Estou vivendo a vida que desejo viver?

“Se em tudo aquilo que queres fazer começares a te perguntar

‘Será que quero mesmo fazê-lo um número infinito de vezes?’,

isso será para ti o centro da gravidade mais sólido...Minha

doutrina ensina: ‘Vive de tal maneira que devas desejar

reviver, é dever — pois reviverás de todo jeito! Aquele cujo

esforço é alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama

antes de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de

tudo submeter-se, obedecer e seguir, que obedeça! Mas saiba

bem aonde vai sua preferência e que não recue perante nenhum

meio! É a eternidade que está em jogo!’ Essa doutrina é amável

para com aqueles que não acreditam nela. Ela não possui nem

inferno, nem ameaças. Aquele que não acredita sentirás apenas

uma vida fugaz”. (Nietzsche. A vontade de potência.)

Esta epígrafe apresenta indicativos de princípios que orientam o agir humano, o qual está relacionado com a sua capacidade de descobrir e de inventar novas possibilidades de viver a vida. Esse modo de refletir sobre como devemos conduzir a nossa vida opõe-se à compreensão de que a vida deve ser direcionada por certos limites, que restringem o desenvolvimento de suas potencialidades à aspectos meramente formais. Por isso, este texto retorna aos filósofos gregos, que compreendiam a atividade filosófica indissociável da vida, para apreendermos como eles traduziam os seus conhecimentos na maneira que viviam as suas vidas.

Dentre os filósofos gregos do século IV a. C., optamos por analisar o pensamento de Platão, por dois motivos: o primeiro, porque ele estabelece uma ruptura com o pensamento mítico-religioso do orfismo, que se utilizava de rituais e de asceses como forma de elevação da psyché humana com o objetivo de contemplar a harmonia da natureza, e os processos de transformações necessárias que ela deveria experimentar. Por isso, ela sentia-se presa ao corpo e desejava libertar-se dele. Por sua vez, Platão formulou uma explicação apoiada em princípios racionais para explicar como é possível conduzir a psyché humana do modo sensorial, passando pelo processo de recordação, para alcançar o desenvolvimento da inteligência — aspecto mais sublime da alma humana.

O segundo motivo refere-se a sua compreensão de psyché, que está indissociavelmente ligada à psyché cósmica, por ser constituída com os mesmos elementos que a constituíram, ou seja, os elementos materiais e os divinos compõem no ser humano um todo psicossomático. E ao relacionar-se com o mundo, ela elabora para si mesma modos de conhecer e de desenvolver as suas potencialidades. Por isso, Platão apresenta o pensar, o refletir racionalmente como uma forma de evidenciar as razões do modo como o homem grego conduzia a sua psyché no caminho do bem viver . Mesmo assim, poucas pessoas, desse período, interessaram-se por ela.

Essa mudança de perspectiva sobre o viver bem promovida por Platão, trouxe um novo sentido para a vida do ser humano, porque ele conferiu ao ser humano a capacidade de orientar a sua atenção para conhecer a realidade do mundo e a si mesmo, com o objetivo de desenvolver as suas potencialidades intelectuais, que conduz os modos de vida até os limites que ele pode realizar. Em função disso, este texto tem como como eixo estruturante a seguinte ideia: a inteligência é o modo, por excelência, do ser humano conduzir a sua vida. Além desse modo, a sua psyché pode acessar e desenvolver outros modos. Neste sentido, com o objetivo de descrever a proposta de Platão sobre como o ser humano deve viver a vida, foram formuladas as seguintes perguntas: como Platão entendeu o significado e o sentido de bem viver? E, para que você possa atualizá-la a seu modo, perguntamos a você: estou vivendo a vida que quero estar vivendo?

Para fundamentar a resposta da primeira pergunta recorremos aos diálogos de Platão: Filebo e Timeu, que nos auxiliarão direta e indiretamente para responder a segunda questão. Além disso, a escolha desses diálogos teve dois motivos: o primeiro foi por eles comunicarem-se entre si, e o segundo está relacionado à fundamentação da tese do primeiro. Esse também foi o motivo por que optamos por iniciar esta reflexão com o diálogo Filebo.

