Monumentos: da construção à destruição

Nos últimos dias, ao lado das manchetes sobre as Olimpíadas de Tokyo, um fato ocorrido no Brasil chamou a atenção: um incêndio provocado contra a estátua do bandeirante Borba Gato (1649-1718), localizada no distrito de Santo Amaro, em São Paulo. A obra, de autoria do escultor Júlio Guerra e com mais de 10 metros, foi inaugurada em 1963, durante as comemorações do IV Centenário de Santo Amaro. O que motiva a construção de monumentos? Não precisa ser um especialista para saber que monumentos, desde as mais simples placas às esculturas monumentais, são construídos para celebrar e eternizar determinadas memórias e personagens. O historiador Jacques Le Goff explica o sentido do monumento através da análise filológica:

"A palavra latina monuentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa 'fazer recordar', de onde 'avisar', 'iluminar', 'instruir'. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis [Philippicae, XIV, 41], designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado. Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte" (LE GOFF, 1990, p. 535-536).

Em síntese, monumentos são erguidos desde que os grupos humanos organizaram-se e passaram a querer deixar suas marcas na sociedade, evocando eventos naturais, grandes feitos, guerras, heróis e líderes políticos. Foi por iniciativa do Estado, aliás, com apoio das elites, que muitos monumentos surgiram, pois a ele interessava, e ainda interessa, a preservação e o apagamento de certas memórias.

Manuel de Borba Gato (1649-1718) foi um bandeirante paulista dos séculos XVII e XVIII. Os bandeirantes foram responsáveis pela expansão do território da América Portuguesa, desbravando novas terras, ouro e pedras preciosas e fundando cidades. Além de pedras preciosas, os bandeirantes também procuravam mão de obra, capturando indígenas e negros em quilombos. Borba Gato também participou da Guerra dos Emboabas (1707-1709), em que enfrentaram-se os bandeirantes, que primeiro descobriram metais preciosos no interior e queriam a exclusividade na exploração, e os emboabas, portugueses e brasileiros de outras regiões, que também procuravam por metais preciosos. Vivia-se um contexto bélico, de carnificina e escravidão.

Passados quase três séculos, a historiografia brasileira tradicional construiu um mito em torno da figura dos bandeirantes, destacando suas qualidades de desbravadores e conquistadores. Tomemos como exemplo a síntese de benefícios feita pelo professor Gaspar de Freitas no livro didático Pontos de Geografia e História do Brasil, publicado na década de 1930 para ser utilizado nos ensinos primário, secundário e comercial: "As entradas e bandeiras prestaram muitos serviços ao Brasil; descobriram minas de ouro, diamantes e outras pedras preciosas; aumentaram o território brasileiro muito para Oeste; iniciaram o povoamento dos sertões; abriram caminhos; exploraram os grandes rios; praticaram a navegação; etc" (FREITAS, 1939, p. 148). Gaspar de Freitas cita Borba Gato como um dos principais bandeirantes, ao lado de Fernão Dias Pais Leme, que exploraram Minas Gerais (FREITAS, 1939, p. 147).

Se os bandeirantes foram importantes para o país, o foram ainda mais para o Estado de São Paulo, onde a partir deles construiu-se uma identidade regional, como registra o escritor Euclides da Cunha, de forma romântica, no início do século XX: "O paulista – e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do Sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das bandeiras" (CUNHA, 1984 Apud SOUZA, 2007, p. 156).

Pouco importava, nesse período, se os bandeirantes escravizaram e dizimaram indígenas e negros. Isso se torna um mero detalhe em meio a inúmeros feitos heroicos que trouxeram inúmeros benefícios para o país. Era esse o discurso laudatório na época em que o monumento a Borba Gato foi construído. Fabricavam-se heróis que estabeleceram, no passado, as bases do nacionalismo e, nos casos dos bandeirantes, do regionalismo paulista.

