Remanescentes, a desfaçatez do colonizador em nos nomear como restos.
¹Francisco Cruz do Nascimento Magonleji
Resumo
Ser remanescentes é tornar-se sobra, resto, parte distinta de um todo. Essa é a forma pejorativa que o nosso opressor e seus descendentes encontraram para nos estigmatizar, reduzir as nossas histórias, conquistas, culturalidades, ancestralidades, vivências, trajetórias marcadas por saberes tradicionais. Uma forma cruel de aniquilar as nossas giras de saberes, reduzir a importância dos nossos fazeres, do nosso modo de vida. O desejo de todo dominador é invisibilizar os dominados, subalternizá-los e impor a sua cultura, sobrepujando a ciência, as artes e os feitos relevantes de negras e negros dos quilombos brasileiros.
Palavras-chaves: Remanescentes; Subalternizar; Invisibilizar; Saberes tradicionais.
Summary
To be remnants is to become a leftover, a remainder, a distinct part of a whole. This is the pejorative way that our oppressor and his descendants found to stigmatize us, reduce our histories, achievements, culturalities, ancestry, experiences, trajectories marked by traditional knowledge. A cruel way to annihilate our tours of knowledge, reduce the importance of our doings, our way of life. The desire of every dominator is to make the ruled invisible, subordinate them and impose their culture, overcoming science, the arts and the relevant achievements of black men and women from the Brazilian quilombos.
Keywords: Remnants; Subalternize; Invisible; Traditional knowledge.
Resumen
Ser remanente es volverse un sobrante, un resto, una parte distinta de un todo. Esta es la forma peyorativa que nuestro opresor y sus descendientes encontraron para estigmatizarnos, reducir nuestras historias, logros, culturalidades, ascendencia, vivencias, trayectorias marcadas por los saberes tradicionales. Una forma cruel de aniquilar nuestros recorridos de conocimiento, restar importancia a nuestros quehaceres, a nuestra forma de vida. El deseo de todo dominador es invisibilizar a los gobernados, subordinarlos e imponer su cultura, superando la ciencia, las artes y los logros relevantes de los hombres y mujeres negros de los quilombos brasileños.
Palabras llave: Restos; Subalternizar; Invisible; Conocimientos tradicionales.
¹ Arte-educador da rede pública estadual da Bahia, Mestre em Ensino e Relações Étnico-raciais – UFSB, Especialista em Estado e Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais – UFBA, Especialista em Teatro – UNEB, Taata Kabondu Magonleji do Nzo Caxuté, Valença – BA, Membro da ABPN.
Introdução
Falar de comunidades quilombolas no Brasil, é dialogar com a ancestralidade africana na formação do povo brasileiro e denunciar a cruel colonização imposta aos povos escravizados sequestrados de África para gerar riquezas a custas das vidas e dos sofrimentos impostos pelos cruéis colonizadores brancos europeus.
A nossa história foi construída pelos povos de muitas nações africanas e pelos povos originários que habitavam essa terra. Entretanto, para contar a história de portugueses, ingleses, espanhóis, franceses, alemães e holandeses, os colonizadores denominaram os brancos de descendentes, mas para denominar as gerações de africanos e africanas e seus descendentes nos quilombos, criaram o termo remanescentes.
Existe uma lógica perversa, no início da contação do engodo histórico, não observada por muitos desavisados que reproduziram esse termo, sem perceberem que ali estava impregnado uma ideia reducionista, inferiorizadora de pretos e de pretas, “remanescentes”. Restos, sobras. Como se fosse um povo dizimado que não tinha ascendência merecedora do respeito, da dignidade. Como se não tivesse lastro familiar, simplesmente resto. Mas as comunidades quilombolas de todo o Brasil, se viram na incumbência de preservar as suas histórias, as suas culturas, as suas ciências, as suas tradições, as suas artes, as suas religiosidades, os seus cultos e todas as suas manifestações aprendidas de África.
Uma história única, contada pelos opressores e reproduzida pelos nossos livros didáticos em todo o Brasil, onde a diversidade inexiste, os modelos e referenciais estéticos estão calcados na branquitude. Os direitos são negados aos povos africanos e aos seus descendentes, portanto, é necessário se fazer uma revisão conceitual dessas trajetórias, dando-se o direito aos quilombolas e a todas as comunidades afrodescendentes espaços políticos e garantias de territorialidade para que possam contar e legitimar as suas próprias histórias.