Esse diálogo tardio de Platão, encontra-se estruturado a partir dos discursos de três personagens: Sócrates, Protarco e Filebo, por não ter nenhum registro histórico que comprove a sua existência histórica, trata-se, portanto, de um personagem fictício de Platão. O significado do nome Filebo é amigo ou amante da juventude . Embora, nesse diálogo, o debate ocorra em torno dessas duas teses: “a vida boa é uma vida orientada pelo prazer — a vida boa é uma vida orientada pela razão” , elas expressam uma das faces da reflexão filosófica correntes, no período que Platão viveu, e foram analisadas também à luz do Timeu, ou seja, do diálogo em que Platão descreve a relação da Payché com o mundo e consigo mesmo, com o intuito de compreender os seus limites e as suas potencialidades, em relação ao conhecimento de si mesma.

No Filebo, Embora o personagem Sócrates utilize apenas a palavra para construir as suas argumentações, ele parte do campo da experiência sensível, ou seja, de questões empíricas para construir a sua argumentação, para responder aos seus interlocutores. Mas para isso, ele tem clareza de que os indivíduos podem evocar fatos, os acontecimentos para construir as suas argumentações. No entanto, quando analisados mais detalhadamente, eles refletem sempre experiências particulares de cada indivíduo vivenciadas em circunstâncias singulares. No entanto, para que os argumentos sejam compreensíveis por pessoas que, não passaram ou não tiveram as mesmas experiências, ou, ainda, que tenham vivido essas mesmas experiências, mas de um outro ponto de vista, é necessário construir argumentos que têm as ideias, o conceito como forma de explicitar as razões do agir humano.

Para Platão, os conceitos ultrapassam o plano dos fatos, das simples opiniões e das lembranças, gravadas na memória. Neste sentido, ao utilizar a inteligência humana, a Psyché humana consegue elaborar hipóteses, ou seja, no caso da realidade sensível em mudança, Platão infere que “tudo que nasce devém de uma causa, porque nada pode originar-se sem causa”. (TIMEU, 28a). Dessa hipótese pode-se afirmar que, para se obter o conhecimento parcial do devir é preciso admitir a tese prévia de que tudo o que devém o faz sob o efeito de uma causa. A inteligência é um modo da Psyché ultrapassar a realidade sensível movente, e conhecer as causas que por trás dela. O conceito de realidade, por exemplo, não tem como fundamento a realidade sensível em devir, mas a causa originária do movimento.

Por isso, nem o sentir, nem a recordação das vivências passadas nos permite ter acesso à causa originária do devir, mas somente a inteligência. Ao capturar a realidade sensível por meio das sensações, a Psyché humana leva em consideração apenas a relação do processo de mudança entre os fatos e acontecimentos antecedentes e os que estão ocorrendo. O sentir apreende informações derivadas fatos e os acontecimentos que, ao serem avaliados pela Psyché, expressa um juízo de valor apoiado em questões pontuais, específicas, que não revelam as causas que se ocultam por trás desses dados. Do mesmo modo, das lembranças da memória só pode-se afirmar que elas devém de experiências de vidas passadas, e, por isso, a própria memória limita sua capacidade explicativa da realidade o processo de recordação. Para Platão, o uso e o desenvolvimento da inteligência, possibilita o ser humano a conhecer a realidade das causas ocultas que orientam a realidade do devir e da existência humana.

Para Platão, a Psyché humana consegue apreender as causas ocultas por trás da realidade sensível em devir, quando utiliza-se a potencialidade da inteligência. O raciocínio que a inteligência estabelece diante da realidade em devir é o seguinte: se a realidade sensível é constituída pelo devir contínuo, então deve haver ao oposto a ele, ou seja, uma causa originária estática; se há uma multiplicidade deve haver o seu oposto, uma unidade. Agindo assim, a Psyché, quando direcionada pela potencialidade da inteligência tem como função desvelar as causas ocultas, não explícitas, de onde derivam a origem do mundo, do ser humano, ou seja, da Psyché do Demiurgo — da mente divina.

Neste sentido, a busca por viver bem pautada exclusivamente no prazer de viver a vida, expressa na Psyché humana um certo descontentamento, mesmo em situações de contentamentos. E, as suas recordações conduz a Psyché a momentos de nostalgia, de saudades de si mesma. A reflexão sobre as causas ocultas revela que há uma identidade entre a mente divina, a alma cómica e a alma do ser humano. Quando a Psyché humana experiencia essa identidade, ela passa a perceber as limitações dos estilos de vida pautados nos modos de vida do sentir e da atividade da recordação.

