Voltando ao Princípio - O Ginásio Presidente Dutra
Quando me perguntam qual o colégio que me deixou mais saudades, eu respondo sem o menor receio de errar. Não foi a Universidade Federal de Pernambuco, onde me graduei, e muito menos os Liceus, piauiense ou maranhense, onde cursei o segundo grau. Diria sim, e em cima da bucha, que foi o Ginásio Presidente Dutra. E seria muito fácil também justificar: lá vivi momentos de verdadeira felicidade que me deixaram saudades.
Tudo começou com o “vestibularzinho” que tive que enfrentar para transpor a barreira do Primário, como era chamado o hoje Ensino Fundamental. Minha aprovação no gargalo denominado “Exame de Admissão ao Ginásio” me causou mais alegria do que propriamente a aprovação no vestibular, podem estar certos disto. E essa vaidade sofria acréscimo ao extremo quando subia a Rua Grande em companhia do meu pai, vestido com aquela vistosa farda: calça comprida, azul marinho, camisa branca de mangas longas e gravata também azul. Como cursávamos o Ginásio juntos, ele um ano à minha frente, poderíamos dizer que ali ia um verdadeiro par-de-jarros. Ou mais precisamente, um jarrão e um jarrinho, dado a diferença de tamanho entre nós. E não fosse pela dificuldade de chegar até o colégio, uma vez que meu velho parava a cada dez metros para cumprimentar algum amigo - de um lado e doutro da rua - só tinha motivos de alegria quando subíamos a rua juntos em direção ao velho prédio da União Artística e Operária. Era lá que funcionava o Ginásio.
Naquele tempo estava em marcha uma verdadeira revolução nos costumes, com os jovens trocando suas roupas sisudas por outras mais alegres, coloridas, e até deixavam crescer os cabelos. Foi também a época do surgimento da bermuda e do biquíni feminino, momento em que as mulheres começaram a deixar seus corpos cada vez mais à vista. A coincidência de tempos pesava favoravelmente para o meu velho Ginásio. A combinação de época de festas, com juventude a mil, contrastaria com os períodos subsequentes onde a responsabilidade já começava a pesar nos nossos ombros.
E ainda havia a turma. Garotões, a maioria com a minha idade, conhecidos de longas datas, planejando o futuro como se a felicidade estivesse ali depois da esquina e não dentro de nós, como ocorria de fato. Muitos de nós chegamos cedo a esta conclusão porque trombamos pelo caminho com a dificuldade de sair para estudar fora, sempre em razão dos problemas financeiros vividos pelos nossos pais. Outros, menos felizes, se viram barrados pelo fantasmagórico vestibular mais adiante, e tiveram também que retornar para abraçar uma profissão mais cedo. Todavia, alguns tiveram pior sorte ainda. Tiveram a vida ceifada precocemente, como três ou quatro dos nossos colegas de quem me recordo agora quando digito esta crônica. Alguns, como o amigo Jean Carvalho, companheiro de sala de aula desde os primeiros anos do Grupo Escolar, ainda teve tempo para formar-se em medicina, e chegou até a se eleger deputado estadual. Mas, partiu para o além quando seus filhos ainda estavam muito pequenos. O bom e alegre Zé Hugo, piadista inigualável, também faleceu na flor da idade. Com este nos reuníamos aos sábados em sua casa em São Luís, na Vila Ivá Saldanha, para rememorar e bebemorar os velhos tempos. Bastinho, ciclista ousado que partiu para o além em razão exatamente da grande afinidade que tinha com a velocidade, e o bonachão Nonato Curado, barbaramente assassinado por indivíduos que preferiam sair pela vida semeando infelicidade e causando dores profundas nos seus semelhantes, ao contrário de Nonato que preferia a paz e a amizade.
Mas, volto aos momentos felizes do início desta crônica, para contar um fato acontecido em sala de aula, quando cursávamos a segunda série, se a memória não me trai. Presidente Dutra é uma cidade rodeada por outras muito próximas, e muitos colegas de turma eram originários exatamente desses municípios satélite. Como o brincalhão Chico Figueiredo, descendente da melhor estirpe dos habitantes do Tuntum. Figueiredo residia em casa vizinha a minha, parede e meia, como costumamos chamar. Esperto e aventureiro, participou de algumas trapalhadas comigo. É claro que a maioria dessas brincadeiras não pode jamais constar de algum escrito, sob pena de censura imediata.
