MEMÓRIAS EM AÇÃO: os sagrados banhos e rezas de minha avó Joaninha

MEMÓRIAS EM AÇÃO: os sagrados banhos e rezas de minha avó Joaninha.

Aline Andressa Moreira Brito

Ana Socorro Ramos Braga

RESUMO

Este artigo é um relato reflexivo e sentimental da minha busca da ancestralidade teatral e foi escrito com base em diálogos que me aproximam de outras formas de olhar e repensar a minha própria trajetória. Busco os elementos performáticos conectados com meu corpo que percorre subjetividades por meio do gingado, o canto, o jogo corporal que transmite suas experiências, por meio da ancestralidade no trabalho cênico. As reflexões foram orientadas pela leitura dos autores/as Diana Taylor (2013); Jéssica Barbosa (2021); Richard Schechner (2003) e Grada Kilomba (2019). As minhas experiências de vida na fase da adolescência por meio de vivencias, trocas de saberes, são divisores de água e reflete sobre a necessidade de ir ao encontro das vozes da minha ancestralidade do conhecimento que dele advém. Nessa perspectiva, faço-me, pois “Não sou objeto de estudo, mas sujeito” ao identificar e falar sobre as manifestações que se foram repassadas por minha avó, Joana Araújo Oliveira. Desta forma, digo quem sou, menciono as mulheres que já se foram, apresento tradições, costumes, mostro de onde sou e aquelas que andam comigo.

Palavras-chave: Teatro ritual. Memorias em ação. Performances. Identidades.

MEMORIES IN ACTION: the sacred baths and prayers of my grandmother Ladybug.

ABSTRACT

This article is a reflective and sentimental account of my search for theatrical ancestry and was written based on dialogues that bring me closer to other ways of looking and rethinking my own trajectory. I look for the performative elements connected with my body that runs through subjectivities through gingado, singing, the body game that transmits its experiences, through ancestry in the scenic work. The reflections were guided by the reading of the authors Diana Taylor (2013); Jéssica Barbosa (2021); Richard Schechner (2003) and Grada Kilomba (2019). My life experiences in adolescence through experiences, exchanges of knowledge, are watersheds and reflect on the need to meet the voices of my ancestry of the knowledge that comes from it. From this perspective, I make myself, the perspective, "I am not an object of study, but a subject" by identifying and talking about the manifestations that were passed on by my grandmother, Joana Araújo Oliveira. In this way, I say who I am, I mention the women who have passed away, I present traditions, customs, I show where I am from and those who walk with me.

Keywords: Ritual theatre. Memories in action. Ritualistic performances. Identities

1 INTRODUÇÃO

Este artigo tem como proposta ser um relato reflexivo e sentimental da minha busca da ancestralidade teatral. Foi escrito com base em diálogos que me aproximam de outras formas de olhar e repensar a minha própria trajetória onde fui protagonista e narradora. O campo de investigação está ligado ao fazer sagrado que refletem histórias de si, as quais tomam vivências relacionadas ao trabalho da atriz tendo como referência mulheres pretas e artistas pretas. Busco, através dos movimentos corporais e performáticos conectados com a memória, os banhos e as rezas de minha avó Joana Araújo Oliveira. Busco no jogo corporal da performance as experiências pessoais, especialmente, de minha infância e adolescência com minha avó que hoje tem 86 anos de idade. Relato uma performance e um experimento de ação ritual que me permitiu a descoberta de si, por meio da ancestralidade no trabalho cênico.

Passei a desenvolver esta temática relacionada a ancestralidade no trabalho cênico, continuando em outras disciplinas. De maneira reiterada, fui provocada a perceber a temática abordada ao longo das disciplinas, aliado a isto, retomei aqui, um trabalho de cunho artístico coletivo em sala de aula na qual coloquei-me em conexão com os elementos performáticos; estimulando a autopercepção como mecanismo de resgate de memórias e saberes ancestrais, e, em especial, sua articulação na preparação corpo da atriz. A partir desta experiência fui construindo de forma sistemática os saberes e as histórias ancestrais as quais estou conectada, identificando no meu corpo as circunstâncias em que fui atacada, silenciada, mas também aquelas oportunidades de expressar meus anseios e mostrar a minha história. As vivências de infância a adolescência de menina negra mostraram-me um caminho a trilhar. Os banhos e as rezas. As garrafadas e demais conhecimentos de minha avó são caminhos de autonomia criativa. Por meio delas, eu poderia provocar algo sobre quem sou e de onde vim. A partir desse lugar é que o sagrado toca e move o meu trabalho de atriz no processo de criação.

O caminho pelo qual fui instigada justifica-se, portanto, a partir de aproximação com as pessoas de minha família e seus modos de conhecer que, na minha percepção, transmitem conhecimentos passados de geração a geração. De modo que, por meio das práticas performativas, pude perceber sua importância, mas que até então não atribuía valor, nem levava a sério, eram situações e circunstâncias banais. Por isso, busco compreender a importância dos saberes populares que são passados entre gerações e sua relevância como modo de conhecer. No caso, relato minhas memórias para pensar estas relações entre conhecimento acadêmico e o saber popular e como elas são fundamentais para estruturar procedimentos artísticos relacionados a ancestralidade, à construção da identidade subjetiva. Utilizo como ferramenta analítica minha história relacionando suas contribuições para as cenas que reelaboro, as influências de cada elemento num trabalho corporal de matriz negra.

