OLHOS DA ÁFRICA: DOIS POÇOS BEBIDOS PELO SOL
Pof. Me. Arivaldo Leandro da S. Monte
Prof. Dr. Derivaldo dos Santos(UFRN)
O conto “O pescador cego” traz a história do pescador Maneca Mazembe que, perdido em alto mar e sem o que comer, arranca os próprios olhos para servir de isca aos peixes e matar a própria fome. No entanto, contrariamente ao que se poderia imaginar, depois de cego, o pescador encontra o caminho de volta para casa mais rapidamente. “maneira como ele perdeu as vistas é assunto de acreditar” (p. 93). Ao regressar, Mazembe se torna mais sensitivo e perceptivo, sua acuidade sensorial é redobrada e o mundo começa a ter um novo sentido em sua vida. A escuridão interior transforma seu modo de pensar. Dentro de sua casa sente o seu macho estatuto ameaçado pela impossibilidade de pescar e de ter que ser alimentado pelas mãos de uma mulher magra e submissa: “Era cego (sic) mas não perdera seu macho estatuto” (p.96). Assim, ainda não há uma mudança significativa em seu comportamento, e somente ao final do conto vamos observar uma transformação mais profunda na essência do homem, quando então reconhece em Salima (sua esposa) “a esperteza das mulheres para amansar os homens, converter-lhes em crianças, almas de insuficiente confiança” (p.100) e permite que sua mulher entre em alto mar como pescadora.
Ao transformar as coisas da vida real em uma realidade outra, o da ficção literária, não estaria o autor nos fazendo ver o invisível? Antonio Candido em A personagem de ficção (2009) vai chamar nossa atenção para a formação paradoxal do personagem: “De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo,” (p.55). E essa criação literária não só pode existir, mas também exprimir uma realidade social carregada de sentimento. Pode ainda, muitas vezes, ser mais humanamente expressiva que a própria realidade. Para Sócrates nós “só vemos aquilo que cremos” e no mito da caverna de Platão o que se vê são sombras deformadas. Certo mesmo é que, de uma forma ou de outra, estamos sempre vendo o que não existe ou o que é somente visível aos horizontes da primeira vista.
Falo das coisas invisíveis porque no conto “O pescador cego”, Mia Couto usa os componentes da realidade histórica e social africana como elemento de equivalência simbólica, particularmente da cultura oral e da história. Depois Transforma esses componentes em estética de ficção e, por fim, lhes acrescenta aspectos de denúncia e crítica social. Dessa forma a memória é apreendida no presente e repensada no futuro e a oralidade é exercida pela força da narrativa, conservando a história e a oralidade cultural da tradição africana.
Neste ponto não há uma intenção do autor em transformar a memória e suas tradições em “história objetiva”, mas de preservar a cultura identitária de seu povo, seguramente a oralidade, através da “história ideológica”. É Le Goff (2003) quem nos revela a importância desta distinção entre história objetiva e história ideológica:
“Nadel distingue, a propósito dos nupes da Nigéria, dois tipos de história: por um lado, a história a que chama “objetiva”, que é “a série dos fatos que nós, investigadores, descrevemos e estabelecemos com base em certos critérios ̳objetivos‘ universais no que diz respeito à suas relações e sucessão” (1924, ed. 1969, p.72), e, por outro lado, a história a que chama “ideologia”, “que descreve e ordena esses fatos de acordo com certas tradições estabelecidas” (ibidem). Esta segunda história é a memória coletiva, que tende a confundir a história e o mito. E esta “história ideológica” volta-se de preferência para “os primórdios do reino”, para “a personagem de Tsoede ou Edegi, herói cultural e mítico fundador do reino Nupe” (ibidem). A história dos inícios torna-se, assim, para retomar uma expressão de Malinowski, um “cantar mítico” da tradição.” (p. 424)
O conto “O pescador cego” é um “cantar mítico‘ da tradição”, na medida em que instiga a preservação da cultura oral moçambicana, preservação feita também de dinamicidade e transformação. Reconstituição do tempo de outrora e sua consequente atualização no presente, eis o que nos instiga a memória.
Segundo a sistematização teórica de Le Goff (2003), a memória é capaz de apreender informações do passado no presente e depois atualizá-las, uma vez que o homem, assumindo funções psíquicas, pode não apenas registrar as suas impressões do tempo, mas colocá-las sob permanente atualização.
