Matéria viscosa, matéria vistosa: a escarradeira

A escarradeira, também conhecida como cuspideira e salivadeira, é um objeto utilizado, como revelam seus nomes, para escarrar e cuspir. Suas origens remontam à Idade Média Oriental. Na China, por exemplo, foram encontradas escarradeiras em tumbas de imperadores que remontam ao século VIII. As intensas trocas comerciais entre o Oriente e o Ocidente, no século XVI, fizeram as escarradeiras se popularizar nas Cortes da Europa - escarrar era um hábito - principalmente durante o apogeu das exportações de tabaco das colônias portuguesas e espanholas na América. Após o tabaco ser mascado, ele era cuspido nesses recipientes. Além desse uso, a escarradeira também era utilizada para fins médicos, com a eliminação de secreções decorrentes de doenças como a gripe e a tuberculose.

Sua chegada ao Brasil se deu entre fins do século XVIII e início do XIX. Encontramos em jornais do Rio de Janeiro publicados entre as décadas de 1820 e 1840, pessoas anunciando a compra e a venda de escarradeiras. Em 1827, a Chácara Copacabana, do Padre Jacinto Pires Lima, foi furtada por uma quadrilha. Dentre os inúmeros itens subtraídos, consta uma escarradeira (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 30/03/1827, p. 03). Por volta de 1838, uma pessoa anônima, estabelecida na rua do Valongo, comprava objetos de segunda mão. Um dos objetos que procurava, ao lado de uma bacia e jarro de prata, era a escarradeira (O DESPERTADOR, 30/11/1838, p. 04). Em um leilão realizado em 1845 na rua do Ouvidor, foi leiloada uma escarradeira feita de mogno (JORNAL DO COMMERCIO, 20/06/1845, p. 03). O lampista Auguste Daveau, proprietário da loja 'Bule Monstro', anunciava ter para vender em 1859 "escarradeiras de latão e de folha envernizada, ditas hygienicas de patente" (ALMANAK ADMINISTRATIVO, MERCANTIL E INDUSTRIAL DA CORTE E PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, 1859, p. 86).

A escarradeira, que já tinha uma origem ligada a membros do topo da hierarquia social, foi incorporada no Brasil pela nobreza, pela burguesia e pela classe média urbana. As utilizadas por esses segmentos eram feitas de porcelana, de louça, de faiança, de vidro e de madeiras e metais nobres. Eram decoradas com motivos florais, com paisagens bucólicas do campo, figuras de animais e muitas vezes suas formas, sendo mais empregada as do leão, com a representação de seu rosto e suas patas, de forma a lembrar, talvez, as origens orientais. Na geografia doméstica, a escarradeira, que poderia ser uma ou duas, ficava na sala, ao lado das cadeiras e sofás, e também debaixo ou ao lado da cama, junto do urinol. O sociólogo e historiador Gilberto de Mello Freyre registra que elas também eram postas na porta de casa, onde recebiam os visitantes: "Os viajantes estrangeiros que aqui estiveram no fim do século XVIII e no começo do XIX não se cansam de censurar nos brasileiros daquele tempo o mau hábito de viveram cuspindo, as salas cheias de escarradeiras ou cusparadas" (FREYRE, 2013). Os viajantes estrangeiros encontraram escarradeiras aos montes nas casas grandes e nas casas da burguesia e da classe média que começava a se formar em meados de 1800. A arqueóloga e historiadora Tânia Andrade Lima, em estudo sobre a cultura material do Rio de Janeiro do século XIX, afirma que a escarradeira é um objeto que diz muito, assim como outros, da mentalidade burguesa da época e suas práticas sociais:

"Destinados a aparar o excesso de saliva e catarro produzido pelo organismo e também o resultante do hábito de mascar o fumo, esses objetos confirmam a impregnação das mentalidades, à época, pelo humorismo hipocrático. Inusitados para os padrões atuais, atestam a extrema importância que as sociedades que os produziram ou adotaram no século passado atribuíam ao aoto de cuspir, de escarrar, de expelir o que consideravam nocivo ao organismo. Para que esta prática fosse exercida sem qualquer constrangimento, transformaram-na em um ato não apenas socialmente tolerado, mas sobretudo elegante, criando para esta finalidade requintados recipientes destinados a receber os fluidos viscosos" (LIMA, 1996, p. 66).