As reflexões foram orientadas pela leitura dos autores/as como Diana Taylor (2013); Jéssica Barbosa(2021); Richard Schechner (2003); Grada Kilomba (2019) no que se refere a pontos convergentes e divergentes entre conceitos teóricos e práticas sobre os conhecimentos incorporados de modo a deixar que a performance se dá através das experiências vividas, contadas pelos nossos antepassados, num diálogo com o outro, ou seja, nossos ancestrais, a partir de um ensinamento mútuo. Do modo como afirma a multiartista portuguesa Grada Kilomba, “Não sou objeto de estudo, mas sujeito” (2019). A partir dessa percepção aguçada, minha narrativa está conectada aos saberes repassadas por minha avó, e como ela se relaciona com o sagrado, os elementos que utiliza para se relacionar com o passado, o presente e o futuro. Digo quem sou, menciono aquelas que já se foram, apresento tradições, costumes, mostro de onde sou. Com isso, dou visibilidade à minha ancestralidade de modo a colocar em evidência a ressignificação da profundidade ritualística experienciada na minha adolescência junto à minha avó Joaninha, que reverbera por meio dos banhos, do rosário, suas histórias, seu conhecimento e que se reafirma em direção à minha construção como atriz.

2 O CONHECIMENTO DE SI A PARTIR DE JUDITH

Foi a partir da peça-filme Em Busca de Judith que compreendi sobre a potência corporal da atriz Jéssica Barbosa. A construção do seu personagem que foi baseado na história da sua avó, sua busca por suas origens. Percebi que havia feridas que estavam abertas e que ainda não foram cicatrizadas. A apreciação desta performance me inspirou a investigar o meu familiar e o meu cotidiano.

Em artigo intitulado “O Ebó Rapsódia Em busca de Judith: a experiência artística enquanto agenciadora política e ancestral” a autora conduz ao seguinte questionamento: quais agenciamentos políticos e ancestrais uma obra autobiográfica, íntima, pode provocar? Acredito que a pergunta é um convite a pensar outras possibilidades de produzir conhecimento, e mais, de criar estratégias de redescobrir uma política decolonial no campo dos estudos da corporeidade. Esta política, segundo ela, “compreende a ação corporal como pensamento e prática política" (Barbosa, 2021, p. 6).

Com a necessidade de acessar suas memórias familiares apagadas pelo passado, Jéssica Barbosa se deu conta da lacuna que permeava a história da sua família. Com isso, percebe que não conhece de onde veio, em especial a história da sua avó paterna, e inicia uma busca pelo autoconhecimento, e através de investigação descobre que sua avó foi internada de maneira compulsória gravida, e teve o filho no manicômio. A partir deste momento, começa uma busca para descobrir quem foi sua avó, e quem ela é, através da sua ancestralidade para entender o seu presente, e como a lacuna de não saber suas origens impactou na sua vida adulta. (Barbosa, 2021).

O processo criativo de Em Busca de Judith, ocorre numa intrínseca relação dinâmica entre corpo e autobiografia: a linguagem da capoeira, a ginga, a rasteira, para enfatizar a luta, antimanicomial, debatendo sobre quantas pretas foram silenciadas, encarceradas, transmitindo a dor, representando com o seu corpo, o chamado por sua avó. A autora traz para o centro de sua atenção a busca pela sua ancestralidade, cenários que potencializam os rituais e a natureza: ervas, banhos, e o respeito para com esses elementos. Em sua encenação, uma fala é recorrente e para mim, é muito emblemática: "quero uma casa própria, um teto só meu”. Esta fala me fez pensar sobre o encarceramento, e uma memória atual. No plano individual e do coletivo, como pensar quais são as correntes da nossa sociedade que ainda aprisionam o corpo negro? Nossos saberes, conhecimentos ancestrais, e neste aprisionamento, como a cura irá acontecer?

Este espetáculo mostra a ressignificação da dor, por meio do espaço, olha para o passado e o presente, nos faz refletir sobre a luta pela vida, como estamos lidando com a saúde mental, que infelizmente ainda é lidar a sociedade não dar a atenção correta. Vale salientar a importância de trazer esse tema principalmente quando envolve histórias de vidas, o trato cotidiano, e sua interface com a construção do sujeito. Em busca de Judith [...], me fez pensar sobre o que podemos fazer, que caminhos podemos utilizar na busca de si. No contexto da pandemia, este questionamento se tornou ainda maior, o encontro com o meu eu; sou preciso e necessário, o que a meu ver, as pessoas estavam reaprendendo a se encontrar com elas mesmas, olhar para trás, de onde vieram. Na peça, a atriz Jéssica Barbosa fala que, "quando não souber para onde ir, é importante olhar para onde veio" é a busca do passado para compreender sua história, é conhecer sua origem, seus ancestrais.

3 A REVELAÇÃO DO SAGRADO NA ADOLESCÊNCIA

Minha avó Joana Araújo Oliveira, filha de Domingos Isaías de Oliveira e Joana Perpetuo Araújo nasceu no município de São Bento em dezembro de 1937, (hoje com 86 anos) e se mudou pra Penalva quando tinha seus cinquenta anos de idade. Desde pequena, eu via minha avó transmitindo seus conhecimentos por meio de suas rezas, banhos, evocando o sagrado para honrar e se aproximar deles – assim como ela se refere a seus caboclos e encantados. Ela também faz benzimento usando as ervas para tirar toda a energia ruim, pedindo proteção. Hoje, percebo o quanto essas lembranças e sensações que guardo da minha adolescência foram divisores de água ao me revelar enquanto narradora e escritora da minha própria história. O tempo foi passando e, de maneira gradativa, fui me tornando mais próxima das relações imateriais e materiais que envolvem o sagrado, isso foi possível porque a minha história não está sendo contada de forma arbitrária, ou pelo olhar colonial hegemônico.

Recordo-me que o primeiro prenúncio do sagrado aconteceu na casa de minha avó quando eu tinha 15 anos. Em 2010 fui passar alguns dias com ela que ainda hoje mora no município de Penalva, na zona rural, em um povoado chamado Formigas. A intenção era de passar poucos dias com elas, no entanto, fiquei aproximadamente 3 meses porque estava atravessando um problema de saúde. Eu tive problema na pele, muitos hematomas pelo corpo inteiro, e um sangramento menstrual que não cessava por nada. Antes, já havia recorrido à medicina convencional em São Luís. Fiz uso de medicações, mas não funcionou. Minha avó, com sua sabedoria ancestral, ficou me observando, e de logo começou a colocar em prática os seus conhecimentos: garrafadas para tomar, rezas para fazer toda noite. Neste momento observei como ela fazia as garrafadas com mistura de várias ervas. Aquilo tudo, apesar da instabilidade do meu corpo físico, me soava familiar.