Nas décadas seguintes, sobretudo as de 1970 e 1980, a historiografia brasileira passou por profundas transformações. Certas análises começaram a ser questionadas e os processos históricos passaram a ser estudados de forma crítica. O discurso laudatória deu lugar às relações dialéticas, aos embates entre vencedores e vencidos, sendo valorizado, agora, o protagonismo destes últimos. Indígenas, escravos, mulheres e pobres ganharam voz. As ações dos bandeirantes passaram a ser vistas como violentas e sanguinárias, sendo responsáveis pela morte de milhares de pessoas. Outros estudos, no entanto, passaram a destacar os pontos positivos e negativos das bandeiras. Assim o fizeram os historiadores Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo:

"As bandeiras contribuíram significativamente para ocupar e povoar o interior do Brasil, fundando povoados, criando vilas e dando início à exploração mineradora. Por outro lado, dizimaram muitos grupos indígenas e submeteram-nos à escravidão. Sua atuação, contudo, foi decisiva na consolidação da presença portuguesa além do tratado de Tordesilhas, ampliando consideravelmente as fronteiras da colônia" (VICENTINO E DORIGO, 1997, p. 128).

Nos últimos anos as homenagens a personagens da História do Brasil ligados à escravidão indígena e africana e ao Regime Militar passaram a ser questionadas e criticadas. Esses questionamentos e críticas, que se transformam em ações concretas como ataques, ganharam impulso após a derrubada, por grupos que se intitulam revolucionários, de inúmeros monumentos históricos na Europa e nos Estados Unidos. O ataque à estátua de Borba Gato é de autoria do Coletivo 'Revolução Periférica'.

Sem dúvida alguma, nos dias de hoje, seria inaceitável uma homenagem à Borba Gato. Deve-se levar em conta, no entanto, que sua estátua foi erguida há quase 60 anos. Vivia-se outro contexto, como foi mostrado na pequena discussão historiográfica acima. Isso justifica alguma coisa? Claro que não, pois se assim fosse, teríamos que contextualizar e tentar ver com "bons olhos" períodos obscuros de nossa História, como Nazismo, o Fascismo e o Apartheid. Mas antes de sairmos derrubando e incendiando estátuas que, em sua maioria, foram erguidas há pelo menos 50 anos, devemos nos questionar sobre o seguinte: Quais as relações da população com essas obras? Qual o impacto delas em suas vidas? Elas sabem quem são os homenageados? Duas gerações de paulistas conviveram com a estátua de Borba Gato, transformando-a em símbolo desse distrito de São Paulo. A Mestre em Ciências Humanas Márcia Maria da Graça Costa e a historiadora Alzira Lobo de Arruda Campos, após analisarem a estátua de Borba Gato como um elemento de memória e identidade de Santo Amaro, concluíram que

"Trata-se, portanto, de um problema ideológico que deforma a realidade e manipula a fim de passar mensagens aprazíveis à própria identidade. Assim, a imagem do bandeirante foi falseada fazendo com que ele, de um predador de homens, se transformasse em um herói destemido ao qual se deveria a extensão das fronteiras do Brasil, além do hipotético meridiano de Tordesilhas" (COSTA E CAMPOS, 2019, p. 50)

Se fizéssemos, em Manaus, um questionário perguntando das pessoas quem é o homenageado com a estátua da Praça da Saudade, possivelmente poucos saberiam responder. Mas se perguntássemos se seriam a favor de sua demolição, a resposta, sem dúvida, seria não. Por mais que as pessoas não conheçam a História por trás do monumento, elas criam, através dos anos, uma relação com ele, relação essa de memória afetiva, pois aquele espaço marcou a vida das pessoas de diferentes formas.

A população vai continuar sendo expectadora das mudanças ou será convidada a participar delas?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

COSTA, M. M. G,; CAMPOS, Alzira L. de A. A Estátua de Borba Gato: Memória e Identidade de Santo Amaro. Veredas - Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas, v. 2, p. 34-54, 2019.

FREITAS, Gaspar de. Pontos de Geografia e História do Brasil. 150° ed. Rio de Janeiro: Gráfica Sauer, 1939.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

SOUZA, Ricardo Luiz de. A Mitologia Bandeirante: Construção e Sentidos. História Social, Campinas, n° 13, p. 151-171, 2007.

VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.