Sobre o hábito de cuspir e escarrar eram impostas, pelo menos desde o século XVI, normas de conduta. O teólogo e filósofo holandês Erasmo de Rotterdam, no livro A civilidade pueril, publicado em 1530, recomenda que quando se fosse cuspir, a pessoa deveria virar-se para o outro lado, de forma a evitar que as gotículas atingissem alguém. Se a matéria mucosa caísse no chão, o recomendado era que se colocasse o pé em cima. Cuspir em um lenço era o mais recomendável. Apesar de ser um hábito, não deveria ser praticado rotineiramente: "Não é de bom tom engolir saliva. Muito menos, tal como se vê em pessoas que, sem necessidade e mais por costume, apenas pronunciam três palavras e já estão a cuspir" (ROTTERDAM, 2006, p. 150). Esse hábito, que se tornava cada vez mais intolerável, pôde ser mais ou menos controlado, de acordo com o sociólogo alemão Norbert Elias, através da escarradeira, que se tornou um utensílio bastante requisitado nas residências burguesas (ELIAS, 1994, p. 159).

As escarradeiras não ficavam restritas ao ambiente doméstico, estando presentes em hospitais, escolas, igrejas, bares e teatros. Vejamos a extensa lista de objetos solicitados pelo Presidente da Província do Amazonas para o Hospital Militar de Manaus em 1876: Nela constam xícaras, bules, copos, lamparinas, colchões, cadeiras, urinóis e "cincoenta escarradeiras de madeira" (JORNAL DO AMAZONAS, 06/07/1876, p. 03). Na lista de objetos a serem adquiridos pelo Gymnasio Amazonense Dom Pedro II, consta o pedido de uma dúzia de escarradeiras, não sendo especificado de que material (DIÁRIO OFFICIAL, 22/08/1896, p. 07). As que eram encomendadas para hospitais - geralmente de ferro ou outro material mais simples - ficando ao lado das camas dos pacientes, tinham um tratamento diferente. Contra vários tipos de doenças, o jornal A Federação recomendava, em 1899, que "na bacia de cama e escarradeira deve sempre haver uma porção do soluto de sulfato de cobre" (A FEDERAÇÃO, 15/12/1899, p. 01).

Ainda de acordo com Tânia Andrade Lima, as escarradeiras eram produzidas na China e exportadas para a Europa no século XVIII. Posteriormente surgiram oficinas nas cidades portuguesas de Viana, Porto e Gaia (LIMA, 1996, p. 67). Encontrou-se em um jornal baiano de 1841 um vendedor comercializando objetos de Prata vindos da cidade do Porto. Entre facas, garfos e bules estavam as escarradeiras (CORREIO MERCANTIL, 20/03/1841, p.04). Também existiam fábricas em outros países Europeus, como a Alemanha. É de lá uma interessante peça que faz parte do acervo do Museus Ibram Goiás, datada do século XIX e produzida pela fábrica Bonn Franz Ant Mehlem (1840-1884). Veio de Limoges, na França, uma belíssima escarradeira do Museu Histórico e Pedagógico Visconde de Mauá, em Mogi das Cruzes, São Paulo. Deve-se mencionar a produção brasileira, que teve como representante a Fábrica Nacional de Vidros de São Roque, no Rio de Janeiro, que produzia "escarradeiras de diferentes côres, imitando as francesas, proprias para sala de visita" (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 03/04/1860, p. 04).

A escarradeira possivelmente chegou ao Amazonas por volta de 1850, assim como outros objetos domésticos, favorecida que foi a região pelo estabelecimento de uma linha regular de vapores da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (1852), propriedade do Barão de Mauá que mais tarde, em 1871, seria adquirida por empresários ingleses. A primeira referência encontrada data de 1859, na lista de objetos da Enfermaria Militar localizada em Manaus (ESTRELLA DO AMAZONAS, 20/07/1859, p. 03). Já por volta de 1870 a encontramos sendo comercializada. O comerciante Bernardo Truão, proprietário da Loja Esperança, importou em 1877 variadas "fazendas de luxo e miudezas" de Paris, Viena e Hamburgo, de onde vieram escarradeiras de porcelana (CORREIO DO NORTE, 21/07/1877, p. 04). Na Livraria Clássica, de Silva & Gomes, podiam ser encontradas, em 1892, "escarradeiras nickeladas e de zinco" (DIÁRIO DE MANÁOS, 06/04/1892, p. 04). Em 1898 a Casa Pekim, na rua Henrique Martins, comercializava "escarradeiras finas" (COMMERCIO DO AMAZONAS, 31/05/1898, p. 03).