Mas, como ia dizendo, o esperto Chico Figueiredo logo se aproximou de mim quando me viu um leitor compulsivo de revistas de quadrinhos, coisa que ele apreciava bastante também. E nesse ramo, quem já foi leitor, ou ainda continua sendo, como eu, sabe que para valorizar bastante os nossos parcos dinheirinhos, utilizávamos o método de troca-troca e, assim, sempre tínhamos alguma coisa nova para ler.
Chico também estudava na mesma turma que eu. Certa noite, estávamos em sala de aula para uma prova de história, ministrada pelo grande e ilustrado professor Hubert Lima de Macedo. Ótimo professor, Hubert também era muito exigente e sempre aplicava provas com inteligência e sagacidade, a fim de permitir ao aluno discorrer sobre os assuntos estudados. Mas também primava pela lisura do teste e não permitia a tradicional pesca ou cola. Mas, quando se trata de estudantes de qualquer época ou país, esta é uma tarefa impossível de realizar, por mais competente que o mestre seja.
Nessa prova havia uma questão sobre o último ponto dado em sala de aula, que parece não ter sido muito considerado pela maioria da turma. Era uma indagação de quem havia construído a primeira estrada de ferro no Brasil e, de onde para onde. Pouquíssimos sabiam quem havia sido o ilustre construtor.
E mesmo com todo o rigor, na turma a pergunta corria célere. E a resposta que voltava era invariavelmente a mesma: não sei. “Não sei, não sei”, “estou deixando esta em branco”, “sei lá quem foi o maluco!”, era a resposta para quem indagava. Conformados, os primeiros alunos foram entregando a prova e saindo da classe. Chico Figueiredo, que além de um aluno regular, era um gaiato contumaz, após sair da sala se aproximou do janelão de madeira que permanecia entreaberto, e cochichou para Nonato Curado que estava mais próximo: “O nome do cara da estrada é Chipp Larson”. “Como?” - Nonato chegou o ouvido mais próximo da janela. “Chipp Larson, “C, h, i pp, Larson, respondeu o brincalhão. “Que diabos de nome é esse, rapaz”, resistiu Nonato. “O inglês maluco que construiu a primeira estrada de ferro no Brasil, rapaz!”.
E ai, como um rastilho de pólvora, o nome do cara flutuou pela sala. A grafia é que variava um pouco: Chip Larson, o primeiro. Dip Larso, depois. Lip Larso, Chite Laso, até que os últimos já colocavam nomes que nem de longe pareciam com o primeiro nome da cola.
Bom, antes que me esqueça, sei que todos sabem quem foi o grande empreendedor, mas somente para recordar a quem está momentaneamente com problemas de memória, quem construiu a primeira estrada de ferro no Brasil foi o Visconde de Mauá, ou Irineu Evangelista de Sousa. E Chipp Larson era o nome do chefe de um bando de salteadores que constava da última revista de Western que o gozador Chico Figueiredo havia lido na tarde anterior. Poucas horas antes da prova, portanto.
Agora, o resultado da brincadeira não foi nada engraçado. O professor Hubert, mais decepcionado com seu sistema de segurança contra pesca do que propriamente com a resposta dada, inquiriu a turma para saber quem havia inventado aquele nome estranho. Ameaçou até punir a turma toda, mas não obteve a resposta que queria. Pois, o único aluno que sabia quem havia passado aquele nome esdrúxulo, era o Nonato, e esse, nem sob tortura, revelaria o nome do brincalhão que havia inventado a asnice.
Espero que vocês compreendam agora o porquê de considerar o velho ginásio como o melhor colégio pelo qual passei. Era um tempo de brincadeiras inconsequentes, mas que não provocavam maiores danos a quem quer que seja. Também não rolava esse negócio de álcool, drogas ou qualquer outro tipo de psicotrópico. O que rolava era a amizade, o companheirismo, a paixão também, por que não? Tudo dentro da maior felicidade e harmonia. Como diria mais tarde aquele famoso cantor: velhos tempos, belos dias!