Quando estive na casa da minha avó, estabeleci uma conexão as quais se converteram em curiosidades em descobrir as minhas origens, de ondem eu venho, os saberes que perpassam gerações. Acredito que o elo entre passado e presente vivificado, me tocou no sentido de buscar sua sabedoria perpetuada em sua memória. Era o mês de setembro daquele mesmo ano. No barracão, estava sendo organizada uma festa, minha avó é devota de São José de Ribamar e de São Cosme e São Damião. A representação religiosa do primeiro se associa à proteção dos pescadores, e dos últimos, às crianças. Inclusive, em suas festividades para esses santos, anualmente em setembro, distribui brinquedos, pipocas e doces para os pequeninos, minha avó com belas vestimentas, sentia e percebia uma força gigantesca ao seu entrono. Na atividade religiosa do festejo, o primeiro dia é iniciado com o tambor (Tambor de Mina), o segundo é para a festa com reggae.

Na ocasião, eu auxiliava minha avó na organização e já dava sinais de envolvimento com o sagrado. Jamais esqueci esse dia. A casa ficou cheia: muita gente foi ajudar a fazer as comidas, preparar as carnes – gado e galinha caipira, café, assim como arrumar o barracão, o altar dos santos, e todo o cuidado com as suas vestes para o tambor. As cores vivas de sua saia rodada, seu turbante, e seus terços. É nesse limiar de observações que os referenciais são construídos e as narrativas simbólicas são compartilhadas. Sobre esse assunto, Braga (2019) questiona o eu na perspectiva da ação coletiva, numa dinâmica tensionada pelas suas referências culturais e profissionais. Percebo que esta autora convida a refletir sobre o conhecimento produzido na sua dimensão coletiva. Conforme menciona, isso naturalmente acontece quando ela está no “processo de transformação que se produz no espaço de vulnerabilidade e incerteza das transições e mudanças que visam a aquisição de algo novo, criativo, em transformação” (Braga, 2019, p.150).

Desse modo, o meu percurso empírico caminha em direção às narrativas oral com base nas minhas vivências e conversas com minha avó, em uma articulação que revela o meu sentir, reflete também em minha voz, e é reafirmada em minhas performances. Assim, ocupando um lugar que nos foi negado, uso diálogos e memórias para apresentar de onde pertenço, porque falo, compreendendo. A meu ver, acredito que esta ligação que ocorre por meio da experiência com a minha história, no envolvimento com o ambiente, remete este sentir a qual implica em recordar, e me abro para a dinâmica das minhas referências culturais e, porque não dizer ressignifico as inquietações e perguntas. Agora, sob outro prisma, o da minha avó, cuja fala destaco em itálico mais adiante.

“ALINE VAI LENDO AS REZAS” – As rezas e o rosário de minha avó.

Percebendo-me nesse processo em que eu também ajudava e aprendia por meio da conexão de minha avó com o sagrado, passava por lugar muito íntimo: o ambiente familiar trouxe para mim aproximações nunca antes vivenciadas. Lembro-me de como ela fazia as garrafadas. Primeiro ela ia atrás dos “matos” assim como menciona as ervas medicinais. E em seguida lavava bem, colocava em uma panela grande para ferver. Aguardava esfriar e em seguida colocava dentro das jarras para ir tomando durante o dia.

Com o tempo, ela percebeu e sentiu que necessitava de um reforço, foi então que começou a fazer gemada com café, ovos, e algumas ervas. Todo dia eu tomava essa gemada (gema de ovo de frango caipira batido com açúcar e ervas) geralmente antes da primeira refeição. Além disso, recordo-me dos banhos com ervas que eram moídas no pilão e depois eu tinha que banhar e aguardar secar no corpo, pois eu não poderia retirar, segundo minha avó era sinal de proteção espiritual.

O livro de reza e os objetos de proteção do corpo físico e espiritual

Entre estes encontros comigo e com a minha ancestralidade, recordo-me de um livro de orações, onde toda noite minha avó dizia: “Aline vai lendo as rezas”. Eu, devagar, ia repetindo a oração com seu terço, e enfatizando palavras como: proteção, abençoar, curar. Eu continuava a ler toda noite e quando encontrava a reza que ela queria, escrevia 3 vezes no caderno. Depois ela pegava as folhas e espalhava nas paredes de seu barracão ou pela casa, acendendo sua vela branca (de 7 dias e sete noites) no altar dos seus santos e rezava com o seu terço à noite. Não me ausentava desse compromisso, pois acreditava no poder que ele tinha e tem. Ainda a noite, antes de dormir, contava as histórias dos seus caboclos e encantados, e também me orientava como deveria prosseguir.

Durante os rituais de minha avó, eu sempre vinha curiosidades e questionamentos; por que minha avó procede de tal maneira? Quem a direciona? E ela sempre falava que o/a encantado e o/a caboclo/a falavam a ela como era para fazer do início até a finalização. E que ela sabia o que era para fazer por que eles mostravam o “passo a passo”. Na sequência, ela ia relatando suas histórias de curas e manifestando a gratidão pelos seus os/as encantados/ e o/a caboclos/as. Ela contava sobre os tratamentos espirituais, os remédios que havia usado, o nascimento dos seus filhos, etc. Tais diálogos despertaram minha curiosidade, especialmente sobre a história de sua filha falecida que lhe avisava quando alguém estava para chegar em sua casa. Às vezes, colocando o seu rosto com o ouvido no chão e sua mão com a palma da mão também no chão e ela informava quem iria chegar. Desta maneira, ela carregava consigo caboclos/as, encantados/as e almas que mostravam a ela quem iria chegar, inclusive, como no caso desta filha falecida que avisou a ela o dia de sua própria morte.

