A lição que faltou ao Ministro
Nos inícios da década de 1990, quando não se falava ainda de educação inclusiva para alunos com deficiências, deparei-me numa primeira aula de introdução à filosofia com um cego. Confesso que fiquei inquieto tentando descobrir como fazer para que minhas aulas servissem a esse aluno da mesma forma que para os demais. Nunca tive qualquer capacitação para exercer o magistério com alunos cegos. E poderia ter alunos com outras deficiências como motora, mental, auditiva. Meu Deus! Por que não me ensinaram nada sobre esse desafio no curso de licenciatura que frequentei lá nos idos de 70? Em 2019, conforme levantamento do IBGE eram 45 milhões de pessoas com deficiência, quase 25% da população. Quantos desses conseguiram avançar nos estudos? Quantos conseguiram ser aceitos nas escolas?
Se eu nunca tinha me deparado com essa situação é porque até então a Universidade não se constituía em espaço disponível e preparado para receber tais alunos. Nunca iniciei um curso de maneira tão inquieta. Na verdade, foi apenas uma aula, por sinal, muito mal dada, pois estava preocupado com o aluno cego que estava na minha frente. Eu olhava para ele e ele quase está na minha direção. Quando escrevia no quadro ficava pensando como ele faria para anotar pois dispunha de nenhum equipamento adequado? Não tinha nada nas mãos. Meu Deus! Eu não posso ficar assim o curso todo, nessa angústia e sensação de fracasso diante de uma pessoa deficiência. Será que nossa sociedade se sente fracassada diante dessa problemática que atinge tantas pessoas? O próprio ministro reconheceu que possui pouco conhecimento. Na verdade, não temos nenhum conhecimento a respeito das diversas deficiências. Olhamos o mundo pedagógico dentro de uma normalidade fictícia.
Eu olhava para a turma, bem grande, em torno de cinquenta alunos, que também nada parecia manifestar diante da situação. Pensei que talvez eles já soubessem da situação e da solução do desafio. Mas por que ninguém não me falou nada? Por que a coordenação ficou calada? Como esse aluno fez as provas do vestibular? Ou teria sido aprovado por complacência diante de sua deficiência? Mas que deficiência? Ele parecia igual aos demais alunos. Nem sempre as deficiências são visíveis e muitas requerem muita observação para ser identificada sem os famosos testes.
E o aluno ali, sentado na mesma cadeira. Bem na frente para não perder nada do que eu dizia. O que amenizava um pouco era o fato de saber que ele ouvia, pois respondeu a chamada. Não apenas ouvia, como também falava. Ora, senhores, qual o tamanho da necessidade desse aluno? Ele anda, ouve, fala, sente, se movimenta, pensa, pois num determinado momento ele levantou o braço para fazer uma pergunta. E sua pergunta não era daquelas que tantos alunos não deficientes fazem só para mostrar que estão participando das aulas. Eu respondi prontamente e perguntei se havia entendido. Ele balançou a cabeça afirmativamente. Menos mal. Mas continuava a minha situação de angústia.
Para a avaliação da disciplina eu tinha planejado um trabalho em grupo de cinco componentes, uma prova escrita e uma arguição oral. Na montagem dos grupos percebi que ele foi incorporado facilmente num grupo. Não figurou como um rejeitado que ninguém quer junto a si para um trabalho em grupo. E pelo que pude perceber, os seus colegas fizeram o convite imediatamente a ele. Portanto, me parecia ser uma pessoa com quem as pessoas vão lidar muito bem. Que integração tão rápida!
Mas eu não estava tranquilo. Minha cabeça parecia explodir. Eu que sempre prezei pelos critérios democráticos, sem discriminação de ninguém, o que eu poderia fazer quando ele me dissesse que não poderia fazer a prova escrita como havia proposto? Ele teria que ler os textos e com base neles responder por escrito sob a forma de dissertação as perguntas que foram elaboradas. O texto não estaria em braile e nem eu entendia braile. Porém, ele não me questionou a respeito desse processo avaliativo. Meu Deus! O que está acontecendo?
