sodoma – a essa altura já nem me lembro direito dos detalhes...) das ondas do mar nos acompanhou por todo o trajeto. Sentir o cheiro de mar invadindo as nossas narinas, o vento a desmanchar os nossos cabelos (Eliana fez questão de pedalar sem capacete, só de birra pela barulheira!!!) fez com que nós perdêssemos a noção do tempo, e só umas duas horas depois fomos voltar para casa, tomar uma ducha super-refrescante e mergulhar no sono até a manhã seguinte.
Mais uma manhã coalhada de Sol nos recepcionou em Porto Seguro ao acordarmos na terça-feira, terceiro dos seis dias que havíamos contratado para ficar no Bicho Grilo. Tomamos o café da manhã (o qual Eliana tentou enriquecer com uma tapioca que estava sendo preparada bem ao lado de nossa mesa, mas não conseguiu por culpa de uma fila monstruosa de pretendentes) e lá fomos nós para a rodoviária de Porto Seguro, comprar passagens antes que as mesmas sumissem devido a grande procura que sempre ocorre por ocasião do final de ano. Ainda em dúvida sobre que rota tomaríamos, deixamos as passagens para comprar no dia seguinte.
Epa!!! Perainda (é assim que se diz na Bahia). Quase que eu, João, o infame, ia me esquecendo de relatar o espanto dos pobres transeuntes de Porto Seguro ao darem de testa com aquela morena subindo uma ladeira imensa que tem antes da rodoviária, vestida a caráter, e parecendo não fazer o menor esforço em sua bike (enquanto uma multidão de marmanjos seguia empurrando as deles) preta com fulgurantes detalhes em vermelho. Claro que vocês já desconfiaram que aquela dama envergando uma bermudinha preta, junto com uma blusa esportiva azul-claro não seria outra senão a nossa conhecidíssima Eliana (menos mal que ela não se deixou levar pela fama manteve de pé o nosso projeto de irmos, depois de tomarmos uma ducha no hotel, para Coroa Vermelha).
Devidamente descansados e de banho tomado pegamos a rodovia com a intenção de almoçarmos em um restaurante que nos agradasse. Depois de uns dois quilômetros de pedalada, vimos um que achamos bem simpático. Ledo engano: tive de sair às pressas, a amparar Eliana, que sofrera uma crise histérica ao ver no menu, que uma morena curvilínea com uma flor nos cabelos lhe apresentara, os módicos preços do local. Dei a minha mulher a mais absoluta mostra de solidariedade, pois o prato mais barato daquele restaurante praieiro não saía por menos de cento e vinte reais – e isso sem contar a gorjeta do garçom (todos de fraque, evidente), que, naturalmente, devia ser cotada em euros!!!.
De novo na estrada, as nossas barrigas em plena rebelião, já clamando por comida, retomamos o caminho para Coroa Vermelha, localidade que não conseguimos visitar em nossas férias do ano passado. Deixamos passar mais uns dois restaurantes e, na base do uni-du-ni-tê, paramos em um que nos pareceu mais adequado às nossas finanças. (pelo menos, nós esperávamos que não iríamos precisar pedir o parcelamento do almoço em doze vezes sem juros)
Alvíssara! O meu coração disparou de alegria ao ver que se tratava de um self-service, com o preço (bem grande) afixado na tabuleta. (Algo em torno dos vinte reais o quilo)
Como pobre não pode ter a sensação de felicidade prolongada por muito tempo, eis que Eliana decide tomar sorvete como sobremesa. E lá fomos nós escolher os ditos num freezer da Kibon. Já escaldado por outras ocasiões ainda quis fazer alguma ressalva quanto ao preço dos sorvetes não estar afixado, mas fui voto vencido: Eliana, mas rápida que Bat Masterson, já havia se apoderado de dois cornetos. Só tive tempo de ver o sorriso maligno estampado no rosto daquele facínora que fazia as vezes de dono daquele bar dentro do restaurante que havíamos acabado de almoçar – o desalmado acabou nos cobrando quase tanto quanto o que havíamos gasto no almoço para nós dois. E pasmem! Ainda queria me enfiar goela abaixo, como troco, uma meia dúzia de balas-chiclete. (que eu odeio!!!)
Ruminando uma avalanche de obscenidades contra aquele cafajeste dos cornetos pegamos as nossas bikes e prosseguimos viagem para Coroa Vermelha. Em realidade não era Coroa Vermelha o nosso destino final da pedalada daquela terça-feira, mas sim Santa Cruz Cabrália. Calma... já vou explicar o que me fez gravar o nome de Coroa Vermelha a ferro e fogo em minha mente...
Seguíamos, Eliana e eu, pela majestosa rodovia que liga Porto Seguro a Santa Cruz Cabrália, toda ela margeando o mar. Nem sentíamos o calor, amortecido que ele era pela brisa vinda do oceano Atlântico. Já havíamos visto nos panfletos turísticos que nos esfregavam na cara, em todos os locais que íamos, que havia uma aldeia indígena em Coroa Vermelha, e eu, em minha santa ingenuidade, aventei a hipótese de visitarmos a dita aldeia.
Diz um ditado antigo que, quando “Maomé não vai a montanha, a montanha vai até Maomé”. Não faço a mínima idéia da propriedade desse tal ditado, mas, posso acrescentar que, de repente, não mais do que repente, surge em nossa frente uma aparição que me pareceu extraterrena: um índio (aquele índio de fancaria parecia tão silvícola quanto eu me assemelho a um marciano) pintado de urucum dos pés a cabeça, todo paramentado com umas vestes confeccionada em pindoba e cheio de penduricalhos para oferecer aos turistas. Quase que aquela mistura de pajé cibernético com Mike Jaeger nos derruba das bikes!
Usando de toda nossa destreza, nos desviamos daquela coisa medonha e, abdicamos, ali mesmo, de toda e qualquer vontade de visitar a aldeia indígena de Coroa Vermelha.