Desse modo, dentre outras questões, percebi que em mim, muita coisa mudou; parte da minha história, do que eu desconhecia, e, me fez refletir que “já não sou mais que eu era antes e agora, mais que nunca, eu não ando só” (Braga, 2019. p158). Estar presente nesses diálogos, me aproximou e mesmo quando retornei para casa, estes ensinamentos, vieram comigo e sempre que possível pedia a minha avó para fazer um banho, e ela mandava e falava o quê e como era para fazer. Inclusive o horário do dia e o tempo, se é pela manhã ou à noite e se era para tomar todos os dias e a reza que devia ser feita.

3.1 Relatos de Minha Avó Joaninha

Isso é dom – sobre a cura, Joana Araújo Oliveira.

As ervas não fazem mal, elas curam, alivia dores do corpo e espirituais. Quando eu era mais nova fiquei muito doente não podia fazer nada, não andava, nem comia. Pensei que ia morrer, e foi neste momento que comecei a olhar meus caboclos e encantados, pra mim que eu estava me alimentando, na minha imaginação eu comia, mas não comia, alguém sempre colocava a comida, arroz, carne e eu comia tá compreendendo? Mas era na minha imaginação e olhava a sala cheia de mulheres rezando e um homem que cantava. O nome dele era José, mas se chamava Marajá, o nome verdadeiro dele é Caboclo Maraguá. Ele cantava o dia todinho na sala, era reza e reza, mas só eu olhava. Fiquei muito ruim. Eu já nasci com este dom, eu não tenho pai de santo, não tenho mãe de santo, não tenho nada, me curei. Antes de alguém ir lá em casa, eles já falavam e mostravam quais ervas usar, como fazer o banho. E as pessoas adoeciam e iam lá em casa e eu fazia os banhos e eles ficavam bom. As pessoas espiritadas chegavam lá, eu dava banho neles, e colocava uma descarga de pólvora. A descarga de pólvora é pra tirar coisa ruim do corpo. Tem a descarga de São Jorge, mas quando a pessoa tá espiritada é a descarga de pólvora, que é feito assim: coloca a pólvora ao lado da pessoa com uma certa distância de cada lado, não coloca muito perto para não queimar a pessoa, somente uma pitada ao lado em uma vasilha, acende e faz a descarga, apaga e acende de novo, e em seguida defuma a casa toda com pólvora e o que estiver ali vai embora. De primeira, uma pessoa espiritada que está com coisa ruim a gente dava um banho que o estivesse de ruim ia embora. Quando o caboclo cai no chão é que ele está curado. (Joana Araújo Oliveira).

Sobre a Mina

Há 20 anos faço tambor de Mina em setembro nas minhas festas. O primeiro dia é o tambor, segundo dia é a seresta e o último dia é a festa com reggae. Tenho o barracão. Um dia chegou um homem dei uma descarga, banhei ele com as ervas, eu nunca bati tambor pra fazer remédio pra uma pessoa, só no banho de mato tirava feitiço. Eles [referindo-se aos encantados e caboclos] mostravam pra mim como era pra fazer: cortar bem cortadinho as ervas, alho e moer, e eles mostram o mato que era pra socar bem socadinho no pilão e dava os banhos. Já tirei muito feitiço, coloquei muita gente boa. O barracão que eu tenho foi um homem que gastou tudo que tinha com curador, médico, e não ficava bom. Tinha uma pessoa que já fiz serviço que disse [a ele] que quem te coloca bom é a Joaninha. Ele foi lá na minha casa e fiz a descarga. Acendi a vela, olhei a distância e fiz a descarga. (Joana Araújo Oliveira, grifo nosso).

Sobre o tambor

Os preparativos para o tambor começa pelas roupas. Os caboclos e os encantados falam quais cores é para ser utilizado, as pedrarias, os adornos, em seguida falo com a costureira para fazer meus vestidos - saia para o dia do tambor, é a noite toda, baixa muito encantados, é muita dança, muito café, cachaça, vinho, para os tocadores. Faço a limpeza do barracão com defumação com ervas, rezo para os meus santos. (Joana Araújo Oliveira, grifo nosso).

Sobre as rezas(s)

Nas rezas, eu uso um rosário preto que dá duas voltas. Rezo três Pai Nosso, três Ave Maria, esse cordão e reza o quinto salmo 2. Antes eu olhava aquela quantidade de gente, quando estava doente eu dizia como é seu nome? Ela respondeu Maria Padilha. E eu falei a senhora é tão linda, e ela agradeceu.

Nessa minha doença, quando fiquei boa, foram aparecendo gente e eu fazendo remédio e eles (referindo-se aos encantados e caboclos) sempre me falando qual mato usa como fazer se era pra ferver, coar e colocava nos litros ou se era pra socar e dizia os horários para tomar o remédio, as garrafadas. Alguns tinha que tomar três vezes no dia, outros só uma vez, outros casos a pessoa tinham que tomar o banho com ervas socadas no pilão e não tirar. Deixa no corpo, cada pessoa era um jeito. (Joana Araújo Oliveira, grifo nosso).

Considero minha avó uma mulher com muita sabedoria, com pouca escolaridade. Ela é de uma época em que as mulheres eram ensinadas (ou ainda são) que seu papel se restringia aos cuidados dos filhos e do casamento. Uma de suas qualidades que mais admiro é o zelo e amor pela família que é se estende à vizinhança e também a todos que a procuram em busca de cura.

Enquanto ouço, observo que minha avó fala seu nome como tivesse se referindo a outra pessoa e não a ela mesma. Qual o porquê disso? Tem uma frase que ela diz que acho muito interessante: “eu sou rica de tudo, tenho saúde, família, minhas coisas e minha terra”. Embora não tenha tido oportunidade de estudo, ela é uma das pessoas mais sábias que conheço. Suas palavras ecoam em mim, tais como afirmou o professor Gilberto Martins em palestra proferida “está em nossas mãos quem será lembrado e que será esquecido” .