Bom, se ele solicitasse, eu poderia substituir a prova escrita por outro trabalho. Mas como justificar? Ele tem direito a fazer a mesma prova que os demais alunos. Ele não me pediu parra mudar a proposta de avaliação. Simplesmente estava aí na minha frente, quieto e feliz por ter chegado à Universidade.
Chegar à Universidade era o grande milagre e nisso eu ficava super feliz. Ele deu um passo enorme, estudou muito, não sei como fez para chegar aí nessa condição de aluno do curso de filosofia. Ele tem todas as condições para isso! Sim! Apenas lhe faltava a visão. Mas percorrer todo o caminho escolar não deve ter sido fácil para esse jovem. Todos os seus colegas percebiam que ele estava no mesmo direito de pertencer a uma universidade pública e gratuita.
Ao terminar a aula, liberei todos para saírem, e pedi a ele para permanecer pois eu queria conversar com ele. Não gosto de postergar situações que estão sob o meu raio de ação. Não concordo com a filosofia do “vamos ver como vai ficar”. Desde o início era preciso que tudo ficasse esclarecido e ter clareza de qual rumo deveria ser percorrido por mim como professor e pelos alunos. Todos!
Então cheguei para ele e logo fui dando os parabéns por ele ter chegado até aquele grau e que eu estaria aí para ajudá-lo na nova caminhada. Perguntei:
- Você sabe que quero sua presença em todas as atividades, então como vamos resolver a questão da prova escrita e a leitura dos textos filosóficos, pois não temos bibliografia em braile.
Confesso que me senti com muita culpa ao dizer que não tínhamos bibliografia em braile e nem saberia como produzir a mesma prova nessa forma de escrita. Estamos nos sentindo nus diante do fenômeno da deficiência. Será que isso incomoda a nossa sociedade? O Ministro da Educação achou uma solução rápida. Formar turmas só com alunos deficientes, pois esses atrapalham os demais na aprendizagem. Mas eu não senti nos quarenta e nove colegas desse aluno cego que ele seria um estorvo. Muito pelo contrário.
Agora estávamos eu e ele, frente à frente, olho no olho, para encontrar uma saída. A falta de visão parece que dá à pessoa um grau a mais na racionalidade prática. Diante da minha pergunta, ele foi logo me dizendo que já havia encontrado alguns colegas que estariam com ele lendo os textos juntos, afinal ele ouvia e falava. Eu fiquei estupefato, pois era a primeira aula. Que tempo tiveram para já estabelecerem esse pacto de inclusão? Aí tomei coragem e perguntei outra coisa: como você fará a prova escrita? E ele foi logo me dizendo que tinha um colega que era médico e estava fazendo filosofia e esse colega estava estudando braile para ajudá-lo na prova, uma vez que ele responderia as questões em braile e o colega faria a escrita normal para que eu pudesse ler e avaliar. Graças a Deus! Tudo estava resolvido.
Aí então completei. Então a universidade encontrou os meios técnicos para que você pudesse fazer a prova do vestibular. E agora? Parece que sua situação está resolvida. Maldito o momento que fui falar isso. Ele tomou a palavra e numa entonação mais forte, que até me deu medo, medo de mim mesmo e não dele, me questionou:
- “Eu não estou aqui lutando somente para salvar a minha pele. Eu não preciso de muita coisa mais como o senhor está vendo. Mas eu quero que tantos amigos meus cegos cheguem aqui também, cheguem em todos os cursos que quiserem fazer. Eu luto para que a universidade que é pública e gratuita garanta os meios como bibliografia em braile, máquinas próprias, capacite professores, para que todos os cegos que quiserem possam estudar”.
Então, como explicar que as pessoas com deficiências atrapalham a aprendizagem dos demais alunos? Não se trata de pouco conhecimento, mas de nenhum conhecimento. Eu me enquadrava naquela situação de total desconhecimento frente um aluno cego. Era a minha situação naquele início de curso. Precisamos reconhecer nossa total ignorância. Mas precisamos acima de tudo preparar nossos professores, pedagogos para uma educação inclusiva e dotar cada escola dos meios essenciais para o atendimento de cada aluno em sua necessidade especial. Não se trata de esperar que chegue algum aluno com deficiência para se pensar no que fazer. É preciso estarmos preparados para receber essa parcela da população em nossas salas de aula.