FUTEBOL: PARA ENTENDER O BRASIL

Quem quiser entender o Brasil, a sociedade brasileira, antes deverá passar pelos seus campos de futebol, conhecer seus personagens e contemplar os códigos de valores éticos, morais, afetivos e hierárquicos que orientam a sua organização e redimensionam as relações sócio-culturais deste povo que joga e torce. O seu poder de representatividade social é incontestável e agrega no seu entorno uma diversidade de classes sociais, gerações, etnias e nas últimas décadas diversidade de gênero, não só nas arquibancadas e rodas de discussão, mas, entre as quatro linhas jogando ou soprando o apito.

Que aqui não se entenda essa diversidade na perspectiva de uma romântica interpretação freyreana de miscigenação fraterna das raças como causa e efeito do sucesso desse esporte. É claro que para chegarmos a este patamar de quase equidade racial, social e de gênero no futebol, as barreiras do preconceito, da discriminação, da intolerância e do sexismo tiveram que ser quebradas com muito esforço e sacrifício durante décadas. E mesmo assim ainda restam arestas a serem aparadas.

Este fenômeno compõe uma rede social de possibilidades e situações reais, através das quais se diferenciam se assemelham e se identificam homens, mulheres e crianças, patrões e empregados, trabalhadores braçais e doutores, negros e brancos.

Neste espaço mítico todos têm voz e voto. A sorte e o revés sorriem para todos indistintamente, diferente da vida real. Aqui se pode, mesmo que por um breve tempo, ser feliz de verdade ou conhecer as fossas abissais da dor. Pelo futebol se vive e, literalmente, se morre no Brasil. Podemos afirmar que a sua representatividade extrapola a definição de esporte e de metáfora da ordem nacional.

Mais que traduzir ou interpretar a vida do brasileiro, por intermédio do futebol o sujeito adquire o sentido de pertencimento, isto é, transforma-se no ser social que vive pautado por valores, sucessos e fracassos inerentes a este esporte, como se fosse a própria vida vivida. O futebol faz existir concretamente o imaginário sócio-cultural mais abstrato, efetivando uma leitura dinâmica, atual e concreta do Brasil do século XXI, como sendo uma nação que sonha com o estrelato, com os pés descalços, afundados na lama do campinho de um terreno baldio.

Socialmente, ele é organizado a partir de ligas, federações e confederações legalmente constituídas, porém a sua representação popular, é o baba . A organização dos babas, de certa forma, reordena a dimensão do uso do solo no espaço urbano, quando o grupo de “jogadores” elege para “fins de desapropriação futebolística” determinadas áreas da cidade abandonadas ou não, públicas ou privadas, à exemplo do Campo de Moreira na Cidade Nova, Campo do Lasca no Caminho de Areia ou o Tejo no IAPI dentre outros, que há décadas servem de palco para o que eu chamaria de ex esporte bretão.

De maneira análoga, as quadras das escolas públicas e às vezes das particulares, têm dividido democraticamente - raramente de maneira conflituosa - os seus horários de uso entre as aulas de Educação Física e os babas da comunidade. Esta relação geralmente ocorre devido à falta de oferta pública de espaços próprios para a prática esportiva e às vezes oportuniza o surgimento de craques a exemplo de Bebeto que, menino de Nazaré, batia seus babas no campo do Colégio Central.

É necessário não esquecermos que o baba no barro, no asfalto, nas praias, nas ladeiras, nos pátios, corredores e até mesmo nas quadras e campos das escolas, é a matriz cultural do futebol brasileiro e por ele passaram todos os grandes jogadores que construíram para o mundo, o Brasil, pátria do futebol penta campeão mundial, por enquanto.

O tri campeão mundial de futebol Tostão, em matéria para o jornal soteropolitano A Tarde em 12/02/2006, disse que “O futebol é um jogo de habilidade, inventividade, de técnica e também de muita emoção e de expressão corporal. Um balé. Os sentimentos se manifestam primeiro no corpo antes de chegarem à consciência. O corpo fala primeiro.”

É justamente no baba que são mescladas jogadas de futebol com ginga de capoeira e passos do samba, do frevo ou outro ritmo brasileiro que o valha, como já dizia Ari Barroso. A partir daí, desta mistura eclética, é que são improvisadas as bicicletas, folhas secas, sem pulos, pedaladas, paradinhas, cavadinhas e toda a sorte de invenções espetaculares, intuitivas, surreais e às vezes proibidas, que prescindem da lógica do raciocínio, desafiam as leis da física, e encantam o mundo desde a década de 1950.

Coisa de preto, diria eu, e que por preto aqui se entenda os babeiros de todas as cores, idades, etnias e classes sociais, que jogam descalços, de chuteiras ou com os sapatos da escola, e voltam para casa plenos de fantasia, sujos de lama ou poeira, empapuçados de bola e encharcados suor, para desespero de algumas mães, esposas e lavadeiras menos compreensivas. Porém, nem só de baba vive o futebol na sua representação popular. Devido a fatores como tempo, espaço e quantidade de jogadores disponíveis, são criadas diversas soluções para que aconteça o jogar bola.