Por isso, a resposta da pergunta qual o melhor caminho para o ser humano conduzir a sua própria vida? Segundo Sócrates, o prazer possui uma similitude com a dinâmica do devir, ou seja, devido a sua fluidez, e por estar relacionado à múltiplos objetos e situações não é possível inferir da realidade sensível um princípio sólido que possa guiar a nossa vida, dado a dimensão de instabilidade da realidade sensível. No entanto, na medida em que a Psychê humana passa a investigar a realidade utilizando-se da inteligência, ela compreende que a multiplicidade de prazeres tem como fontes originárias a Psychê cósmica e a Psychê demiúrgica. Desse modo, no Timeu, Platão afirma que a constituição da Psychê humana está entrelaçada com a Psyché cósmica, porque há elementos em comum que as constituem — elementos divino e cósmico, matéria.

Em decorrência disso, Platão, no Timeu, afirma que a Psyché humana não foi originada nem direta, nem exclusivamente da inteligência demiúrgica, mas dos deuses, que utilizaram, para criar o homem, os restos da alma do universo e os da alma dos deuses. (Timeu, 41d). Por isso, a alma humana é constituída da mistura das forças do sentir, dos afetos que a vincula ao campo do devir do mundo, com quanto pela inteligência, que eleva a sua potencialidade. O que pode-se afirmar que a Psyché humana desdobra-se em três modos distintos de conhecer a realidade, a saber: as sensações, o sentir; a recordação, a rememoração da memória, e a inteligência, a reflexão racional.

Para Dixsaut , em sua obra Platão e a questão da alma (2017), o sentir é o primeiro modo da Psyché humana conhecer a realidade e a si mesma. Ele não é exclusividade nem somente do corpo, tampouco da Psyché. A experiência do sentir somente é percebida pela Psyché, porque ela e o corpo estão fundidos, formando uma única unidade, ou seja, a fusão entre a Psychê e o corpo (soma) compõe uma unidade psicossomática indissociável. Neste sentido, essa autora afirma que “o mundo sensível só é tal porque é sentido por um corpo animado”. (DIXSAUT, 2017, p.48). Com isso, a Psyché humana, ao configura-se como princípio de vida e de sensibilidade, expressa um modo de apreender, interpretar e conhecer a realidade à sua volta, e a si mesma, fundamentada nas sensações, e nas suas potencialidades.

Para essa autora, a Psyché humana passa a ser o sujeito do sentir. Por isso, ela sente, percebe e modela o mundo a partir dessas experiências, que são gravadas em sua memória. Para Dixsaut, a memória possui duas funções, a de conservar e de lembrar. Enquanto conservação, ela é a salvaguarda da percepção, que não é somente sensível, mas também pode ser de alguma outra forma aprendida. As recordações das experiências que desenvolvemos no tempo em que avançam os esquecimentos parciais remontam a causas contingentes circunstanciais.

Neste sentido, mesmo as recordações intelectuais que foram aprendidas no curso em que o corpo esteve unido à sua alma, podem ser compreendidos a partir desta perspectiva. Além das sensações, pode-se afirmar que a memória está ligada aos desejo, às representações da imaginação. E com isso, para as sensações conservarem-se nela as suas impressões, elas se inscrevem diretamente na estrutura da Psyché. E o que o que se conserva? Apenas aquilo que o sujeito deseja conservar. Àquilo que tem sentido para ele. (DIXSAUT, 2017, p. 81).

A outra função da memória reside no lembrar. Ela está vinculada a perspectiva das reminiscências. Isto porque desenvolve-se a partir do esquecimento total de um saber total que a alma se esforça, ele a própria e somente por si, para adquirir por porções. Nesta busca todo avanço é para ela um regresso. Assim, as reminiscências nos leva ao processo de busca a recordar que as coisas são como são e a ter uma experiência com os ideias de justiça, de belo e de verdade. Esses ideais foram inscritos na alma não pelas impressões das sensações, mas das experiência que a alma teve antes de ligar-se ao corpo vivo do ser humano.

E, a terceira maneira de viver a vida é a orientada pela razão, pela inteligência. Embora Platão afirme que esse é o modo de vida seja o mais sublime do que os do sentir e da recordação, isso não significaria que esse caminho estaria livre as adversidades, dos sofrimentos e de sentir dor. Para Platão, o ser humano estaria em condições de entender as razões dos seus sofrimentos, das adversidades, das suas dores, e com isso ele estaria em condições de melhor mobilizar os seus recursos e forças internas, bem como as suas habilidades para apaziguar ou resolvê-las. As adversidades da vida não seriam vistas somente como um peso que aplaca sobre a sua vida, mas são meios para o ser humano aprender a viver melhor.

