Continuando a conversa sobre conceitos de Paulo Freire

*POR Rudá Ricci

 

Como o artigo que escrevi sobre os conceitos de Paulo Freire parece que foi útil, continuarei a conversa neste segundo texto.

Neste artigo, vou explorar o conceito de educação bancária e suas derivações. A educação bancária se baseia na convicção que o educando é um copo vazio, incapaz de superar o senso comum marcado por crenças e crendices. Para superar tal condição, necessitaria da oxigenação vinda do conhecimento de fora. Um conhecimento, entendido pelos defensores desta educação tradicional, como  civilizador, que o prepara para um salto para o mundo produtivo, de progresso pessoal e coletivo. Algo como a civilização tirando o selvagem de sua inércia.

O termo bancário, nesta lógica, se refere ao processo cumulativo, em que o educando passivo vai apreendendo o que seu instrutor lhe oferece. O educando, então, é visto como subordinado. Émile Durkheim, um dos pais da sociologia e professor de pedagogia, sugeria a “submissão consentida” do aluno para aprender a se socializar, subordinação que seria conquistada pela didática do professor.

No livro “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire descreve a educação bancária que narra a realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado. A palavra do professor, sustenta Freire, “se esvazia da dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca”, o que impediria a crítica ou posicionamento questionador do aluno.

Assim, o aluno se torna colecionador e arquivista do conhecimento memorizado.

Toda esta orientação pedagógica transforma a escola e a sala de aula em intocados pela realidade concreta. O mundo não se torna algo meu ou consciente na minha existência.

Diz Paulo Freire: “a mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que e cercam estão simplesmente presentes à minha consciência, e não dentro dela. Tenho consciência deles mas não os tenho dentro de mim.” E, conclui acidamente: “o educador necrófilo ama o controle e o ato de controlar e, assim, mata a vida”.

Se refletirmos um pouco mais, talvez aqui esteja a chave para o brasileiro idolatrar tanto celebridades e salvadores do mundo, justamente porque não nos vemos capazes de transformar o mundo por nós mesmos. E não nos sentimos capazes porque não nos vemos como parte ou criadores do mundo em que vivemos.

Pois bem, a educação bancária ingressou no Brasil pelas mãos da igreja católica e pela pedagogia taylorista dos EUA.

No caso da educação católica, ela se impõe no Brasil a partir do Concílio de Trento, aquele que reafirmava o papel da pregação dos padres a partir do ataque do protestantismo. Ao contrário do que o protestantismo sugeria na sua origem, o Concílio de Trento sustentou que a palavra de Deus vem a público pelos que são tocados por Ele (daí vem a palavra “carisma”) para desempenhar esta função. O padre, no púlpito, não seria mais um mero humano, mas um ser “escolhido por Deus”. Assim, pouco adiantaria qualquer humano se fechar num cômodo para ler a Bíblia porque seria insuficiente.

Esta sugestão se transferiu para a educação católica que veio para o Brasil de navio. O padre-professor se apresentou como instrumento de Deus. Assim, os alunos – em especial, os indígenas – pouco tinham a dizer, justamente porque sua alma estaria perdida, vagando pelas matas. Deus ingressaria nas suas vidas pela fala dos padres.

Já a concepção pedagógica taylorista chegou ao Brasil com muita força depois da 2ª Guerra Mundial, já no âmbito da guerra fria. Vários programas dos EUA foram criados para trazer aos educadores brasileiros esta teoria que nasceu na última década do século XIX, concebida por Joseph Mayer Rice.

Em 1910, um estudo publicado por Morris Cooke, apresenta um encadeamento de disciplinas e aulas de curta duração para formar mão-de-obra para as indústrias. No ano seguinte (1911), o ministro da cultura da Prússia (atual Alemanha), estabelece que as aulas nas instituições de ensino superior deveriam ter duração de 45 minutos. Em 1914, outro estudo (The Training of Teachers in England, Scotland and Germany), publicado por Charles Judd, segue o mesmo caminho, sugerindo aulas de 50 minutos. Todos apresentavam uma mera conta de chegada: quantas horas de aula pelo número de matérias que achavam necessárias.

O sistema taylorista está focado no desenvolvimento da indústria. Assim, os conteúdos mais valorizados são justamente os que têm relação direta com a produção industrial: matemática, química, física e biologia. Mas, também, com o aprendizado da disciplina industrial, o que leva a aprender a se comportar na sala de aula, repetir movimentos à exaustão e aprender a ler, já que precisa saber como operar com as máquinas modernas.

Era contra este tipo de educação que Paulo Freire se insurgiu.

Mas, por outro lado, questionava o que denominava do extremo oposto: a permissividade e populismo do educador. A libertinagem seria uma das posturas demagógicas que procura seduzir os alunos, ao invés de provocá-los a refletir sobre si e o mundo. Outra crítica que fazia era endereçada ao discurso falacioso de que educador e educando são iguais. Ao contrário, o educador, sustentava, não pode se furtar do seu papel pedagógico, como a escolha do plano de aula. Neste sentido, a educação freireana se contrapõe ao espontaneísmo sugerido por Rousseau.

A sugestão freireana é a da construção do espaço de confiança na sala de aula e do consequente papel do silêncio no processo educacional. Principalmente, como ato de autocontrole do educador.

Trata-se de um aspecto da inteligência do educador e de sua construção como mediador da construção do conhecimento.

O diálogo se faz num espaço de confiança. Espaço que não se faz pronto, mas que vai se construindo na relação entre educador e educando, estabelecendo espaços e regras de convivência em que a função de cada parte vai ficando nítida.

Em um espaço libertino, o diálogo se transforma em disputa pela verdade pessoal mais correta, pela autoafirmação e afirmação dos egos. Se absolutamente regrado, opressivo e limitado, inibe a apresentação de dúvidas, devaneios e crenças.

Neste sentido, Freire sugere que em determinados momentos o educador não pode fazer intervenções, sob pena de macular o espaço de diálogo. Aguarda o momento correto até que, percebendo que a confiança está estabelecida, retoma um tema não resolvido ou que merece uma reflexão mais cuidadosa ou até polêmica. O nome que deu a esta espera para apresentar suas ideias e posições foi “silêncio tático”.

O silêncio tático é, na verdade, um exercício de empatia em que o educador procura compreender a postura e processo de amadurecimento da sala de aula. Ele acompanha e estimula a construção de um espaço de confiança e diálogo onde as opiniões diferentes são respeitadas, mas debatidas. A sala passa a ser um espaço em que a unidade se esboça sem corromper as diversidades e diferenças.

Fico por aqui. Espero estar contribuindo para se entender a complexidade do pensamento freireano e as orientações que levam às práticas educativas.

 

 

*Ruda Ricci é Sociólogo, trabalha com educação e Gestão Participativa. Preside o Instituto Cultiva em BH.