A PRINCESA RUSSA: SOB O SIGNO DO DIVERSO E DA IDENTIDADE PLURAL

Prfº Me. Arivaldo Leandro da Silva Monte (EMPJF)

Profº Dr. Derivaldo Santos (UFRN)

RESUMO

O conto move-se no plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal. Eis como Julio Cortázar, em Valise de Cronópio define o estranho mundo desse gênero narrativo capaz de transmitir essa alquimia secreta de explicar a profunda ressonância que ele tem com a vida. Em face disso e das reflexões de Antonio Candido acerca da personagem de ficção, bem como das idéias de Glissant sobre o pensamento rizomático, o presente trabalho faz parte de uma pesquisa, ainda em andamento: ―Memória, história, e utopia na literatura africana de expressão portuguesa: a ficção do moçambicano Mia Couto. Para essa comunicação, a nossa investigação focaliza o conto A Princesa Russa, presente em Cada Homem é uma Raça, objetivando analisar como o mundo que se move nessa narrativa aponta para a diversidade étnica e para a pluralidade cultural da África. O conto de Mia Couto é, pois, uma exposição do múltiplo numa celebração do diverso e do heterogêneo, reivindicação de identidades contraditórias como representação da complexidade da existência.

Palavras-Chave: Princesa Russa, Mia Couto, literatura africana.

O conto move-se no plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal. Eis como Julio Cortázar, em Valise de Cronópio, define o estranho mundo desse gênero narrativo capaz de transmitir essa alquimia secreta de explicar a profunda ressonância que ele tem com a vida. É sob esse ponto de vista que nos ocupamos da análise de A Princesa Russa, narrativa que integra o livro de contos Cada Homem é uma Raça, de Mia Couto (2005).

O mundo que se move nessa narrativa aponta para a diversidade étnica e para a pluralidade cultural da África, assinalando o imperativo desejo de reivindicação de identidades contraditórias como representação da complexidade da existência.

Para início de conversa, passamos a recontar o conto: em um confessionário, Fortin (encarregado-geral) relata parte de sua angústia vivida em Manica, quando então se apaixona por Nádia, que tem por princesa. Nádia é casada com um russo dono de uma mina de ouro, motivo pelo qual vieram para Manica. A princesa, enclausurada em sua própria casa, e sem a atenção do marido, sente-se abandonada, solitária e acaba por fazer amizade com Fortin que vira seu confidente. Ele igualmente solitário se apaixona, mas luta por controlar seus sentimentos, já tão atormentados pelas angústias de seus ―pecados de muito tempo‖. Nádia adoece, começa a imaginar um amante que viria buscá-la, como um príncipe que salva a princesa nos contos de fadas e vivem felizes para sempre, escreve cartas que confia a Fortin para entregá-las, mas são queimadas pelo próprio portador. Sua neurose a leva para a estação à espera do suposto amante, Anton. O encarregado a acompanha, desvia o caminho e, vendo que a princesa piorava de sua enfermidade, deixa-a dormindo na relva e vai em busca de socorro. Infelizmente a ajuda chega tarde e a princesa morre nos braços do marido, pronunciando um único e último nome, ao olhar para o marido, Anton.

Mia Couto nos oferece uma possibilidade de leitura interna e externa a respeito do sujeito e de identidade, tanto no plano do indivíduo quanto no plano da cultura. Nos dois planos, o uno se fragmenta em aspectos da humana condição, como se viesse à expressão da narrativa a unidade pasmada em matéria múltipla. Nesse sentido, a ficção coloca à luz, não somente os problemas de ordem físicas e tangíveis, sociais e culturais, mas também aqueles que guardamos no subconsciente e no inconsciente e que emanam da ordem psicológica, ideológicos e morais, teimando em querer emergir, contraditoriamente, como forma mutável da identidade. É preciso ter presente o seguinte: a personagem de ficção (CANDIDO, 2007) se apresenta mais verdadeira para o leitor que o próprio ser, pois o caráter ficcional situa a personagem para além da ordem das coisas e dos códigos sociais. Essa ordem impede, habitualmente, que o sujeito viva, de forma plena, a sua própria condição existencial mediante a sua realidade circundante, por isso o ser de ficção é mais livre e mais verdadeiro. A realidade só se apresenta sob uma perspectiva unilateral e estereotipada, enquanto a personagem se revela de interior e de espírito naquilo que é invisível aos olhos da alma. Tal estado de coisas nas narrativas ficcionais tem provocado certa complexidade, na medida em que dá a ver nossos possíveis, portanto contesta quanto se efetiva para além da realidade aparente. A esse respeito, é elucidativa a afirmação de Antonio Candido (2007, p. 55):

“A personagem é um ser fictício, - expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial.”

O narrador (Fortin) é o responsável majoritário pela transposição das experiências vividas durante a trama do conto. Nas atitudes do narrador-personagem se disseminam marcas de um homem angustiado pelos erros que cometeu no passado, mas parece querer distante de manifestar marcas de seu arrependimento. Movidos por contradições, ele, de uma só vez, confessa os erros cometidos e não tem certeza do perdão, fala com Deus, mas acha que não é ouvido, reza para se salvar do inferno depois que morrer, mas acredita que o inferno é aqui mesmo na terra, expondo com isso o peso da existência.