Ela me deu um rosário quando veio para São Luís. Na ocasião estava, eu minha mãe e minha avó Joaninha. Ela me disse que não conhece a pessoa que lhe enviou o rosário, mas sabe que é uma mulher coberta de cabelo, quem trouxe e foi uma amiga finada chamada Eneonora. O rosário que ganhei de presente de minha avó é de material plástico resistente que remete a pedrarias de cor cinza brilhante intercalando pedras grandes e pequenas em seu entorno. Possui 39 pedras pequenas e 78 pedras grandes. Ele pode ser usado como um acessório dando-lhe duas voltas ao redor do pescoço.

Assim, ao revisitar minhas memórias, a ligação com minha avó tornou-se o fio que conduziu os elos do meu fazer artístico, acadêmico e pedagógico durante essa trajetória que, para mim, é indissociável

3.2 Performances de corpo - corpo ambiente e ritual

o movimento em que gradativamente iniciei o processo de questionar o meu lugar junto aos meus ancestrais, conjugando passado e presente. Nesta ação, busquei introduzir a valorização do corpo, com um olhar voltado para os elementos internos e externos na (re)construção do meu corpo como ambiente e ritual por meio da performance. Foi produzido à época um vídeo baseado da minha vivência, gravado no interior da Universidade Federal do Maranhão, onde a performance aconteceu como exercício de disciplina. Ao fundo, as ruínas simbolizam os muros (obstáculos ou dificuldades), e fui construindo o cenário (próximo ao muro de blocos vazados cor cinza que cerca o campus da UFMA). Motivada a conectar-me ainda mais com a natureza e seus elementos, incorporo na minha ação cênica, a iluminação natural do espaço para mostrar a força viva na terra. O prédio Centro de Ciências Humanas (CCH), mais especificamente, o bloco B6 foi a escolha para a realização da performance, tendo em vista o cenário de rara beleza em sua arborização natural, ocupei esse espaço com força para mostrar este saber e apresentar a resistência desse conhecimento na tentativa de reconectar ainda mais com a minha história “capaz de percorrer todos os tempos e de fazer do corpo espaço de saber, um saber encarnado” (Barbosa, 2020, p.5). Utilizei uma bacia com algumas ervas como arruda, manjericão, aroeira, alfazema para o banho durante a ação. O eu foi se aproximando da necessidade de buscar outras narrativas, dentro e fora de mim, expressadas numa dimensão simbólica disposta a dialogar com o que eu sentia: processos de invisibilidade; os caminhos que percorri com muita dificuldade; os silenciamentos impostos, como muitos de nós negros/negras retintos/as foram calados/as, um corpo que busca expressar um passado e um futuro de possíveis mudanças.

Descrevo as performances em que me inspiro nas minhas memórias ancestrais como forma de revelar quantas vozes foram silenciadas em mim, comunicando através do corpo e dos rituais a história de uma linhagem – a minha. Assim, minha arte tem como inspiração a manifestação de minhas crenças e ensinamentos de minha avó. Parafraseando Braga (2019), que inspirada no performer do espanhol Abel Azcona, diz que as performances autobiográficas geralmente são carregadas de memórias, sentimentos e sensações, e estas podem ser um instrumento de ressignificações, “não propriamente como modo de cura”, mas como em suas palavras “ferramenta de autoconhecimento” (Braga, 2019, p.150). Assim, buscando autoconhecimento, faço conexões íntimas e trago com mais afinco, inquietações internas, das minhas origens e sua articulação com os saberes do corpo e da cena – performance comum mudança e transformação do corpo como ambiente em ação. Por isto, faço questão de lembrar o meu lugar de fala, na qual reúno a energia que perpassa o meu corpo, em manifestações religiosas, refletindo sobre esses saberes que atravessa o conhecimento popular, em especial das rezas e dos banhos de minha avó Joaninha.

A partir desse entendimento, é importante frisar que a formação sócio histórica e cultural do Brasil possui dentre outras características a colonização dos europeus e a escravização dos africanos. A pesquisadora Diana Taylor, a fim de oferecer uma reflexão sobre uma busca da historicização da performance, menciona que o momento inaugural do colonialismo nas Américas contribuiu para inserir dois discursos que corroboraram para a desvalorização da performance nativa: o primeiro, a rejeição das tradições da performance indígenas como episteme; e a segunda, a rejeição do “conteúdo” crença religiosa como sendo objetos maus ou idolatrias (Taylor, 2013, p. 68). Conforme a autora, esses dois discursos se complementam à medida que um, prega que a performance é efêmera, por não possuir um escrito, não possui validade, o outro reconhece o conhecimento advindo, no entanto, a idolatria precisa ser controlada por outra força.

Assim, identifico que a tarefa de mencionar de onde eu venho, da minha história, a singularidade da minha escrita, é uma forma de me inserir numa realidade que historicamente foi marcada pelo projeto colonial que designa o tipo de memória, saber e homogeneíza crenças e tradições. A partir do meu corpo, revisito sensações, impregnadas de vivências conectada a uma realidade histórica, coletiva, familiar e individual.

A cada ação performática empregava o uso do sagrado, preparando este corpo para aperfeiçoar o meu eu, por meio das minhas memórias, percebendo como está presente durante a ação. Assim, a cada proposta usei a ancestralidade que está na minha vida transmitida por intermédio da minha avó. Lembro-me dos seus banhos, suas rezas, cantando suas ladainhas, pagando suas promessas, festejando através do seu Tambor de Mina, e mostrando sua fé em seu terreiro com seus santos, com suas festividades no mês de setembro, preparando suas roupas cheias de pedrarias, seu terço pedindo proteção para si, para sua família e para todos que recorrem a ela como alternativa de [re]conexão com a natureza, proteção e cura. Aos meus olhos, rememoro estas lembranças e, ao mesmo tempo, enfatizo a figura ancestral da minha avó durante as festas, seja preparando o terreiro para receber as pessoas, varrendo e limpando o espaço sagrado - utilizando o defumador feito em uma lata com as ervas, com carvão e coco babaçu - seja colocando nos pontos principais suas rezas de proteção na parede.

