AS TORCIDAS ORGANIZADAS E O CIRCO DE ROMA
Sou aficionado de futebol desde criança , mas perdi a vontade de freqüentar estádios há muito tempo. Desde que inventaram as torcidas organizadas. Na última vez que fui assistir a um jogo ao vivo, fiz a besteira de levar minha família junto. Minhas filhas eram ainda pequenas e ficaram assustadas com tanto palavrão, tanta violência e demonstrações de má educação desses bandos de trogloditas que fazem parte desses grupos de verdadeiros camisas pardas.
Sou corintiano e lembro-me do tempo em que podíamos ir ao Pacaembú assistir a um Corinthians e Palmeiras e sentar, lado a lado, com torcedores do Porcão. Eles torciam pelo time deles e nós pelo nosso, e o máximo que acontecia era uma gozação quando um dos times fazia um gol ou quando o jogo terminava com a vitória de um deles.
Às vezes saia uma ou outra briga nas arquibancadas, mas isso era muito mais pela aglomeração das pessoas num espaço tão pequeno do que por conta da rivalidade clubística. Já estive no Pacaembú com mais de sessenta mil torcedores − hoje não cabe nem quarenta – e a única briga que saiu naquele dia foi por causa de um corintiano que jogou um jornal molhado na careca de um palmeirense três degraus abaixo. Isso porque ele não parava de chamar o Rivelino de veadinho e pedir para o Luis Pereira tirar ele de campo a pontapé.
Os estádios diminuíram de tamanho ou foram as pessoas que aumentaram de volume? Não sei. Mas de uma coisa tenho certeza. Dificilmente veremos de novo um público como aquele Corinthians e Ponte Preta de mil novecentos e setenta e sete. Foram, se não me engano, cerca de cento e quarenta e quatro mil pessoas no estádio. Há quanto tempo o Morumbí não vê mais de setenta mil pessoas assistindo um jogo lá?
Pode ser que eu esteja enganado, mas acho que as tais torcidas organizadas afastaram dos estádios o grande público. Não foi a televisão, pois naqueles tempos, ela já transmitia ao vivo os jogos de grande apelo popular. É o medo de ser agredido, ou até morto por esses verdadeiros gangsters do futebol que desencoraja as pessoas de bem a irem a um estádio.
Na verdade, torcida organizada não é uma coisa nova. Nem foi inventada na Inglaterra dos hooligans, aquele bando de débeis mentais que infernizavam os estádios ingleses nos anos setenta e oitenta. Causaram um monte de tragédias até as autoridades encontrarem um jeito de acabar com eles. Mas no Brasil, apesar do ingente trabalho do Ministério Público, essa hora ainda não chegou. Aqui tudo chega mais tarde.
Torcida organizada é coisa tão antiga quanto corrida de cavalo. Sua origem mais remota parece estar nos circos de Roma, na época dos primeiros Cézares, tendo chegado ao auge no tempo do Imperador Justiniano, quando as torcidas se organizavam nos hipódromos para apoiar as corridas de bigas. Conta Gibbon(Declínio e Queda do Império Romano) que grandes metrópoles do Império, tais como Constantinopla e Antioquia, os aurigas (condutores das bigas) se vestiam de branco ou vermelho e os espectadores se organizavam para torcer para um ou outro. Com o tempo, essas torcidas começaram a se vestir com as cores do seu auriga, ou gladiador favorito, para ir ao circo e ao hipódromo.[1] Não tardou muito e as torcidas começaram a se identificar mais com as ideologias das facções que representavam do que com a própria disputa no estádio. Nos tempos de Justiniano havia quatro facções, que se organizaram legalmente e passaram a refletir os conflitos filosóficos, religiosos e políticos da época, Em conseqüência, começaram as brigas entre as torcidas fora dos estádios, e a evolução para verdadeiras batalhas campais foi uma conseqüência natural. Até as próprias autoridades, não raras vezes, entravam na briga para apoiar uma ou outra facção. Houve momentos que as brigas das torcidas organizadas, em Constantinopla, se tornaram tão comuns e tão sérias que a ordem pública ficou ameaçada de tal forma que o próprio estado esteve a ponto de ser extinto.