A complexidade no entorno do narrador-personagem, tendo em vista que ele alimentado por sentimento de dor, sofrimento, paixões recolhidas, mudanças de atitudes e comportamento, vai se abismando em direção a um movimento inacabado, como quem assinala a condição mutável do homem e da vida. Nessa direção, a narrativa aponta para um tipo de identidade que só se afirma no espaço de relações permanentes, em pontos de contatos sempre intercambiáveis. Sob esse ângulo de visão, é pertinente o que afirma Stuart Hall (1999, p. 12) sobre os mecanismos de identificação no mundo contemporâneo: ― O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas.

Fortin não se limita à periferia dos acontecimentos. Ao contrário, ele participa ativamente como protagonista da história, conflituoso, angustiado com seus pecados e desmandos, covardia, o que se evidencia na omissão de ajuda, no uso de prepotência com seus irmãos de cor e delação daquela que lhe tem como amigo, por isso era odiado por todos os criados. No plano individual, trata-se de um sujeito com identidade flutuante, móvel, contraditória, que está para sempre abalado, longe, portanto, de se constituir como sujeito prenhe de verdades absolutas. No plano coletivo, esta identidade nos remonta a eras passadas em torno da história social africana, diz respeito a um período de exploração das minas de ouro em Manica, espécie de denúncia sutil do trabalho forçado na escravidão do homem pelo homem, ― exploração do homem pelo homem, homo homini lupus (FREUD,1969).

O conto, tornando visível um mundo maquinado pela opressão, dá a ver, no contexto de exploração do ouro e do escravo africano, a imigração russa, as minas de ouro, a estação como símbolo de progresso. Além disso, as questões mais pontuais, tais como: a senhora branca e rica, o senhor branco e rico, o negro burro e escravo, a divisão de classes sociais, o preconceito, o sentimento de inferioridade, integram o conto não como afirmação de estereótipos, mas como possibilidade de reflexão, que é oferecer novo direcionamento à vida em conjunto. Sob esse aspecto, cabe aqui lembrar o caráter de convergência e heterogeneidade da narrativa, ao afirmar a coexistência dos contrários, como se nenhum dos termos pudesse se afirmar sem o outro.

Tal coexistência dá ao conto um estatuto de narrativa paradoxal, pois comporta o diverso e o imprevisível, porque múltiplo. Tudo colocado em um único espaço urbano, com um rápido flash na mina de ouro, como se quisesse chamar a atenção do leitor para os signos da modernidade, com elementos de urbanidade, e da tradição, com elementos da vida cultural africana. É através de Fortin que vemos esse mundo sincrético de cores, de vozes, de línguas e toda uma complexidade, reivindicando sua diversidade, sua multiplicidade cultural, sua condição humana de sujeito mutável. O mundo contemporâneo, como bem lembra Hall (1999, p. 9): ― (...) está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais, questão que aponta para o dilaceramento do sujeito e das vozes da África.

Segundo ainda Stuart Hall, desde o postulado de Descartes, em cujo sistema filosófico ocupava o centro da mente e das certezas – Penso, logo existo - a concepção do sujeito racional, pensante e consciente, ocupou o centro do conhecimento, tem sido pensado como ― sujeito cartesiano‖. Ao contrário desse postulado cientìfico em torno do sujeito, Stuart Hall (1999, p. 39) defende a concepção do sujeito humano como tendo uma identidade mutante, móvel, constituída provisoriamente. Diz ele:

“A identidade surge (...) de uma falta de inteireza que é ´preenchida` a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros. Psicanaliticamente, nos continuamos buscando a ´identidade` e construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude.”

A formulação que Mia Couto dá à personagem Fortin transcende a imagem centrada do homem racional, na medida em que se configura pela instabilidade, cada vez mais marcado pelo assombro da contradição e da fragmentação, celebrando claramente a crise de identidade por que passa o homem moderno. A certa altura da narrativa, diz o narrador: ― tenho duas pernas: uma de santo, outra de diabo. Como posso seguir um só caminho‖6 . Nesse sentido, a personagem evidencia o postulado das contradições da existência, congregando em si, em plano simultâneo, o sagrado e o profano, Deus e o diabo. Não é fuga, é aproximação da realidade através da clareza humana, da elucidação, do mostrar, já que o narrador não faz questão de esconder o rosto, por isso nos chama a atenção a todo o momento para lembrar, em confissão, que está falando com um padre que também é negro:

“Desculpa senhor padre, não estou joelhar direito (PR, p.73); porque as minas, padre, eram do tamanho de uma poeira (idem, p.74); os criados me odiavam senhor padre (idem, p.74);contudo, padre, contudo: o senhor acha que Ele me foi justo?(idem, p.75); o senhor também é negro.” (idem, p.78).