Minha avó é uma performer na medida que prepara o ambiente para a ação do ritual e do jogo e sabe de sua importância para que todos possam adentrar os “lugares onde a realizam e me colocar nas relações que eles/elas estabelecem entre si, compreender os significados que atribuem ao que fazem e as que funções ela exerce no cotidiano” (Braga, 2019, p.149). Nesse sentido a sensação é de familiaridade porque penso que a performance está entre, tal como assevera Schechner (2003) e não há, portanto, uma acepção única para ela, pois está nos elementos tangíveis da corporeidade que se expressam de forma sensível, mas também no dia a dia na manipulação desse saber, onde cada elemento tem sua razão de ser na construção deste saber a partir da utilização de ervas no banho contra o mau-olhado, entre as rezas para ecoar e evocar os ancestrais, para os honrar e me aproximar deles, os/as seus encantados/ e o/a caboclos/as e almas. O benzimento usando as ervas para tirar toda a energia ruim, o que possibilita uma relação de contínua de proteção, para si, para os seus parentes (os seus familiares) e para sua comunidade (aqueles/as que a procuram).

Usei estes saberes que estão no meu dia a dia nas performances que realizei, usando os chamados da capoeira de Angola para restaurar a ancestralidade por meio do corpo, apresentando este trabalho corporal a cada passo, a cada forma de simbolizar esse corpo, sua luta, sua linhagem, que carrega mostrando através dos chamados demonstrando nossa voz, é o corpo contando sua/minha/nossa história.

É válido destacar o trato analítico desenvolvido por Taylor (2013) sobre a prática de arquivo e repertório. De acordo com essa autora, o arquivo se relaciona com a noção de reter o conhecimento para uma posterior consulta, já o repertório, encena uma prática que não precisa ser arquivada, pois se materializa nos gestos, oralidades, danças, movimentos, cantos e performances. Construindo uma dinâmica de ação como reciprocidade, e estabelece conexões com as memórias e vivências, de modo que é possível dizer que eu utilizei uma bagagem do repertório que é dito como “popular” e (quase) sempre marginalizado por causa de sua origem. Em movimento contrário, fui, a cada proposta de performance, percebendo a necessidade de mostrar estes conhecimentos como, por exemplo, a preparação dos banhos. Percebendo também a importância deste saber popular para o fazer teatral, alinhando estas memórias e ensinamentos aos experimentos artísticos, me apropriando e recriando o meu repertório.

4.1 Corpo - Memória em ação e sua interface na construção da atriz/professora

A ação é de entrelaçamento das memórias de minha infância e adolescência, bem como os conhecimentos ancestrais de minha avó Joaninha. Busco me aproximar do modo como este corpo de uma mulher negra, Cis, estudante de Teatro que se movimenta. Busco me aproximar das conexões ancestrais do presente com o passado. Inspirada, portanto, na primeira performance, busco apresentar os elos que se articulam à segunda baseada ‘Em Busca de Judith’ ao colocar-me em movimento com esta artista.

Esta escrita é um mergulho: estimular o conhecimento sobre o seu corpo, sobre si e tudo que o cerca a partir disto, lançar luz a um novo olhar, sobre este corpo que fala, que grita, a todo momento para ser olhado. Um mergulho na religião afro-brasileira para adquirir novas concepções do saber, que me implico como parte dele, no processo de interação consigo e com o/a outro/a para uma troca de energia perpassando estes corpos com um jogo teatral. Um primeiro passo para que eu pudesse dar o segundo passo, e com isso, compreender os processos de transformações deste corpo, suas limitações corporais e consciência de si a partir de elementos da prática corporal tradicional e ancestral.

Eu me transporto para o momento presente e com ele emerge as indagações. Sobre como trabalhar a religiosidade dentro da sala de aula? Como irá construir com o outro a ancestralidade que não é proposto durante a sua educação? A partir destas reflexões se utilizar a Mina (ou Candomblé) utilizando elementos rituais que foram ensinados, que são alguns movimentos muito utilizados na dança. Neste instante, começa a música, estes corpos não são mais os mesmos, não ficam parados, a cada movimento é observado o quanto cada corpo está jogando consigo mesmo, encontrando-se através de cada gesto, como consequência a energia perpassando cada parte do corpo transbordando alegria. Um corpo que mostra resistência e união com o outro, essa troca de energia, que vai subindo e vai se manifestando pela sala inteira. Atravessa e se desvela transbordando pela sala cativa cada um e a todo momento um encontro consigo libertando-se das amarras que a sociedade impõe e que a partir da ação proposta tem a possibilidade de se libertar, se reconhecer, se descobrir e se reencontrar numa perspectiva nova.

Energia que perpassa o corpo: primeiros passos na sala de aula

Em seguida apliquei este conhecimento com a turma de Atuação III. No início, confesso estava me sentindo insegura com receio de como os colegas de sala iriam reagir. Se iriam participar, ou ficariam tímidos. Para minha surpresa, o envolvimento da turma e a disponibilidade para o banho propiciou o meu envolvimento com confiança.

Em seguida apliquei este conhecimento com a turma de Atuação III. No início, confesso estava me sentindo insegura com receio de como os colegas de sala iriam reagir. Se iriam participar, ou ficariam tímidos. Para minha surpresa, o envolvimento da turma e a disponibilidade para o banho propiciou o meu envolvimento com confiança.

