Analfabetismo Pedagógico, Cultura Bacharelesca e Domínio de Conteúdo

"O antropólogo é o astrônomo das ciências sociais: ele está encarregado de descobrir um sentido para as configurações muito diferentes, por sua ordem de grandeza e seu afastamento, das que estão imediatamente próximas do observador"

Levi-Strauss

Faz parte do senso comum escolar a ideia de que o professor que domina a matéria que leciona conseguirá por consequência a cooperação e a aprendizagem desejada dos estudantes, que essa "segurança" garantiria de tal forma a aprendizagem que aquele que não aprendesse, mesmo com um professor tão "preparado", deveria ser responsabilizado por sua indisciplina, falta de vontade ou mesmo pouca inteligência.

A prática do Domínio do Conteúdo estrutura toda o processo comum na educação escolar: o professor garante o conhecimento do que ensina, a segurança sobre a importância do que ensina e a consciência do que esta ensinando, e o aluno corresponderia com respeito, seriedade, compromisso e aprendizagem. A não aprendizagem, garantido o Domínio do Conteúdo, seria de responsabilidade do estudante, família, sociedade, etc. O que fazer com esse estudante, que mesmo garantida todas essas coisas, ainda assim não apresenta os resultados desejados seja como comportamento ou nota?

Entendo como o Domínio do Conteúdo, a situação em que o professor tem consciência do modo de pensar, proceder e refletir em relação a sua importância social ( momento em que ele legitima o conhecimento que ensina e agrega ao mesmo valor social, moral e cultural), mas ao fazer isso ele precisa ser claro tanto quanto ao modo do pensar, proceder e refletir que ele deseja levar aos estudantes, quanto da importância que o mesmo possui para ser e dever ser ensinado e aprendido. É o modo mais conhecido de relação ensino aprendizagem, observado mesmo em lugares fora do contexto escolar como nas famílias, comunidades e relações com lideranças.

O senso comum, como conhecimento, valores e saberes adquirido de forma não sistemática e organizada, geralmente voltado para problemas práticos e do cotidiano e da sobrevivência imediata. O senso comum, se chamarmos assim os saberes, valores e conhecimentos, que correspondem ao que as pessoas em geral aprendem para lidar com os problemas e questões imediatas que seu mundo lhe apresenta, se encontra em qualquer indivíduo no pós doutor em alguma coisa àquele que não pode se escolarizar. Afinal, a maioria das coisas em que acreditamos e praticamos não surgiram de uma universidade ou centro de pesquisa, mas da experiência direta com o cotidiano e herdada pela educação recebida pelos pais, parentes e comunidade em que fazemos parte.

O senso comum não é o problema e muito menos o Domínio do Conteúdo. A questão é a escolha do projeto profissional como educador que nos é possível dentro de uma sociedade, o que implica em analisarmos os aspectos culturais, políticos, econômicos e ideológicos para entendermos que a escolha como profissional não seja tanto uma escolha como gostaríamos de acreditar. Vamos detalhar isso:

Vivemos em uma economia que se fundamenta na exportação de produtos primários, com pouco valor tecnológico agregado. A prestação de serviços, cuja a lucratividade possui relação direta com a tecnologias e conhecimentos aplicados, é de origem estrangeira ou pouco qualificada quando comparada a de outros países. Enfim, não há interesse em tomar a educação pública como estratégica para o nosso desenvolvimento. A educação privada, que também não mostra grande avanço comparado com a educação pública de outros países, reflete os anseios de reprodução da classe média muito mais do que as necessidades de desenvolvimento econômico e social do país. Só aí temos de forma muito resumida, para fins de objetividade desse artigo, o cenário econômico e político relacionado a educação.

O Domínio de Conteúdo esta ligado também a cultura bacharelesca, onde o conhecimento é esvaziado de sua finalidade original e contexto para representar o portador como uma autoridade, cujas palavras ganham um dever de serem ouvidas e respeitadas graças ao lugar, dignidade e direito de quem fala. Países que prezam pouco pela tecnologia e conhecimentos aplicados tornam o conhecimento, principalmente acadêmico, em algo bacharelesco na "ausência" de algo melhor para fazer com o que se aprende.

Machado de Assis ilustra muito bem a cultura bacharelesca em seu livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde esse personagem relata para que serviu sua aprendizagem, na faculdade de Direito cursada em Portugal: algumas frases em latim para as ocasiões certas e um bom emprego na repartição pública. Algo que sempre me perguntei é por que médicos, advogados e qualquer liderança política ( ainda consta) foram tradicionalmente chamados de doutores, no caso do advogado até "legitimado" por meio de decreto imperial, e não os engenheiros e professores.

