Futurismo inconsequente

A notícia surpreendeu pelo ineditismo e ousadia. E também pela temeridade. O governo do estado de São Paulo decidiu adotar materiais didáticos exclusivamente digitais, dispensando o uso de livros didáticos impressos para mais de três milhões de estudantes, distribuídos pelo Ministério da Educação através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O governo paulista afirma que as escolas estão preparadas para a implantação do material digital garantindo internet e impressoras, entre outros equipamentos, em boas condições de uso para 2024.

Nos moldes anunciados, essa intentada aventura rocambolesca dificilmente terá êxito. Aqueles que conhecem a realidade diária das salas de aulas de nosso país demonstram preocupação ante ao temerário “avanço” tecnológico digital. A educação escolar brasileira está muito aquém do considerado normal em conhecimento, fato confirmado por diferentes pesquisas realizadas acerca do assunto. É sabido que muitas crianças frequentam as escolas em busca de alimentação e até mesmo de abrigo por conta da insegurança das ruas e a grande maioria não possui aparelhos para conexão digital, muito menos acesso à internet, além do desconhecimento no manuseio adequado dos aplicativos necessários.

Existem estudos neurocientíficos que apontam uma série de possíveis atitudes anômalas que devem ser observadas em relação ao desenvolvimento cognitivo (intelectual) da criança que permanece por mais de três a quatro horas diante de uma tela. Os mais comuns são atraso e distúrbios de aprendizagem, limitação da interação social e física com o meio ambiente, aceleração da impulsividade, diminuição da capacidade de controle das emoções, aumento do transtorno de déficit de atenção, ocorrência de problemas visuais e perdas significativas de vínculos afetivos familiares. È necessário, portanto, vigilância contínua no caso do ensino através da tecnologia digital, evitando exageros diante das telas pelo acúmulo do tempo de estudo do período escolar e das atividades a serem realizadas em casa.

Outro agravante a ser considerado é a existência de docentes do tipo “imigrantes digitais”, que tendem a se fragilizar diante das dificuldades inerentes a esse desafiador formato pedagógico. As repetições, explicações semânticas, sintáticas e/ou gramaticais, incluindo formas distintas de aprendizado como visual, auditivo e cinestésico necessárias para que o conteúdo apresentado seja perfeitamente assimilado, dificilmente terão desempenho semelhante no formato ora proposto, fator potencializado por conta da natural tendência à dispersão do conteúdo didático, uma vez que o aparelho celular é utilizado para uma infinidade de outras atividades corriqueiras.

Para que a iniciativa governamental tenha o resultado esperado, seria interessante encontrar alternativas para o uso da tecnologia digital. Como por exemplo, a utilização em um primeiro momento da forma híbrida, com a implantação gradativa da tecnologia simultaneamente ao material didático impresso, a prévia preparação dos educadores para a nova função e tempo suficiente para que os alunos se habituem ao novo sistema, entre outras medidas relevantes visando o melhor aproveitamento dos discentes. Mas no País onde se governa por canetadas e interesses próprios, esperar algo de realmente proveitoso para a população, seria mesmo uma grande ingenuidade.