A roda iniciou: peguei as garrafadas que minha avó fazia, e em seguida, fui conduzindo-as nas mãos dos colegas de turma. A minha respiração ficava acelerada e aos poucos eu ia fazendo o exercício de contê-la e colocando-me no momento presente. Olhei para a turma e todos estavam em silêncio. Segui enfatizando a importância de adquirir resistência corporal importante no processo de construção do corpo do/as ator/atriz, desta forma percebi um novo olhar sobre mim, aplicando elementos como: a dança, a música, e o ritual. Estava convicta do meu papel na sala era de compartilhar um conhecimento que é muitas vezes é considerado banal, mas que carrega uma força, e porque não dizer carrega luta, esperança e que se mantém de pé apesar das dificuldades, do preconceito. Aprendi muito, a compreender a leveza do meu corpo, as experiências que ele carrega, e principalmente, um saber este que se ampara de várias formas em vários outros modos, fazendo o uso da ancestralidade no jogo com o outro, sendo este outro/a está empenhando-se para se descobrir.

A dinâmica é de autoconhecimento, mas eu também estava buscando conhecer a mim mesma. O benzimento e o banho não são a mesma coisa, pois cada um tem uma finalidade, depende da situação. Para a sala de aula contexto eu trouxe o banho que denominei de: ‘abrir portas e o benzimento contra o mau-olhado’. Iniciei com o benzimento para tirar todo o mau-olhado, tudo de ruim que cada um foi exposto até aquele momento.

Na ação, fui abençoando um por um, rezando para que os caminhos fossem abertos, dizendo: “que Deus conhece seu coração, sua luta e ele está com você em cada passo que der te protegendo e guiando” em seguida, pedi para que cada um rezasse para pedir proteção, para abrir as portas para si. Em seguida, ainda deitados no chão da sala, passei o banho emanando energia positiva, invocando que naquele momento deixasse para trás toda energia negativa, e pensar no que estar por vir. Eu sentia na hora do benzimento e do banho o mal sendo cortado, a inveja, as más intenções, a angústia que pode estar atormentando. Usei da minha ancestralidade para emanar boas energias aos colegas, sentindo em cada parte do corpo deles/as a sensação de se encontrar comigo mesmo/a.

Na busca pelos conhecimentos ancestrais, vou trilhando um caminho e percebo na segunda performance: Em busca de Judith, um tecido que adentra e propicia pensar o passado, e a memória-, elementos importantes para compreender o cenário atual. É sobre conexão ancestral, sobre um corpo que demarca um território ainda arraigado pelo viés machista e sexista na qual a sociedade ainda dita o espaço que ele deve atuar, ou seja, ainda é um corpo silenciado e apagado. O olhar crítico diante da peça, foi de extrema importância para dar coragem e criar a performance, o caminho estava posto: o meu corpo estava naquele momento ali; expondo os saberes que estão na minha vida por meio da minha avó Joana Araújo Oliveira. E, foi a partir da busca do autoconhecimento, que me motivou a criar essa performance utilizando a sua metodologia, uma metodologia própria que envolve observação atenta, colher os matos ( ervas), coloca-las nas panelas para cozinhar. Esperar esfriar e engarrafar. Limpar e defumar o espaço, utilizando os rituais como sequência de ação - rito inicial, de benzimento e banho e, no final, rezas para proteção.

Uma sensação de aproximação tomou conta da minha consciência corporal. Era como se em mim, fios orgânicos se movimentavam e eu, sentia que precisava dar vida no sentido da construção deste corpo, um corpo que antes do meu, foi silenciado, ou no dizer de Jessica Barbosa, “ele foi apagado”. Experimentando uma força e ao mesmo tempo questionadora me perguntava: o que me fez escolher essa performance? O que ela fala de mim? A partir dos estímulos, sentia que outras mulheres estavam comigo, e aos poucos percebia que “As perguntas anteriormente mencionadas me ajudaram a refletir sobre como me colocar em um campo aparentemente conhecido” na mesma perspectiva trabalhada por Braga (2020.p.18). A partir do meu imaginário consciente, sentia que não estava mais só. Utilizei estas memórias de infância e adolescência e iniciei com a preparação do local: colocando as bacias , as ervas, iniciei o trabalho apresentando estas raízes de onde vim , mostrando de onde vem minha ancestralidade, a conexão com a natureza, buscando os meus, e os nós, apresentando as amarras ,as dificuldade que enfrento ,os medos e anseios que estão no caminho.

Depois fui utilizando banhos com alecrim, manjericão, erva-doce e ervas cheirosas, com pétalas de rosas tal como minha avó fazia: amassando de maneira a sentir as folhas massageando minhas mãos; agradecendo e honrando os meus ancestrais. Finalizei utilizando o meu corpo colocando passos da mesma maneira que minha avó também fazendo: jogando o seu corpo com cuidado e, ao mesmo tempo com reverência. Nesse entrecruzamento, reafirmo, eu não estava mais só. O meu corpo estava envolto de um leve e misterioso movimento: o dá a minha avó que foi me dando as pulsões para que eu fosse redescobrindo a minha história. As lembranças das mulheres que via dançando no barracão ancorou todo o caminho, em especial das memórias daquelas mulheres pretas no tambor. Traçando diálogos, comigo e com elas, utilizei um véu branco para mostrar que mesmo que tentem calar para invisibilizar a nossa história e saberes, e para valorizar nossas crenças, elas estão em nossos corpos, que chamam e gritam e não se deixa abater apesar das dificuldades.

Deste modo, quando recuperei a condição de aprendiz foi que ancorei os pensamentos na minha ancestralidade que possui cores, traços, saberes e que a minha história é permeada de descobertas e aprendizados. Me dei conta de que, é preciso falar e mostrar quem somos, para construir o que queremos ser. A performance é a possibilidade materializar em ação o respeito e a crença, e ressignificar o gesto de dar e receber. O rosário, presente de minha avó Joaninha, significa essa continuidade, mostrando através dele a minha gratidão e conexão com ela e com conhecimento que se revela em suas palavras, em suas ações para com o sagrado, sua devoção e diálogo com os invisíveis, em seus gestos de generosidade, e no seu olhar.