A cultura bacharelesca é mais claro e seguro sinal de que as palavras tentam suprir as lacunas deixada pela falta de ação ou mesmo de coerência entre o que se diz e o que se pratica. Por isso a fala complicada e fora do contexto pode esconder respectivamente a falta de conhecimento efetivo e a alienação política em que o expositor se encontra metido. A insegurança ao falar pode ter como origem tanto o despreparo quanto a consciência de que aquilo que se propõe não é para ir além da proposta, daquilo que se exige não pode ser cumprido e nem o que se diz pode ser levado completamente a sério. Então o que é dito, não serve para outra coisa senão dizer que pode ou não pode dizer algo.

Se houvesse interesse em desenvolver a educação pública como algo estratégico para o desenvolvimento do país, presenciaríamos a realização efetiva de um conjunto de ações articuladas, não isoladas, que teriam os seguintes objetivos:

a) Atualizar, profissionalizar e aperfeiçoar a formação das atividades relacionadas ao ensino reestruturando as licenciaturas e cursos de Pedagogia, de acordo com as práticas, teorias e conhecimentos relacionados a melhores resultados de aprendizagem. As condições e exigências para o exercício da docência, orientação pedagógica e gestão educacional deveriam ser mais rigorosa quanto ao saber e práticas pedagógicas que o formando deverá dominar.

b) Melhorar as condições salariais e de trabalho para atrair pessoas dispostas a investir tempo e dedicação para um desempenho de alto nível na docência. Combate a situações de assédio aos profissionais da educação é uma delas, situações de violência contra os mesmos não podem ser tratadas como um problema meramente da escola, mas das famílias e da sociedade por meio de conselhos tutelares, assistência social e o aparato judicial.

A violência contra os profissionais da educação não pode ser relativizada ou devolvida para que a escola resolva sozinha esses problemas. Aqueles que estudam a educação e defendem relativismo ou penalização do professor pela violência que recebe enquanto tal não deveriam ser levados a sério como pesquisadores ou propositores de algo, pois lhes faltam algo fundamental em qualquer pesquisa ou relacionamento profissional: ética e empatia.

c) Estruturação de uma base curricular a partir de efetivo envolvimento da sociedade nas demandas e problemáticas relacionadas a educação pública e privada. De forma que o comodismo com velhas práticas não venha a dar o tom e direcionamento dessa estruturação, mas sim um preocupação séria pautada em agenda política que parta dos problemas que enfrentamos e o que realmente desejamos como educação.

d) Estabelecer como prática escolar de um sistema de ensino e unidades um plano de trabalho geral e específico conforme dificuldades encontradas por meio de avaliações oficiais e consultas a comunidade. Cabe como obrigação administrativa, tal como metas fiscais e equilíbrio orçamentário o são, que os Municípios e Estados apresentem planos de trabalho a partir de problemas de aprendizagem, evasão, segurança e outros aspectos avaliados e identificados.

e) Criar um projeto de lei que responsabilize administrativa e penalmente Municípios e Estados, principalmente os agentes políticos, que não promovam e apresentem planos de trabalho e metas, de curto, médio e longo prazo, voltados para problemas específicos e gerais identificados nos seus respectivos sistemas de ensino. Algo como as leis de responsabilidade fiscal, com mecanismos de verificação, acompanhamento independentes, em formas de auditorias educacionais.

Todas essas medidas, se articuladas e fundamentadas, poderiam promover no nível micro do sistema escolar a evolução do senso comum educacional para formas mais pedagógicas, entendidas como mais científicas e acadêmicas, de práticas escolares. O Domínio de Conteúdo é fundamental como explicado, mas insuficiente para dar conta dos desafios que enfrentamos como uma sociedade cuja a riqueza produzida não justificaria indicadores tão baixos de desempenho escolar.

B) A Pedagogia do Domínio de Conteúdo

A Pedagogia do Domínio de Conteúdo é insuficiente para dar os resultados que o Brasil precisa, não por ser errada, longe disso, mas por seus pressupostos e consequências educacionais que promovem e ao mesmo tempo se fundamentam na exclusão e hierarquizações sociais do conhecimento.

