NEOPEDAGOGIA

NEOPEDAGOGIA

A lógica da competitividade aumenta numa sociedade na qual a exigência pela performance dos indivíduos tem acarretado sérios problemas, a exemplo do Transtorno de burnout, cujas consequências são o esgotamento físico e mental. Segundo Byung-Chul Han, na sua obra Sociedade do cansaço, esse transtorno “é a consequência patológica de uma autoexploração”.

Afinal, é preciso começar a trabalhar cedo, considerando a reforma da previdência, que nos obriga a nos mantermos saudáveis, visto que temos de trabalhar até a terceira idade avançada. Com isso, há uma crescente procura por cursos profissionalizantes, nos quais o estudante se capacita para exercer um ofício de má remuneração, contribuindo para a manutenção da desigualdade social.

Não obstante a essa realidade, a escola tradicional esteve durante muito tempo vinculada ao trabalho. Até meados dos anos 70, no século XX, eram ofertados trabalhos manuais, tais como: costura, para mulheres, e consertos de sapatos, para os homens. Essas práticas são aplicadas para a manutenção do Estado e contribuem, em tese, para evitar um estado de exceção. Assim, observamos que a governamentalização é um instrumento de controle, a fim de equilibrar o poder exercido pelo Estado. Nesse passo, Foucault em Microfísica do poder afirma que as estratégias governamentais possibilitam constantemente controlar aquilo que compete ou não ao Estado, os limites existentes entre o público e o privado.

O autor ainda aponta para o fato de que a governamentalidade pode assumir diversas formas, podendo ser uma maneira de pensar política, econômica ou socialmente determinado contexto, até mesmo uma forma de instrumentalizar mecanismos de segurança, como exercício de governar os outros ou a si mesmo.

A BNCC (Base Nacional Comum Curricular) funciona como um documento cuja governamentalidade é exercida a partir dos itinerários formativos que constituem uma manobra estatal para o sistema abdicar da elaboração de um percurso escolar e, consequentemente, profissional, para deixar a cargo do indivíduo a construção de sua trajetória no mercado de trabalho, o que se configura como uma prática neoliberal. A aparente liberdade concedida ao sujeito é uma forma de, posteriormente, culpabilizá-lo caso este não obtenha sucesso em seu ofício.

Christian Laval em A escola não é uma empresa atenta para o fato de que as palavras não são neutras, tampouco aleatórias. A substituição da palavra conhecimento por competência é uma forma de operacionalizar o discurso e estabelecer as relações de força entre os grupos sociais. Mais uma vez, podemos estabelecer uma conexão entre a performance do indivíduo diante das expectativas impostas para este na posição de trabalhador.

E uma forma de “esmigalhar seu percurso profissional” e pessoal é a proposta da escolarização doméstica, também conhecida como homeschooling. Embora o apoio a essa forma de ensino esteja presente desde 1994, através de alguns projetos de lei, passou a ser tão veementemente defendida sua aprovação pelo então governo Bolsonaro, por meio de projetos de lei em trâmite na Câmara de Deputados.

O homescholing difundiu-se, principalmente, a partir do ano de 2010, com a criação da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), em Belo Horizonte. Convém destacar que o ensino domiciliar se utiliza de uma retórica bastante comum na lógica do neoliberalismo: a liberdade e a responsabilidade do sujeito.

A escolarização doméstica utiliza-se de uma retórica que destaca a liberdade dos pais de educar seus filhos, sendo a educação um direito conquistado universalmente. O verniz que reveste o discurso em favor da proposta, na verdade, esconde uma apologia à exclusão, uma espécie de misantropia em que um indivíduo ou a família deste se/o isola para não compartilhar de um espaço comum, onde etnias, sexualidades, visões de mundo e com todo um corpo social diverso se encontram.

Assim, considerando que a escola é o primeiro lugar onde de fato um indivíduo terá contato com outras referências familiares, culturas, enfim outras subjetividades, também se pode afirmar que é esta a instituição que cumprirá o papel de domesticar os corpos, ou, como diz Foucault: torná-los dóceis, por meio da vigilância e da punição.

Percebemos que o discurso neoliberal se vale da pauta da liberdade e da responsabilização dos sujeitos, passando a família a ser quase que integralmente responsável pela educação formal de seus filhos, haja vista que cabe ainda ao Estado fiscalizar se está sendo de fato assegurado ao discente a continuidade de seus estudos em ambiente residencial.

Notamos que há uma dívida dos pais para com a sociedade, visto que, caso opte pela escolarização em casa, deverá apresentar ao Governo e, evidentemente, a toda comunidade, o resultado de sua orientação pedagógica, feita exclusivamente sob sua tutela. Portanto, não haverá maneira de atribuir à escola quaisquer “corrupções” no caráter pedagógico ou ideológico do estudante.

Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.

(Texto publicado em A União em 19/5/23)