A princesa Nádia tem um papel importantíssimo na vida de Fortin, sem a presença dela não seria possível construir a história, pois todo o drama e angústia do encarregado-geral é uma tomada de consciência que se inicia com a presença de Nádia em sua vida. Se, de início, Fortin aparecia como um homem prepotente, mostrando-se algoz dos sofrimentos dos criados, roubando-lhes os feriados, no final do conto deixa desenhar o seu quadro de mudanças. De homem insensível ao outro, aprende o significado da palavra perdão, sensibiliza-se com o drama da princesa, mesmo dizendo que esse seu ajoelhamento é em parte fingimento, mas não há como negar que seu coração fora atingido pelas garras da sedução e do amor: ― mas eu nem me importo: lá, nas cinzas desse inferno, eu hei de ver a marca desses passos dela, caminhando sempre ao meu Lado (PR, p.87).

A partir disso, podemos compreender como sendo os dois lados internos transformadores e humanizadores do encarregado-geral: o primeiro é marcado pela pegada viril e masculina, pelo aspecto característico da personagem, aquilo que está mais aparente e realça sua personalidade que teria a imagem de um homem embrutecido pelas circunstâncias da vida, da luta pela sobrevivência, que leva consigo o peso da cor da pele, aquilo que precisa primeiro existir para ser, se sobrepor à essência da moral dos brancos, onde sobreviver seria a palavra de ordem.

O segundo aspecto interno é mais complexo e profundo para Fortin, assim vemos, porque avalia a pequena pegada feminina como algo estranho ao seu ser. São sentimentos que afloram em um mundo desconhecido, por isso precisa transcender os limites da consciência para se reencontrar consigo mesmo, como gente, como ser que pode amar e esquecer a dor do existir. A confluência desses momentos na existência de Fortin é reveladora de quem se move por contradições permanentes. Diz ele: “― Ao princípio, não gostei. Suspeitei que sentisse pena, compaixada, só mais nada. Mas, depois, me entreguei naquela doçura dela, esqueci a dor no pé. Parecia aquela perna ambulante já nem era minha.” (PR, p.77).

Essa mudança de comportamento assinala a questão da identidade mutável da personagem, pois o postulado aí não é em torno de certezas perenes e absolutas, mas de alguém que, ao tomar contato com o outro, portanto com uma consciência de mundo diferente do seu, vai revelando amplas possibilidades de mudanças. Por conseguinte, opta pelo não conflito de consciências culturais, considerando que Fortin e a princesa integram valores culturais diferentes. Sendo assim, ele é tomado de assalto por uma certeza que levará para o resto de sua vida, a de que a princesa estará sempre ao seu lado. Nesse aspecto, a cor da pele não sufoca o que é profundamente humano, ao contrário, sugere a afirmação da humanidade do homem, ou o que lhe cabe como sendo verdadeiramente humano. Fortin é o resultado do aprendizado pela convivência, na coexistência dos contrários, ele encarna os duplos do sujeito, de modo que as suas contradições consistem numa expressão de identidade que está para sempre abalada.

As suas contradições são representações de um tipo de sujeito que não se sustenta como fixo e estável, e sim como sujeito que só se afirma como matéria múltipla, constituindo em contatos intercambiáveis, porque feito de mudanças e de movimentos infindos. Peço perdão de eu não ser aquele homem que ela esperava. Mas esse é só um fingimento de culpa, o senhor sabe como é mentira esse meu ajoelhamento. Porque enquanto estou ali, frente à campa, só lembro o sabor do corpo dela. Por isso lhe confesso este azedo que me rouba o gosto da vida. (PR, p.86).

Quanto à princesa Nádia podemos dizer que ela representa o lado oposto de Fortin, não exatamente uma antagonista na acepção da palavra, mas aquela que mostra o lado torto do encarregado-geral, revelando-lhe um pouco de compreensão, e desperta-lhe o desejo humano do amor. Esta personagem não é menos complexa que a primeira, ela atinge um grau de introspecção a ponto de desenvolver uma espécie de esquizofrenia, perdendo o contato total com a realidade. Esta fuga etérea é fruto de um mecanismo de defesa, encontrando uma resposta para as repressões do subconsciente, algo que se torna intolerável e foge do controle do mundo legislado pela razão.

O percurso dos personagens de Mia Couto alude para uma complexidade una que transita para o universal. Complexidade esta, que pode perfeitamente estar alinhada aos aspectos culturais africanos, mas que se encontra fundamentada nos pensamentos do homem enquanto sujeito pertencente ao mundo em sua perene vacilação. Em outras palavras, o escritor pode estar nos dizendo que as particularidades individuais e conflituosas definem a identidade plural da cultura africana, em toda a sua complexidade tal como outras identidades culturais, salvaguardando aí as especificidades que lhes próprias. Assim, o conto se constrói como movimento hostil à ordem das coisas, dando não à prepotência do pensamento de raça única, a fim de celebrar o múltiplo, as diferenças.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio [et al.] A Personagem de ficção. 11 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007.

COUTO, Antonio Emilio l. A princesa russa. In:_____. Cada homem é uma raça. 9 ed. Lisboa: Caminho SA, 2005, p. 69-87.

CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. Trad. Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 147-163.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969 (vol XXI)

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999

Leandro Dumont e Derivaldo dos Santos
Enviado por Leandro Dumont em 15/04/2021
Código do texto: T7232630
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