O que é o Analfabetismo Pedagógico
Para introduzir o assunto, começarei com o exemplo de outra área. Digamos que em uma área como engenharia civil qualquer pessoa pudesse escrever livros, artigos e outras publicações com orientações, técnicas e normas daquilo que entende ser uma construção eficiente em termos de uso de energia e emprego de materiais, e principalmente segurança.
Graduados em Economia, Psicologia, Serviço Social, Engenharia Computacional, Direito, etc. poderiam dar tutorias, palestras, consultoria e aulas sobre construção. Por que a construção de casas, prédios e pontes deveriam ser monopólio de engenheiros? Afinal, antes que existisse graduação em Engenharia Civil, casas, cabanas e outras construções já eram feitas por homens simples, muito sem noção de cálculos avançados ou mesmo alfabetização básica.
Fora o direito das pessoas a liberdade de expressão, por que só algumas pessoas podem falar sobre um tema tão importante ou mesmo construírem a sua maneira, respeitando seus gostos, preferências, valores e técnicas passadas de pai para filho.
Poderíamos usar essa argumentação trocando Engenharia Civil por diversas áreas, causando muito estranhamentos até mesmo daqueles que só podem contar com um bom senso mais experimentado. A coisa muda quando colocamos Pedagogia no lugar antes ocupado por essas profissões.
Pra não tumultuar a discussão, vamos distinguir educação de Pedagogia. Educador qualquer pessoa pode e é em algum momento da vida. Dos pais é esperado esse papel, inclusive como uma imposição da lei como vemos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse caso, não é exigido graduação ou mesmo ser alfabetizado, o filho será educado independente disso, as vezes até melhor do que aqueles de pais com nível superior. Então não falamos do papel de educar, que muitas vezes exercemos direta e indiretamente, consciente disso ou não.
Falamos de Pedagogia como um ciência interdisciplinar que tem como o objetivo o estudo dos processos de ensino e aprendizagem, as formas diversas como as sociedades se organizam para proporcionar as novas gerações os saberes, técnicas e valores que julgam necessários a sua sobrevivência e melhorias. Assim como estuda as técnicas, valores, instituições e implicações sociais, políticas e culturais em suas formas, expectativas e organização em uma sociedade.
Esse ramo da ciência auxilia a formação de professores não só da educação básica, trabalhando a pedagoga como professora, como professores de outras áreas mais especializadas. Sem dúvida, no ensino básico pelo menos, é preciso que o conhecimento do professor seja além de sua área específica, fundamentado em conhecimentos, conceitos e práticas pedagógicas. É nesse ponto que começamos então a discussão.
A escola possui matemáticos que não trabalham como matemáticos, historiadores que não trabalham como historiadores, sociólogos que não trabalham como sociólogos, químicos que não trabalham como químicos, etc. Resta a esses profissionais a identificação mais concreta do que a da formação específica que tiveram: professores.
Ser professor então é mais que ser químico, sociólogo, historiador, matemático, físico, etc. mesmo quando leciona em disciplinas voltadas para essas ciências e saberes. Um profissional da educação precisa antes de tudo saber ensinar fundamentado nas pesquisas, saberes e práticas científicas e acadêmicas. O profissional da educação graduado precisa empregar em sua prática a ciência pedagógica.
No entanto, por não dominarem esses saberes acadêmicos, muitas vezes desprezados como fantasiosos, idealistas ou mesmo de cunho puramente ideológico, o profissional da educação se fundamenta no senso comum. Experiências do passado como estudante, a forma de educação dada pelos pais, valores e principalmente o pragmatismo que a sobrevivência, exige diante de um sistema fracassado, embasam com muito mais segurança esse profissional do que o conhecimento acadêmico da educação.