Quilombo hoje
O termo remanescentes se tornou uma forma pejorativa naturalizada nas salas de aula das academias, nas escolas da educação básica que determinados sites, pesquisadores e estudiosos da temática, não atentam para a incorrência agressiva, inferiorizadora e abusiva proposta pela palavra em si. Para se ter uma ideia, o site Brasil Escola publicou uma versão deprimente na orientação de Sociologia:
Quilombolas são os descendentes e remanescentes de comunidades formadas por escravizados fugitivos (os quilombos), entre o século XVI e o ano de 1888 (quando houve a abolição da escravatura), no Brasil. Atualmente as comunidades quilombolas estão presentes em todo o território brasileiro, e nelas se encontra uma rica cultura, baseada na ancestralidade negra, indígena e branca. No entanto, os quilombolas sofrem com a dificuldade no acesso à saúde e à educação.
Só nesse pequeno extrato, podemos ver o absurdo de se aceitar que os escravizados se tornaram fugitivos e por isso formaram as comunidades quilombolas. Essa é uma aberração grosseira de quem concorda com o opressor. Como podemos entender que pessoas livres em seu continente, em seus países, em suas comunidades, foram sequestradas e vendidas como mercadorias, podem ser chamadas de fugitivas? Quando deveriam ser chamadas de libertas. Por acaso essas pessoas cumpriam alguma pena legal? Pertencer a alguém, a algum senhor, tornar-se propriedade de outrem, perder a liberdade por obstrução abrupta de direito é deixar de ser pessoa de direito? Se concordarmos com essa prática como algo naturalizado, então concordaremos que ser remanescentes é ser restos, sobras...
A vida humana é preciosa independentemente da cor da pele, a vida humana é preciosa independente da nacionalidade, a vida humana é preciosa sob qualquer circunstância. Precisamos pensar e estar além do domínio opressor. Precisamos estar conscientes de que a liberdade é um direito inerente a qualquer sujeito, em qualquer lugar do mundo.
Reproduzir o sentido mais profundo do ser remanescentes é inferiorizar de forma desfaçada, com a aparência boa de lembrança, para não afetar, ofender, magoar. É a desfaçatez do opressor nos fazendo sentir a sensação de ser sermos criminosos, sem ter cometido crime algum, de ser fugitivos da nossa própria liberdade.
Nunca ouvimos falar das comunidades remanescentes de alemães no Sul do Brasil. Para essas comunidades brancas, o termo correto é “descendente”. Por que teremos de compreender e aceitar esse termo de remanescentes para as comunidades quilombolas? Para o Dicionário Google, quando se pergunta o significado ou sinônimo de remanescente, a resposta é taxativa:
1. restante, remanente, derradeiro, último, subsecivo, réliquo. Resto: 2. resto, sobra, excedente, excesso, sobejo, resíduo, sarandalhas.
Refletir a dureza da colonização é papel fundamental para educadoras e educadores decolonizadoras e decolonizadores, para isso, precisamos fazer a leitura das entrelinhas separatistas da história da humanidade.
A naturalização do preconceito deixa marcas indeléveis como aparece no romance Escravos, do escritor kangni Alein, (p. 33, 2011). No subtítulo 1788, o incomparável lusitano, onde se lê:
Digam o que disserem, os povos daqui sempre julgaram os seus semelhantes e os estrangeiros primeiro pela aparência. Desde que puseram os pés em Glehué, os brancos foram classificados em categorias mais ou menos respeitáveis e tratados conforme se impunham ou não aos habitantes locais pelo traje, pelo comportamento.
Os quilombos de hoje retratam de maneira fiel a herança de negações, seja nas periferias dos grandes centros urbanos ou nas comunidades campesinas no interior do Brasil. Dentre as mazelas, destacam-se, a falta de saneamento básico, as péssimas condições de moradia, as dificuldades de acesso às políticas públicas. Mas, também, nesses espaços, as pessoas conseguem manter a organização comunitária, a indicação das lideranças, o respeito aos idosos, as giras de saberes, os encontros para atuar de forma estratégica nas lutas comunitárias, os sabores tradicionais, os mutirões, os cânticos de trabalho e o zelo com as crianças.
Giras de saberes tradicionais
A história nos ensina que as tradições ensinadas pelos e pelas griots, anciões, anciãs, mestres e mestras dos saberes, evidenciam uma competência marcante das relações sociais nos quilombos, a oralidade.
Ao sentar-se em círculo para contar histórias, os anciãos e as anciãs remontam as suas aprendizagens significativas e decisivas para as suas sobrevivências e sobrevivência das culturas escreviventes, cuja a oralidade é o traço de saber necessário a própria identidade ancestral.
Somente uma proposta de escola específica do campo pode revitalizar os saberes tradicionais, os valores e as manifestações culturais dos povos do campo. Essa busca não invisibiliza os saberes derivados das tradições campesinas que se alojaram nas periferias urbanas.