Certo que o império romano, nos dias de Justianiano, já estava em franco declínio. A dissolução dos costumes e a subversão dos valores que fizeram de Roma a senhora do mundo era uma realidade irreversível. Como bem observa Gibbon, os gregos inventaram os esportes para emular as virtudes que se adquirem com uma boa educação física. Os jogos eram, para eles, uma forma de superação de limites. Qualquer espectador que tivesse condição podia participar deles e sentir-se um Aquiles, um Heitor, um Menelau. Em Roma era diferente. Os jogos do Circo eram patrocinados pelo próprio estado, como uma forma de deleite para um público ocioso e servil, e usado como estímulo para a emulação das virtudes guerreiras que constituíam a principal característica do espírito romano.
As loucuras das facções do hipódromo bizantino tem sido, amiúde, apontada como um exemplo da corrupção dos costumes que levou a grandiosa civilização romana à ruína. O termo “bizantino” tem hoje o significado de coisa vazia, inútil, fútil. Na verdade, isso retrata o que tornou a civilização romana nos tempos de Justiniano. E é o que parece estar acontecendo com a nossa civilização hoje. Quem olha para alguns desses indivíduos que participam das torcidas organizadas dos nossos grandes clubes mal consegue identificar neles um ser humano. E não pode deixar de pensar que estamos voltando aos tempos bizantinos, com seus gladiadores com suas espadas tintas de sangue, e tubas de selvagens, com clavas nas mãos, prontos para romper as cabeças de quem aparecersse na sua frente. Naquela época os governantes toleravam e incentivavam a ignorância e a selvageria das torcidas organizadas por interesses políticos. Hoje, qual será motivação? Como não há nada de novo debaixo do sol, segundo diz o Eclesiastes, é a questão de perguntar? A quem interessa, preservar esses grupos?A quem interessa tranformar os nossos estádios em verdadeiros circos romanos?
Sou aficionado de futebol desde criança , mas perdi a vontade de freqüentar estádios há muito tempo. Desde que inventaram as torcidas organizadas. Na última vez que fui assistir a um jogo ao vivo, fiz a besteira de levar minha família junto. Minhas filhas eram ainda pequenas e ficaram assustadas com tanto palavrão, tanta violência e demonstrações de má educação desses bandos de trogloditas que fazem parte desses grupos de verdadeiros camisas pardas.
Sou corintiano e lembro-me do tempo em que podíamos ir ao Pacaembú assistir a um Corinthians e Palmeiras e sentar, lado a lado, com torcedores do Porcão. Eles torciam pelo time deles e nós pelo nosso, e o máximo que acontecia era uma gozação quando um dos times fazia um gol ou quando o jogo terminava com a vitória de um deles.
Às vezes saia uma ou outra briga nas arquibancadas, mas isso era muito mais pela aglomeração das pessoas num espaço tão pequeno do que por conta da rivalidade clubística. Já estive no Pacaembú com mais de sessenta mil torcedores − hoje não cabe nem quarenta – e a única briga que saiu naquele dia foi por causa de um corintiano que jogou um jornal molhado na careca de um palmeirense três degraus abaixo. Isso porque ele não parava de chamar o Rivelino de veadinho e pedir para o Luis Pereira tirar ele de campo a pontapé.
Os estádios diminuíram de tamanho ou foram as pessoas que aumentaram de volume? Não sei. Mas de uma coisa tenho certeza. Dificilmente veremos de novo um público como aquele Corinthians e Ponte Preta de mil novecentos e setenta e sete. Foram, se não me engano, cerca de cento e quarenta e quatro mil pessoas no estádio. Há quanto tempo o Morumbí não vê mais de setenta mil pessoas assistindo um jogo lá?