Não deveria haver dúvida de que um professor que não domina ou tem interesse pelos desenvolvimentos da pedagogia em relação a metodologia de ensino, didática e aspectos filosóficos e sociológicos do ensinar e aprender, não é capacitado para ensinar em um contexto em que predominam abismos sociais e educacionais tão grandes como no Brasil. No entanto, a ignorância e até mesmo o desprezo por esses conhecimentos não lançam dúvidas sobre a capacidade e competência desse profissional para atuar como docente.
Um termo muito comum ao se avaliar um professor é se ele domina ou não o que ensina. O senso comum educacional, que é predominante infelizmente nas escolas públicas, entende que isso é o bastante para que se tenha um bom professor e que haja a aprendizagem adequada. É como se a formação específica do mesmo fosse o suficiente, ou seja, se ele teve uma formação em física, matemática, história, filosofia e sociologia logo ele ensinará bem e se ele não ensina bem é por que não teve uma boa formação em sua área. Esse senso comum deixa a discussão rasa e pouco efetiva sobre a qualidade de ensino e o que deva ser a competência do professor.
Era pra ser muito óbvio, não basta "dominar" um conhecimento para ensina-lo bem. Se fosse assim, os maiores cientistas do mundo seriam por consequência os melhores professores daquilo que pesquisam, o que não necessariamente observamos como regra. Não encontrei pesquisas que confirmem a relação necessária entre ter mestrado ou doutorado e melhor capacidade de ensinar na educação básica. Quem já conheceu professores altamente gabaritados em pesquisa sabe que não é regra que esses sejam por isso excelentes professores em termos de didática e mesmo do básico da relação ensino aprendizagem.
Práticas superadas e bastante questionadas continuam como parte do senso comum , práticas que compõe o saudosismo de muitos professores quanto a um tempo em que os estudantes eram "melhores". A ideia de que a reprovação seria um método de incentivo ao estudo e de correção de comportamento irresponsável de alunos ou mesmo de maior tempo para que o mesmo possa aprender adequadamente ainda é algo infelizmente óbvio em muitas escolas. Mesmo que a maior parte dos estudos educacionais questionem a eficácia da reprovação na melhoria do engajamento e comprometimento dos estudantes.
Há ainda uma ideia de que sem reprovação o esforço do estudante em sua aprendizagem perderia sentido, como se aprender só pudesse ocorrer mediante estímulo negativo: ideia combatida há décadas pelo famoso psicólogo behaviorista Skinner. Isso para não falar das limitações em reconhecer a aprendizagem por outros meios como projetos, atividades lúdicas ou mesmo em valorizar do desenvolvimento de habilidades sociais extremamente relevantes como de iniciativa, empatia, relações interpessoais, intrapessoal, protagonismo, etc. A aprendizagem que ocorre espontaneamente com atividades que não se limitem a exposição tradicional e seus exercício não é legitimada ou vista como séria, em outras palavras, não se ensina a aprender e nem valorizar as próprias experiências como relevantes em termos de aprendizagem.
Tudo isso não ocorreria se a formação do profissional da educação exigisse o domínio de conhecimentos pedagógicos de maneira séria e condicionada a sua autorização para a docência. Pelo contrário, é vista como acessória e complementar ao final do curso superior. O estudante de nível superior é mais exigido na sua formação específica, logo acredita ser ela mais importante do que a pedagógica, em que pensa que a primeira levará automaticamente ao conhecimento da segunda.
O profissional da educação deveria ter uma formação muito mais complexa e interdisciplinar do que tem hoje. Deveria ser muito mais exigido para ser um professor do que é hoje, principalmente de conhecimentos pedagógicos. No entanto, com a desvalorização da carreira, seja no âmbito financeiro ou social, torna o investimento de tempo e recursos em uma graduação séria de licenciatura algo pouco interessante. Quem faria uma licenciatura que exigisse tanto do conhecimento e habilidades pedagógicas quanto da formação específica? Não há essa licenciatura no Brasil.