O livro Educação no campo, recortes no tempo e no espaço, organizado por Gilberto Luiz Alves, nos diz que:
Olhando a discussão do campo do ponto de vista da Educação, salta aos olhos a importância que assume o discurso da especificidade. (p.41. 2009)
É lógico que o inimigo previsível desse conflito opressor é o capital. Entretanto, os nossos olhares precisam ir além. Reconhecer os opressores que se disfarçam no discurso de proteção, cuidado e servidão. Esses são os mais perigosos, não revelam as suas identidades e atuam sorrateiramente para enganar e cooptar os indivíduos inocentes que acreditam em tudo o que parece bom.
O papel de educadores antirracistas
É papel de toda educadora ou educador antirracista sair da zona de conforto, revisar os seus livros didáticos, escolher os seus materiais de apoio pedagógico de forma consciente, para trazer referenciais antirracistas, buscar escritoras negras e escritores negros que atuem no viés da decolonialidade, que reconheçam os valores e as tradições dos povos africanos, dos povos originários e que se afastem do processo escravocrata literário, reforçador e reprodutor de uma história única, eurocêntrica.
A construção de uma história afrocentrada nos ajuda a refletir e nos incluir na contextualização cultural, nas nossas representações ancestrais e contribuem para uma análise política daquilo que nos foi negado, das subalternizações que nos foram impostas e que fizeram as nossas vidas invisíveis também nas ciências e nas artes.
O diálogo pedagógico precisa inserir os nossos mais velhos e as nossas mais velhas na contação de histórias dentro das nossas escolas. Nós somos fortes na oralidade, mas precisamos ensinar as nossas crianças a se tornarem fortes nas escritas. As suas narrativas podem fazer grande diferença naquilo que de fato é significativo para a conquista de espaços de poder.
O medo que nos detém e nos acomoda é a falsa história que nos contaram, dizendo que somos incapazes, que a nossa estética negra está fora dos padrões de beleza, que nós nascemos para ocupar o subemprego e viver silenciados e silenciadas.
Essa é uma trilha muito difícil, mas é desafiadora, é relevante e nos conecta com o mundo das competências e habilidades. O caminho é a leitura e a escrita. Podemos começar contando as histórias dos nossos, desbloquear os ouvidos para compreender as diversas religiosidades, desmitificar os traumas da inferioridade, quebrar paradigmas, acreditar em nós, valorizar o nosso povo e o nosso jeito de viver, de falar, de sorrir. Não importam as críticas que sofremos porque falamos alto, fazemos festas e nos abraçamos para celebrar a vida, esse é o nosso jeito de ser, é a nossa identidade negra, fincada no respeito às diferenças, no amor indistinto, na preservação da natureza.
Nós ainda somos as pessoas que se encantam com o banho de chuva, o mergulho no riacho, a subida em árvores, a comida na casa da vizinha, o sacudimento das folhas sagradas, a pinga na quitanda, a brincadeira de rodas, mesmo que o celular tenha quebrado a nossa privacidade individual, ainda gostamos de moqueca, feijoada, feijão de corda, jabá assado, pirão de azeite, cozido com verduras, beiju na folha da bananeira, pamonha de milho e carimã, café moído no pilão. São tantos sabores e saberes que nos une, mas os nossos livros não falam sobre isso. Quem vai falar? A Lei 10.639/03, está aguardando as nossas ações. Ninguém vai nos dizer que é fácil mudar uma história de domínios com mais de quinhentos anos, mas toda história tem um início na vontade de superação.
O livro, Superando o racismo na escola, organizado por Kabengele Munanga é um caminho inspirador para escolas que desejam de desvencilhar das amarras racistas, essa obra nos diz que “A reflexão sobre o lugar das tradições africanas no redesenho cultural da escola brasileira incentiva professores e professoras a se relacionarem com o mundo de possibilidades que a sociabilidade negra criou, para além das referências e práticas eurocêntricas, cujas reiteração e reprodução na escola brasileira ainda fazem desta mais um problema do que uma solução para os desafios de nossa sociedade.” Portanto, toda escola que deseja se emancipar pelo processo decolonial, precisa inserir no seu projeto político pedagógico os sonhos coletivos da liberdade, da justiça e da igualdade na diversidade.
Um passo de cada vez, tudo milimetricamente pensado, elaborado, disposto, planejado e executado com a disposição de reconhecer os atores e as atrizes do processo, porque sozinho ninguém constroi a escola que liberta.
REFERÊNCIAS
MUNANGA, Kabengele. Superando o Racismo na Escola.
BRASIL. LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.
ALVES, Gilberto Luiz. Educação no campo, recortes no tempo e no espaço.
ALEIN, Kangni. Escravos.