SANTOS: VANGUARDA ÀS AVESSAS

Minha mãe conta que o Vovô Pedro (meu bisavô) não torcia pelo Santos, mas torcia loucamente para o Pelé. Ao que parece, o maior jogador de todos os tempos veio ao mundo para mostrar que a magia é, muitas vezes, mais importante que as fronteiras. Ou melhor, capaz de quebrar as fronteiras.

Há histórias fantásticas sobre Pelé e o mítico Santos da década de 1960. Em uma excursão à África, em 1969, Pelé foi capaz de parar temporariamente uma guerra – fato relatado em inúmeras biografias e documentários sobre o rei do futebol. No transcorrer da guerra civil na África, as forças rivais declararam a interrupção das agressividades, chegando a ocorrer, numa região de fronteira, a transferência da delegação sob tutela de um exército para o outro. Tudo na santa paz.

É claro que este é um exemplo extremo de um atleta ímpar. Contudo, a quebra das barreiras (no bom sentido) entre torcidas, não apenas entre tropas – sempre lembrando que torcidas organizadas, a meu ver, são formas de guerrilhas –, também é algo a se dar valor. Quando pessoas ligadas a diferentes times, de estados longínquos, de cores díspares, até rivais estaduais se unem em espírito no afã de ver uma agremiação ou um jogador em especial – independente de cor, credo, posições políticas ou classe social – é porque algo de especial está acontecendo.

Era esse tipo de união que causava o Flamengo de Zico. Um time tão ligado às feições de seu camisa 10 que chegava a confundir agremiação com indivíduo. Zico era tão soberbo que todas as torcidas (até as de Botafogo, Vasco e Fluminense) adoravam vê-lo jogar. Um talento sublime que chegou a receber música em sua homenagem (dos tempos que musicar esportistas não caía na promiscuidade do funk ou do axé-music). O “Camisa 10 da Gávea” foi entoado por Jorge Bem Jor e aplaudido em todas as cores, e não apenas em rubro-negro.

Mas Zico era brasileiro e jogava na seleção – você vai dizer – e isso, mesmo defendendo um escudo em particular, lhe ajudava a cair nas graças do povo. Pois, então, vou mais longe. Durante uma época, eu acordava cedo nas manhãs de domingo para assistir Diego Maradona jogando pelo Napoli. Foi a coisa mais próxima da magia (daquela real, não falo de truques) que já vi na vida. Como não sou contemporâneo de Pelé, nem de Garrincha, Maradona foi o meu exemplo.

Maradona era o melhor do mundo, e ponto. Não tinha eleição anual da Fifa nem nada, não precisava. Ele era entendido por todos como o sucessor do rei (à exceção dos argentinos, que acreditam que ele é mais... que é Deus). Para quem nunca o viu em ação, existe a ferramenta redentora: o Youtube. É só ir lá e conferir, nem vou falar mais nada.

Já no quesito times, outra esquadra fundamental para o encantamento foi a seleção brasileira de 1982. Só que aqui, há um porém: aquela Copa do Mundo é tida como uma ruptura; o momento em que o lado negro da força passou a reger, em detrimento do bem, o que acontecia sobre a grama. Até então, o ataque, o drible, o talento, o apuro técnico eram a missão – e a seleção era magistral em todos eles. A marcação era um mero detalhe. O futebol era o Éden, o lugar perfeito, o Nirvana. Foi aí que surgiu Paolo Rossi e a seleção italiana: os pecadores. Eles se deixaram levar pela tentação da vitória a qualquer custo e morderam o fruto proibido. Foram campões sem brilho, atolados no esmero da marcação e jogaram o mundo às trevas dos volantes de contenção. Dizem que aquela derrota do Brasil para a Itália – no estádio de Sarriá – foi o que de pior aconteceu para o futebol brasileiro... e por tabela a italianos e todo o resto do mundo também.

Desde então, com raras exceções, o volante de contenção passou a ser a prima-dona dos times. Mais importante que o 10, tornou-se o 5 (e aqui há, no mínimo, um equívoco matemático). Certa vez, Parreira, técnico do tetra campeonato mundial vencido pelo Brasil (nos pênaltis, depois de um 0x0 medonho), chegou a dizer que o gol é um mero detalhe. É caso de hospício ou não é?

Durante boa parte das últimas três décadas vivemos com uma profusão de equipes, treinadores, jogadores, dirigentes e, até, torcedores (vide os gremistas, a exemplo de Eduardo “Peninha” Bueno) imbuídos em transformar o futebol na máquina perfeita da marcação; o supra-sumo da preparação física; a exaltação do carrinho e do roubo de bola. Contudo, poucos são aqueles que, baseados nessas filosofias, fixaram-se nos corações das torcidas.

No meio desse mar de mediocridade, surgiram, aqui e ali, oásis de inspiração. Exemplos de resistência, como se fossem jovens “inconsequentes” rebelados contra uma ditadura imposta a partir da catástrofe do Sarriá. Maradona e o trajeto aberto pelo cosmo entre beques ingleses, em seu gol contra a Inglaterra, na Copa de 86; o São Paulo de Telê; o Palmeiras dos 100 gols; os Barcelonas de Romário, Ronaldo, Rivaldo e Ronaldinho Gaúcho; os desfiles de Zidane ao cruzar o caminho dos escretes canarinhos; o jogo-vídeo-game de Messi; e agora, os novos meninos da Vila Belmiro.

Eles não ganharam nada, eu sei. Fizeram “apenas” 89 gols em 20 partidas. Jogam, teimosamente, com apenas um cabeça-de-área que, pasmem!, faz gols e acerta a maioria dos passes. Arriscam – são uns provocadores mesmo - a jogar com pontas (“bota ponta, Telêeee!”, já dizia Jô Soares). Trocam zagueiro por atacante quando já estão ganhando de 5 e fazem dancinhas esdrúxulas a cada comemoração de gol – noite dessas tiveram de elaborar 10 coreografias diferentes. Tirando que é “apenas” isso que eles fazem e que ainda não ganharam nada, rezo para que eles sejam a última fronteira no que se refere à filosofia desse amado e idolatrado, salve, salve, jogo chamado futebol.

Uma filosofia que é pregada, cultuada e expandida no futebol de rua, que arranca a tampa do dedão do pé, feito com traves de tijolos e bola de meia. Aquele futebol do time com camisa contra o time sem camisa. O futebol do drible por debaixo das pernas, do sarro, da cervejinha com os amigos depois da peleja. O futebol – ele ressuscitou, acreditem – das tabelinhas, do calcanhar, do abuso, do enfileirar 4 ou 5 adversários e cruzar de chaleira. Aquele futebol pelo qual todos, todos mesmo, independe de time ou cor de camisa, torcem.

O Santos de 2010 é a nossa vanguarda, mas às avessas. Uma vanguarda que tenta transformar em futuro o que já foi presente, mas que foi enterrado no passado por Sarriá. O que está à frente é o que ficou nas lembranças; da academia à laranja mecânica; das pernas tortas, passando pela enciclopédia e curvando-se à majestade que ungiu para sempre todas as camisas 10. Tomara que eles consigam. Tomara que os meninos da Vila sejam campeões... de tudo. Tomara que eles sejam capazes de parar guerras. Tomara que eles façam 1000 gols. Tomara que eles goleiem o meu time, sem dó, se cruzarem pela frente. Tomara que os deuses os protejam de contusões, de carniceiros, da empáfia, de aproveitadores e do dinheiro. Tomara que eles tragam a redenção, os ataques cujos nomes se sabe de cor e salteado, e a certeza de que futebol é para se vencer, mas vencer dando um show de bola.