As licenciaturas atuais no Brasil tem sofrido um revés muito grande. Praticamente desapareceram das faculdades particulares pelo menos as presenciais (em contrapartida ao crescimento da oferta em modalidade a distância), elas são as maiores fornecedoras de mão de obra de nível superior do Brasil. As Universidades públicas têm perdido em preferência pelos melhores candidatos e possui forte nível de desistência entre os que ingressam. Em outras palavras, nas atuais circunstâncias aumentar a exigência acadêmica na licenciatura seria proibitivo até mesmo diante do possível colapso de professores no ensino básico no futuro próximo, principalmente nas áreas de ciências da natureza e matemática.
O senso comum é constituído principalmente do empírico e do pragmático, não tem como objetivo refletir, produzir um conhecimento sistemático ou acumulativo. Ele tem como objetivo resolver problemas imediatos, de curto prazo e relacionado a valores que nem sempre condizem com a formação necessária para que o jovem seja produtivo e possa ser realizar futuramente como pessoa e profissional.
O senso comum fora da escola não é tão diferente quanto o que se encontra dela. O que muitos pais esperam é que a escola discipline os filhos, reprovem aqueles que julga não quererem nada, premie com boas notas os mais esforçados e puna aqueles que não atingem boas notas. Puna o que desrespeita a hierarquia e que o professor imponha aquilo que considera relevante e importante para o jovem aprender, mesmo que não corresponda ao que esse jovem vê como importante e relevante.
Isso nos leva para um outro conceito do senso comum escola que é da autoridade do professor. Essa viria basicamente da moral que o professor teria junto aos alunos ao mostrar que sabe, que conhece, que é inteligente e superior aos seus alunos. É a reprodução da hierarquia e do princípio da obediência: mostrar que tem de direito o poder de dizer como as coisas devem ser pensadas e concebidas, de forma que aquele que se opõe se veja automaticamente errado fora de contexto. O papel dessa autoridade é representar o conhecimento correto das coisas, não necessariamente o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos.
A autoridade que vem como reconhecimento daquele que possibilitou aprender, se desenvolver, reconhecer e amadurecer habilidades deveria ser a consequência daquele profissional comprometido com uma aprendizagem pedagogicamente embasada. Mas em seu lugar, vemos a reprodução do monopólio de uma visão, conhecimento e valores sem que outros processos educacionais sejam considerados tais como: o que levam ao desenvolvimento da capacidade de abstração matemática e espacial, reflexão sobre os próprios valores e maneiras de ser, sobre a história e o espaço como cultural e politicamente construídos e não algo em si e natural.
O analfabetismo pedagógico seria então a insuficiência ou ausência do conhecimento pedagógico, por isso acadêmico, sobre ensino e aprendizagem. O analfabetismo pedagógico funcional seria aquele suficiente para passar em concursos e preencher algum relatório, para vender um discurso e praticar outro quando necessário. O professor analfabeto pedagógico se fundamenta no pragmatismo, nas experiências e naquilo que absorveu fora da academia como prática óbvia e naturalizada do que é aprender e ensinar.
O analfabeto pedagógico não sabe refletir sobre sua prática a partir de conceitos e teorias pedagógicas, que muitas vezes despreza como idealismo ou mundo da fantasia. Ele segue, como alguém que se fundamenta em senso comum, sua intuição e convicções adquiridas com experiências familiares e particulares. Podemos pensar na gravidade disso, se imaginarmos um psicólogo, médico, fisioterapeuta, engenheiro, nutricionista, advogado ou outro profissional de nível superior tomando suas decisões como profissional baseado somente em suas experiências práticas e pessoais.
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A educação não pode ser pensada como algo desassociada da sociedade, afinal tantas coisas poderiam ser ensinadas, mas escolhemos algumas delas e alguns métodos, entre tantos outros possíveis. Por isso falar em pedagogia ou educação neutra é o mesmo que falar de instituições sociais sem considerar as sociedades em que elas se encontram ativas. É possível certa neutralidade ao se falar de rochas, eletricidade, composições químicas diversas ou massas de buracos negros, mas quando se trata de algo produzido por seres humanos, seus valores, ideologias, costumes e crenças sempre estarão presentes em qualquer coisa que façam.