Primeiro que qualquer coisa que se proponha a ensinar, de reflexões, pesquisas e debates a componentes mais fixos do currículo, demanda que o professor saiba o que esta fazendo. Ainda que ele planeje uma aula onde o objetivo seja o processo reflexivo, não conclusões "devem" obrigatoriamente assimilar, o docente precisa ter ciência do método, da importância e das dificuldades que os estudantes possam apresentar no processo. Em outras palavras, precisa ter consciência pedagógica do que esta fazendo.

Se chamarmos de Domínio de Conteúdo, se referindo a esse último como os aspectos fixos e pontuais do currículo, é necessário dizer que o domínio não se restringe a esse aspecto do currículo.

Pensar que aquilo que se ensina dever ser somente conteúdo, abstraindo aspectos cognitivos, valorativos e reflexivos envolvidos, já é um aspecto do senso comum inadmissível para qualquer um formado em licenciatura ou pedagogia. Acreditar que ao se ensinar matemática ou outra matéria tradicional, aspectos cognitivos, valorativos, ideológicos e éticos não estarão envolvidos, já mostra o analfabetismo pedagógico, no sentido daquilo que se restringe ao senso comum e ignora o conhecimento acadêmico educacional.

Pensar que o ensino reflexivo, voltado para processos, estímulos e promoção de argumentação, autoconhecimento, empatia e convívio não é papel da escola e nem do professor, mostra o mesmo senso comum. Não no sentido que escola deve estar voltada somente para esses aspectos, mas de acreditar que esses aspectos não envolvem até mesmo o ensino que se proponha mais conteudista e tradicional possível.

Pensar que o problema da educação brasileira é que ela esta perdendo seu caráter tradicional e conteudista é ignorar aspectos macropolíticos e econômicos, voltando novamente a uma visão do senso comum e do analfabetismo pedagógico. O senso comum aqui fica claro principalmente pelo imediatismo da ideia, do ignorar o contexto e da generalização apressada.

É como acreditar que hospitais matam pessoas por que muitos morrem depois que recebem atendimento médico... Uma escola que busque uma organização mais "progressista", mas cujo os profissionais não possuem formação ou mesmo desejo de tal pedagogia não apresentaria necessariamente melhores resultados do que o de uma escola onde os professores abraçam a visão tradicionalista. Talvez até piores, mas com certeza propostas progressistas quando vindas de forma arbitrária acabam sendo sabotadas pelos profissionais, existem muitos exemplos de projetos pomposos, balas de prata educacionais, que fracassaram devido a isso.

Por outro lado, a educação tradicional e conteudista, no Brasil foi durante maior parte de suas existência voltada para as classes altas, que já dispunham de meios culturais e econômicos que tornavam a escola quase um complemento dos hábitos, valores e habilidades já valorizadas pela família e a classe pertencente. Os professores eram praticamente da mesma classe de seus alunos e compartilhavam com os mesmos a história de vida e ethos. Essa escola deixou por muito tempo a classe trabalhadora de fora, assim como as pessoas deficientes e aqueles que cuja a história de vida e cultura eram pela escola ignoradas como conhecimentos e hábitos legítimos.

A expansão desse modelo para as classes mais pobres não implicou em uma mudança significativa e estrutural dessa concepção, produzido os resultados que vemos hoje. A população foi colocada na escola, mas esta continuou operando como se o direito a aprendizagem não fosse um direito e sim um privilégio para certas pessoas. A lógica da reprovação leva a evasão escolar, o fracasso em aplicar velhas fórmulas levou o professor ao ressentimento e culpabilização que por sua vez degradou, juntamente com a desvalorização financeira da categoria, a profissão de professor.

C) O que fazer

De imediato é preciso aceitar que estamos longe do senso comum educacional e que o analfabetismo pedagógico, seja ele orgulhoso, envergonhado ou inconsciente, é um problema cuja a raiz não se encontra em algo mais complexo que o senso comum nos permita, ainda que com muita boa vontade, compreender. Espero ter pontuado os aspectos que possam tornar essa complexidade, não simplificada e assim empobrecida, mas um pouco mais inteligível.

Por Wendel A. Damasceno

Professor de Sociologia no Ensino Médio.

Graduado em Ciências Sociais

Especialista em Ensino de Sociologia.

Mestre em Sociologia da Educação, com ênfase em desigualdades educacionais

Graduando em Psicologia.

Wendel Alves Damasceno
Enviado por Wendel Alves Damasceno em 06/01/2023
Código do texto: T7688433
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