Em pesquisa de campo realizada em Salvador, Bahia, encontramos estes jogos derivados do futebol, muito comuns entre crianças e adultos. São estas representações que podemos utilizar como conteúdos de uma metodologia de ensino deste esporte na escola, baseada na cultura popular.

Elas se baseiam nos fundamentos elementares do futebol que são o cabeceio, o chute, o drible, as habilidades individuais de controle de bola, a precisão do passe dentre outros. Dentre as suas diversas variantes citaremos algumas que tem maior apelo popular: Baba de gol fechado ou golzinho, baba quadrado ou cascudinho, bobinho, salão, gol a gol, batidas de pênalti, cabeceou, todos contra todos, vira lata ou virou. Ainda temos algumas derivações que viraram outros esportes como é o caso do Futsal, Futebol de Areia, Futvolei, Futebol 7 ou Futebol Society.

O Futebol no Imaginário Lúdico Infantil

Desde meados do século XX, o futebol alimenta o imaginário coletivo nacional. Da infância à fase adulta, as brincadeiras e jogos nele baseados cumprem o papel de estimular as criações desse imaginário.

O encantamento pelo futebol é tão presente na vida do brasileiro, que ele não existe apenas como uma disputa esportiva atlética para a qual foi concebido, mas é representado de variadas formas, sejam elas oriundas da cultura popular, da indústria cultural e, das tecnologias de informação e comunicação, a sua mais recente ramificação.

Um dos jogos mais presentes no universo lúdico da infância brasileira, o futebol se faz presente através de diversos tipos de registros cinematográficos, fotográficos, literários ou pictóricos que o identificam e relacionam com a criança. Essa associação se evidencia devido à acepção que contém o seu significado social, suas correlações de força e empoderamento, seu código de ética, moral, até mesmo espiritual, enfim, seu papel enquanto elemento cultural.

A sua função como elemento significativo e de profundo alcance para a ampliação do desenvolvimento sensório motor e melhoria das relações sociais de adolescentes e crianças brasileiras, é uma realidade em nível nacional. Neste contexto, a bola representa o fio condutor, o eixo central que dá suporte aos hábitos lúdicos da criança e do adolescente brasileiro, em relação ao jogar futebol. Este brinquedo é representado no inconsciente coletivo do imaginário lúdico da sociedade brasileira, das mais diversas formas.

Considerando que a ludicidade, enquanto condição estética e instrumento de apropriação da cultura, é o parâmetro que confere simbologias e funções ao brinquedo, entendemos que, para acontecer o jogo em condições adversas, alguns objetos adquirem novos signos, em um contexto diferente daquele para o qual foi criado.

Analisando suas características funcionais e representativas, um botão de camisa, um jornal amassado e enrolado com fita adesiva, um par de meias com enchimento, uma bexiga bovina enrolada com barbante, uma moeda, um sapato, ou até uma pedra pode servir de bola para que aconteça o jogo.

De maneira análoga, a sala de aula, a rua, as mesas,os terrenos baldios, os tabuleiros e os meios eletrônicos como pc’s e televisores podem servir de campo para a disputa. Neste contexto, os jogadores podem ser representados por bonecos de madeira, botões especialmente fabricados ou manufaturados, pregos, dedos ou animações virtuais.

Observamos que os objetos e locais que se transformam em bolas, campos e jogadores, extrapolam o seu caráter funcional original, adquirindo a possibilidade de representação simbólica e sócio-cultural daquilo que por seu intermédio é representado, no nosso caso, uma partida de futebol. Podemos afirmar então que as variadas formas de se representar um jogo de futebol compõe uma parte significativa da concepção lúdica do coletivo nacional.

Diversos fatores como o tempo, espaço, condições climáticas, disponibilidade ou escassez de material, situação econômica e tecnologia, influenciam direta ou indiretamente na criação das diversas variantes, através das quais o futebol se manifesta. Neste sentido, o objeto representante deverá traduzir uma natureza real ou fantasiosa que servirá de base para a brincadeira.

A partir dessas condições temos diversos jogos que representam o futebol em diferentes espaços: O Futebol de Mesa, o Pebolim, o Futebol de Preguinhos, diversos jogos eletrônicos para TV ou computadores. E não param por aí as adaptações: Futebol de Sabão, Pebolim Humano, Futebol de Vassouras, Futebol de Duplas (parceiros com as pernas amarradas).

Várias também são as datas comemorativas que servem de motivo para se bater um babinha. Um dos mais tradicionais é o Solteiros x Casados, o Baba do Vinho, jogado na Semana Santa onde os homens jogam travestidos de mulheres, o chamado Bico Seco, que é um jogo apostado no qual o time derrotado paga bebidas para o vencedor e não tem direito a beber também. Em escolas do segundo grau, é muito comum, o Professores x Alunos, dentre vários outros

Sabemos que não se esgotam aí as possibilidades lúdicas relacionadas ao futebol. Pesquise na sua região, pergunte aos seus amigos, seus alunos, seus filhos, aos mais velhos. Sempre haverá uma forma inédita, seja pela renovação e adaptação natural da atividade ou pela lembrança de outras, que já estejam em desuso. Todas estas possibilidades se legitimam quando o objetivo é buscar o prazer de jogar e fazer um goooooooooooooolll...!