Uma pedagogia neutra seria uma pedagogia inútil, pois não teria como referência seres humanos e nem corresponderiam a suas necessidades que também são de ordem valorativa e por isso moral. A base valorativa da pedagogia são os direitos humanos ou princípios que viriam mais tarde a compor a Declaração Universal dos Direitos Humanos: respeito a diversidade, a autonomia, a cultura, a individualidade e dignidade das pessoas independente de sua origem, cor, raça ou gênero. Valores contrários aos dos direitos humanos assediam os propósitos pedagógicos há muito tempo, quando acreditamos que a pouca aprendizagem é devida a pouca inteligência, esforço ou caráter estamos simplesmente definindo quem pode aprender e quem não pode.
É possível uma pedagogia nazista? É possível que a educação nazista fosse eficaz tanto em termos de incutir os valores racistas daquela sociedade quanto para dotar os alunos de habilidades linguísticas e matemáticas que entendiam como necessárias. Mas de forma alguma podemos dizer que o ser humano para o qual a educação estava sendo preparado para um mundo em que a diversidade, a autonomia e a individualidade seriam direitos de todos e que qualquer base para a desigualdade fundamentada em preconceitos, racismos, intolerância e discriminação seria falaciosa e contrária ao que entendemos por humanidade - um atributo universal que implica em direitos que ninguém pode de forma sensata, ética e racional violar. Faltaria a essa pedagogia uma base acadêmica e científica, mas não deixaria de ensinar o que aquela sociedade foi induzida a valorizar, cuja catástrofe é reconhecida por qualquer pessoa que estudou seriamente história.
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A atual Reforma do Ensino Médio gerou muita resistência junto aos professores e mesmo estudiosos da educação, apesar da forma unilateral como foi concebida e implementada ela é uma resposta interessante a questão de como podemos tornar o ensino médio útil e interessante para o estudante.
A forte resistência e até mesmo possível revogação no próximo governo Lula não corresponde a sua troca por um sistema mais interessante e inclusivo para o estudante. Corresponde sim uma reação fundamentada no comodismo diante de uma situação educacional grave, para qualquer um que pense a sociedade de forma inteligente, diante dos indicadores de qualidade de ensino e permanência, e principalmente na preservação de um modelo educacional fragmentado em disciplinas e centralizado no professor.
Não há uma proposta melhor ao Novo Ensino Médio do que a volta ao passado, como se nesse tudo fosse maravilhoso. E talvez para a maioria dos seus críticos tudo fosse maravilhoso mesmo ou pelo menos o melhor que poderia ser feito.
A ausência de uma política educacional séria influencia as agendas políticas dos governadores, prefeitos e mesmo daqueles que pensam cientificamente a educação. É a agenda política que mobiliza os debates, esforços, pesquisas e mudanças necessárias para termos um ensino de melhor qualidade. Por isso afirmo, apesar de parecer defender o contrário nesse artigo, que o problema não é o professor ou o estudante. É antes de tudo o desinteresse das forças políticas e dos movimentos sociais em trabalhar uma agenda educacional séria que paute a política educacional no país.
Não creio que o presidente atualmente eleito tenha uma política séria para a educação, pois temo que dará a pasta a pessoas pouco dispostas a enfrentar politicagens, certos setores empresariais, corporativos e sindicais, alianças e resistências para que haja uma mudança realmente significativa na educação básica. Quando vemos que a maior proposta para a educação anunciada seja uma poupança jovem, e ainda assim, anunciada por uma aliada do MDB, sabemos qual será o tom. Espero estar enganado.
Por Wendel A. Damasceno
Professor de Sociologia no Ensino Médio.
Graduado em Ciências Sociais
Especialista em Ensino de Sociologia.
Mestre em Sociologia da Educação, com ênfase em desigualdades educacionais
Graduando em Psicologia.