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Este trabalho, teve como proposta ser um relato reflexivo e sentimental da minha busca da ancestralidade teatral. Nesse caminho, os relatos que faço foram colhidos em conversa com a minha avó ao longo de um período e de forma gradativa fui me aproximando, e num dado momento, percebi que era importante estabelecer um diálogo junto dos próprios questionamentos referente aos processos de construção da atriz/professora mulher negra. Desta maneira, ao me reapropriar desse saber vou construindo em meu corpo, sua ressignificação artística, narrando estas memórias que estão no cotidiano apresentando o meu protagonismo e em reflexão.

Acredito que esta, escrita é essencial para o meu crescimento pessoal e profissional. Fui percebendo a importância de falar sobre a minha ancestralidade, o que identifiquei nestas ações de vida com minha avó, os saberes que ela me transmitiu com os novos conhecimentos adquiridos na Universidade. Conhecer e estudar para me conectar comigo, com a minha história, trazendo estás vivências para o meu fazer artístico e pedagógico.

Conforme pontuei no início desta pesquisa, durante a minha trajetória acadêmica esta temática relacionada a ancestralidade no trabalho cênico foi encontrando outros/as para provocada a percebê-la. A partir dessas provocações fui adquirindo consciência para falar da minha própria busca e o encontro com a minha ancestralidade. Por isso, é importante salientar que a minha escrita configura um poema sobre resistência no sentido de que sou escritora e protagonista da minha história, tal como descreve Grada Kilomba (2019) e Jéssica Barbosa ( 2021; 2022; 2023). Saliento ainda que no caminho da escrita me torno narradora alicerçada na valorização da minha singularidade, ancorada na de outras mulheres com quem ando, pois “ eu não ando só”, como diz Braga (2020). Priorizei as minhas emoções, estabeleço conexão do meu corpo para singulariza-lo na performance como memória/ação em movimento constante.

Durante o percurso, contei com o apoio de outras mulheres, amigas, com as quais estabeleci vínculos afetivos que se disponibilizaram a caminhar comigo nos rastros de um trabalho artístico. Com o passar das horas, entendia que nossas histórias são atravessadas por muitas outras histórias, cada uma carrega consigo, alegrias, dores, silenciamentos, apagamentos, experiências, desafios. Se esse corpo for um corpo negro como o meu, carrega ainda mais o peso dos silenciamentos e das impossibilidades.

A problemática apresentada no início sobre a utilização do sagrado toca e move o meu trabalho de atriz no processo de criação, se eu a respondi, talvez em parte porque estou em processo, mas acredito que tracei reflexões relevantes para outras questões que possam surgir e especialmente conquistei certa autonomia criativa e perspectiva de ensino. Desse modo, as experiências de vida foram evocadas e sustentadas na construção do meu fazer teatral/performático. Por meio disso, ressalto que o corpo é produtor de sentidos do passado, presente e futuro que podem ser ressignificados para rever ou transformar comportamentos excludentes. O corpo negro, de forma específica o corpo da mulher negra na sociedade brasileira foi atravessado por processos de invisibilidade e lutas de resistência. Isso reflete a importância de ouvir e observar para dar voz para outras mulheres, e também para evidenciar outras possibilidades com olhar transversal para as questões de gênero, sexualidade e/ou classe, como marcadores sociais da diferença sob a perspectiva da representatividade, valorizando os saberes e experiências que advém desse diálogo.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Jéssica Mascarenhas. O Ebó-rapsódia em busca de Judith: a experiência artística enquanto agenciadora coletiva e ancestral. In: SEMINÁRIO PRÁTICAS DECOLONIAIS NAS ARTES DA CENA, II. 2022, Salvador. Anais [...] Salvador: UFBA, 2022. Disponível em: <https://www.even3.com.br/anais/pdac2022/471787-o-ebo-rapsodia-em-busca-de-judith---a-experiencia-artistica-enquanto-agenciadora-coletiva-e-ancestral/> Acesso em: 01 nov. 2023.

BARBOSA, Jéssica. Em busca de Judith. 1 video (1h), Youtube, 23 de mar. de 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=z_k0TBvg6jE> Acesso em: 01 nov. 2023

BARBOSA, Jéssica. Making of de Em busca de Judith. 1 video (8:21min.). Youtube, 15 de março de 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Ifao-knwK1k > Acesso em: 01 nov. 2023.

BARBOSA, Jéssica. Em busca de Judith - debate com Luiza Ferreira (Psicóloga e doula). 1 video (1h:06min), Youtube, Transmitido ao vivo em 23 de mar. de 2021 23 de março de 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=IPeg11QCpRk > Acesso em: 01 nov. 2023.

BRAGA, Ana S. Unsunzoto: quem sou eu, quem somos nós? In: FRANZONI, Tereza Mara et al. (Orgs). Anais do IX Seminário de Pesquisa em Artes Cênicas: produção de conhecimento e relações de poder: e a arte com isso? Florianópolis, 23 a 26 de abril 2019. Florianópolis: UDESC, 2020. p.147-160.Disponível em: <https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/00007c/00007cb8.pdf> Acesso em: 02 dez. 2023.

BRAGA, Ana S. Unsunzotas: As mulheres com quem ando não me deixam só. IAÇÁ: Artes da Cena, v. III, n. 2, p.17- 30, 2020. Disponível em: <https://periodicos.unifap.br/index.php/iaca/article/view/5773 > Acesso em: 01 dez. 2023.

JÉSSICA Barbosa: atriz e realizadora baiana, formada pela Escola Técnica Martins Penna e licenciada em dança pela Faculdade Angel Vianna. Disponível em: <https://www.jessicabarbosa.com.br/> Acesso em: 02 nov. 2023.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudos das performances brasileiros. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2011.

SCHECHNER, Richard. O que é performance? O Percevejo– Revista de Teatro, crítica e estética, Rio de Janeiro: Unirio, ano 11, n. 12, p. 25-50, 2003.

TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.

Aline Andessa e Ana Socorro Ramos Braga
Enviado por Aline Andessa em 04/09/2024
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