Diante disso, a reflexão filosófica fundamentada no uso da inteligência seria a melhor forma de conduzir a ação humana, segundo Platão. Para ele, a inteligência, ao deparar-se com o mundo da vida em que todas as coisas estão em constante mudança, ela afirma que se tudo está em mudança incessantes, então, não é possível conhecer nada. E, como tudo flui, é possível construir a hipótese de que há uma realidade inalterável da qual deriva o processo de mudança. Neste sentido, quando o homem direciona a sua vida utilizando-se da inteligência, ele não submete a sua vida à condições que limitam a sua vida. Em certo sentido, pode-se dizer que ele desenvolve o senso de autonomia frente às adversidades e às circunstâncias da vida.

Além disso, a palavra, ou melhor ainda, a retórica foi identificada por Platão, como uma forma de conduzir a alma dos ouvindo, principalmente quando esses o discurso. Esse processo de condução da alma foi indicado pelo termo Psykhagogia (Psykhe + ago + gia), que pode ser traduzido por condução da alma, ou ainda, a arte de guiar a alma para o melhor caminho. Durante o percurso da existência o ser humano vivencia várias experiências, situações e acontecimentos, que o leva a agir de uma maneira e não de outra.

No entanto, essa reflexão sobre como o ser humano deve conduzir a sua alma em função do bem viver não era exclusividade dos pensamentos de Sócrates, de Platão e de Aristóteles, na Grécia antiga. Desde o pensamento mítico-religioso órfico essa preocupação era posta. E, as várias escolas filosóficas desse período propuseram maneiras próprias de como o ser humano deveria conduzir a sua alma em função do bem viver. Dentre essas citamos os céticos, os epicuristas, os estoicos, os cínicos, assim como os sofistas que propuseram maneiras “libertar o homem do peso das preocupações, do medo, das dores”. (LIPOVTSKY, 20016, p.37). Isso significaria dizer que os gregos tinham como proposta viver uma vida feliz. E por felicidade eles entendiam “antes de tudo estar em paz consigo mesmo, estar de acordo consigo mesmo. Amar a si mesmo. Gostar da vida que leva ”. (SILVA, 2016, p.10).

Na modernidade, a fusão entre a atividade racional e os interesses do capitalismo nascente, e as revoluções tecnológicas na contemporaneidade modificaram profundamente o modo de vida das pessoas. Essa parceria trouxe um ideal de vida leve, com o desenvolvimento de máquinas e utensílios domésticos, de transporte, de comunicação, que em muito trouxe facilidade para a vida cotidiana das pessoas. Mesmo, assim, essa leveza veio acompanhada de uma proposta que levasse o ser humano a desenvolver-se as suas potencialidades humanas em benefício de si mesmo, e não somente do capital.

Por isso, por um lado, é possível perceber que inúmeras pessoas recorrerem à várias práticas terapêuticas do corpo e da mente para tentarem aliviar o peso da vida, e por outro, outras tantas, não conseguem lidar com as adversidades da vida, com as dores da própria existência. As adversidades da vida, as dores, os sofrimentos, as angústias, os medos, o temor frente o futuro etc, é comum a todas as pessoas, mas o modo de vivenciá-las difere de indivíduo para indivíduo. Cada indivíduo sente e vive de modo singular a sua existência e as duas dores.

Aprender a cuidar de si mesmo(a) é fundamental. O conforto e a segurança que a tecnologia tem proporciona um bem estar aos indivíduos, o que os levou a não se ocuparem consigo mesmo, com os seus desejos mais profundos que ainda não foram totalmente agenciados pela lógica do desejo de consumo sociedade contemporânea. E para isso, é imprescindível conhecer a si mesmo.

Referências

DIXSAUT, Monique. Platão e a questão da alma. Tradução de Cristina de Souza Agostini. São Paulo: Paulus, 2017.

FERANDES-FIGARES, Maria Dolores. Primeiros Filósofos: Pré-Socráticos. Belo Horizonte, MG: Editora Nova Acrópole, 2020.

LIPOVETSKY, Gilles. Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. Tradução de Idalina Lopes. Barueri, SP: Manole, 2016.

GOLDSCHIMDT, Victor. Os diálogos de Platão. Estrutura e método dialético. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2002.

PLATÃO, Diálogos IV: Parmênides; Político; Filebo; Lisis. Tradução Edson Bini. Barueri, SP: Edipro, 2015.

PLATÂO. Fedro (ou do belo; Eutifron (ou da religiosidade); Apologia de Sócrates; Críton (ou do dever); Fédon (ou da alma). Tradução de Edson Bini. Barueri, SP: Edipro,2008).