O uso desse utensílio era tão arraigado na sociedade burguesa manauara que ele acabava tornando-se sinônimo de imundície em algumas situações. O jornal humorístico A Marreta, ao se referir a uma prostituta polaca que residia na Avenida Epaminondas, afirmou que ela era "peior do que uma escarradeira de tysico (tuberculoso)" (A MARRETA, 10/11/1912, p. 02). "Vae lavar tuas escarradeiras, sujo", bradavam os redatores de O Pimpão contra um português que estava tentando conquistar uma jovem (O PIMPÃO, 05/09/1911, p. 04). O Rebenque, protestando contra as moças que iam à missa e, ao invés de prestarem atenção nos ofícios, ficavam tagarelando, as alertava que "[...] as cabeças dos catholicos que vão a igreja, assistir religiosamente os seus actos, não podem nem devem servir de escarradeiras" (O REBENQUE, 11/01/1913, p. 03).

As mais belas escarradeiras do Amazonas encontram-se em exposição no museu do Teatro Amazonas. São de procedência holandesa e alemã, produzidas pela histórica fábrica Villeroy & Boch, em atividade desde 1748. São decoradas com figuras de animais, principalmente de pássaros, e cenas urbanas como um passeio de charrete, algo bastante característico do período. Outras, possivelmente de igual qualidade e beleza, devem ter se perdido nos antigos palacetes aristocráticos e residências pequeno-burguesas, a arruinar-se no Centro da cidade. Fazendo um exercício imaginativo, podemos nos transportar para a Manaus do final do século XIX e início do século XX para visualizar os usos da escarradeira. Quantas cusparadas e escarradas não foram dadas nos intervalos dos grandes espetáculos nas vistosas escarradeiras espalhadas pelo Salão Nobre do teatro, ou nas reuniões realizadas nos salões das casas mais suntuosas da Avenida Joaquim Nabuco e da Avenida Eduardo Ribeiro. Matéria viscosa de artistas, políticos, militares de alta patente, homens de negócios, cônsules, expectorada entre um gole de champagne francês Veuve Clicquot Ponsardin, vinho português do Porto e uma tragada de charuto cubano, o melhor do mundo. Expectoração que poderia anteceder ou suceder a assinatura de algum tratado, de acordo comercial entre seringalistas e casas aviadoras, ou de simples agendamento de convescote nos bosques do Tarumã no final de semana.

Até quando as escarradeiras foram utilizadas? É difícil precisar. As encontramos sendo vendidas ou leiloadas em anúncios de jornais até a década de 1940. A partir daí elas praticamente somem de circulação. As antigas escarradeiras de porcelana, de prata e de vidro, são substituídas por novos modelos hidráulicos, instalados em pontos estratégicos de espaços públicos e estabelecimentos comerciais, como bem exemplifica um anúncio de 1926 da Escarradeira Hygéa, criada no Rio de Janeiro, que possuía limpeza automática: "Os regulamentos de saúde publica exigem escarradeiras deste systhema". A revista Careta, do Rio de Janeiro, registra a instalação desse tipo de escarradeira em Manaus, no consultório do médico José Garcia e no Posto de Profilaxia Miranda Leão (CARETA, 17/09/1927, p. 37). É provável também que entraram em decadência juntamente aos hábitos de mascar fumo e usar cachimbo, e que tornaram-se, disso não tenhamos dúvida, menos toleráveis com o passar do tempo: o refinamento deu lugar ao estranhamento, à repugnância, reação que ainda temos quando vemos essas peças expostas em museus e lembramos dos seus usos no passado.

FONTES:

Diário do Rio de Janeiro, 30/03/1827.

O Despertador, RJ, 30/11/1838.

Correio Mercantil, BA, 20/03/1841.

Jornal do Commercio, RJ, 20/06/1845.

Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro, 1859.

Estrella do Amazonas, 20/07/1859.

Diário do Rio de Janeiro, 03/04/1860.

Jornal do Amazonas, 06/07/1876.

Correio do Norte, 21/07/1877.

Diário de Manáos, 06/04/1892.

Commercio do Amazonas, 31/05/1898.

A Federação, 15/12/1899.

O Pimpão, 05/09/1911.

A Marreta, 10/11/1912.

O Rebenque, 11/01/1913.

Careta, RJ, 17/09/1927.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução de Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1994.

FREYRE, Gilberto de Mello. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. São Paulo: Global, 2013.

LIMA, Tânia Andrade Lima. Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX. Manguinhos - História, Ciências, Saúde, v. II, n.3, p. 44-96, 1996.

ROTTERDAM, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2006.