Pode ser que eu esteja enganado, mas acho que as tais torcidas organizadas afastaram dos estádios o grande público. Não foi a televisão, pois naqueles tempos, ela já transmitia ao vivo os jogos de grande apelo popular. É o medo de ser agredido, ou até morto por esses verdadeiros gangsters do futebol que desencoraja as pessoas de bem a irem a um estádio.
Na verdade, torcida organizada não é uma coisa nova. Nem foi inventada na Inglaterra dos hooligans, aquele bando de débeis mentais que infernizavam os estádios ingleses nos anos setenta e oitenta. Causaram um monte de tragédias até as autoridades encontrarem um jeito de acabar com eles. Mas no Brasil, apesar do ingente trabalho do Ministério Público, essa hora ainda não chegou. Aqui tudo chega mais tarde.
Torcida organizada é coisa tão antiga quanto corrida de cavalo. Sua origem mais remota parece estar nos circos de Roma, na época dos primeiros Cézares, tendo chegado ao auge no tempo do Imperador Justiniano, quando as torcidas se organizavam nos hipódromos para apoiar as corridas de bigas. Conta Gibbon(Declínio e Queda do Império Romano) que grandes metrópoles do Império, tais como Constantinopla e Antioquia, os aurigas (condutores das bigas) se vestiam de branco ou vermelho e os espectadores se organizavam para torcer para um ou outro. Com o tempo, essas torcidas começaram a se vestir com as cores do seu auriga, ou gladiador favorito, para ir ao circo e ao hipódromo.[1] Não tardou muito e as torcidas começaram a se identificar mais com as ideologias das facções que representavam do que com a própria disputa no estádio. Nos tempos de Justiniano havia quatro facções, que se organizaram legalmente e passaram a refletir os conflitos filosóficos, religiosos e políticos da época, Em conseqüência, começaram as brigas entre as torcidas fora dos estádios, e a evolução para verdadeiras batalhas campais foi uma conseqüência natural. Até as próprias autoridades, não raras vezes, entravam na briga para apoiar uma ou outra facção. Houve momentos que as brigas das torcidas organizadas, em Constantinopla, se tornaram tão comuns e tão sérias que a ordem pública ficou ameaçada de tal forma que o próprio estado esteve a ponto de ser extinto.
Certo que o império romano, nos dias de Justianiano, já estava em franco declínio. A dissolução dos costumes e a subversão dos valores que fizeram de Roma a senhora do mundo era uma realidade irreversível. Como bem observa Gibbon, os gregos inventaram os esportes para emular as virtudes que se adquirem com uma boa educação física. Os jogos eram, para eles, uma forma de superação de limites. Qualquer espectador que tivesse condição podia participar deles e sentir-se um Aquiles, um Heitor, um Menelau. Em Roma era diferente. Os jogos do Circo eram patrocinados pelo próprio estado, como uma forma de deleite para um público ocioso e servil, e usado como estímulo para a emulação das virtudes guerreiras que constituíam a principal característica do espírito romano.
As loucuras das facções do hipódromo bizantino tem sido, amiúde, apontada como um exemplo da corrupção dos costumes que levou a grandiosa civilização romana à ruína. O termo “bizantino” tem hoje o significado de coisa vazia, inútil, fútil. Na verdade, isso retrata o que tornou a civilização romana nos tempos de Justiniano. E é o que parece estar acontecendo com a nossa civilização hoje. Quem olha para alguns desses indivíduos que participam das torcidas organizadas dos nossos grandes clubes mal consegue identificar neles um ser humano. E não pode deixar de pensar que estamos voltando aos tempos bizantinos, com seus gladiadores com suas espadas tintas de sangue, e tubas de selvagens, com clavas nas mãos, prontos para romper as cabeças de quem aparecersse na sua frente. Naquela época os governantes toleravam e incentivavam a ignorância e a selvageria das torcidas organizadas por interesses políticos. Hoje, qual será motivação? Como não há nada de novo debaixo do sol, segundo diz o Eclesiastes, é a questão de perguntar? A quem interessa, preservar esses grupos?A quem interessa tranformar os nossos estádios em verdadeiros circos romanos?