“A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete- nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas.” (LE GOFF, 2003, p. 419)
Assim as informações do passado nos possibilitam uma melhor compreensão do presente. De uma maneira ou de outra, estamos sempre lidando com dimensões invisíveis do tempo que quase sempre não estão expressas no texto. Desse modo, na literatura de ficção, devemos estar também preocupados com aquilo que não foi dito, com aquilo que ficou subjacente, com as relações sociais entre passado, presente e futuro. Porquanto, nada disso podemos “ver com os olhos”.
Postas as considerações iniciaremos nossa análise.
O personagem do pescador Maneca Mazembe, provavelmente, nunca tenha de fato existido, no entanto, produz sentimento de vida capaz de traduzir grande realidade. A solidão provocada pelo isolamento no mar e por sua cegueira, que o faz ver o que (Édipo, o principal personagem na peça de Sófocles "Édipo Rei", não pôde ver a verdade, mas um homem cego, Tirésias, a "viu" claramente. Essa nota discute como Sófocles usa a cegueira como um motivo para brincar: como Édipo, conhecedor de sua inteligência, está ignorante e consequentemente cego para com a verdade sobre si mesmo e seu passado. Também mostra quando Tirésias expõe a verdade) antes não via, é motivo que se identifica com o espírito humano, isso porque a solidão é um sentimento universal e, pescar, em muitos momentos é um ato solitário, pode ser mesmo um instante de reflexão. Na história esse momento é também usado para criar imagens estéticas da oralidade africana no jeito do falar: “Não existe melhor aconchego que o corpo, pensava ele. Ou será os bebés (sic), dentro da grávida, sofrem de frio?”; “- já eu nem me apareço”. No jeito de pensar a natureza das coisas e da mulher: “O mar é generoso, mais do que a terra.”, “Salima, que sabia ela? Magrita, sua delicadeza era a dos caniços, submissos, mesmo à suave brisa.” Estas palavras perpassam como flash os pensamentos do pescador, indo de um extremo ao outro num observar constante do próprio interior.
No conto “O pescador cego” a força da oralidade não reside somente na forma estética do linguajar ou da sintaxe, embora reconheçamos alguns marcadores importantes para esse teor. Mas sobre tudo nas coisas fantásticas e inesperadas, no homem que arranca os próprios olhos e se mantém vivo em alto mar, cego ele consegue sair do mar e voltar para casa. Depois uma chuva de gelo nunca antes acontecida cai sobre a praia, e em seguida um cego que, sozinho, constrói um barco, não que isso não seja inteiramente possível, mas não deixa de ser algo difícil de realizar e não muito comum. A oralidade africana exerce nesse texto a faculdade de expressar aquilo que talvez mais pese na tradição da oralidade africana – o ato de simplesmente contar, inventar, “magicar”, “intercambiar experiências”. Porém, essa mesma oralidade não se faz desatenta às experiência de uma transmissão, de uma comunicação de saberes ou mesmo de uma forma de contestação:
“Os mitos, contos, adivinhações, provérbios e enigmas, etc., ainda mal estudados e mal conhecidos, nem sempre constituem simples expressões de valores folclóricos. Eles representam muitas vezes técnicas de memorização e de difusão de um saber ou de uma mensagem.” (SECCO, 2008, p.27).
Através dessa ótica a magia africana nos apresenta uma nova África. A África que conta histórias para dizer algo que ainda não compreendemos, ou seja, para falar da sua memória, não meramente recordando o passado, mas também como possibilidade reescrever o vivido.
Para o pescador Mazembe a experiência da cegueira, que faz mergulhar no interior humano, tem a simplicidade das coisas e a complexidade dos homens, porém, para entender essa simplicidade e essa complexidade é necessário condensá-las em um único universo, o universo humano que se esconde na incompletude do interior de cada homem. É dessa forma que se relacionam simplicidade e complexidade, dois aspectos de uma mesma natureza, que remontam a finitude do homem em um cosmo infinito e universal. Estes são dados de uma dimensão comum encontrados na realidade humana e que, aqui, se organizam na ficção a partir da configuração do personagem Maneco Mazembe. Este é um exemplo de um dos momentos que nos fala Antonio Candido em seu processo da “redução estrutural”: o pescador, que é personagem de ficção, absorve a realidade da vida moçambicana, da sua cultura e da sua história, da complexidade humana, dando vida e sentimento à história de ficção e, ao final, “A personagem vive o enredo e as idéias, e os torna vivos.” (CANDIDO, 2007, p.54)
Mesmo Mazembe não sendo conhecedor de tal consciência, digo, da sua inteira complexidade humana – porque somente uma profunda reflexão sobre o interior humano poderá levar o homem, com sua expressão subjetiva e individual, de volta à unidade com a natureza, lugar-comum, simples e espontâneo que seria a sedimentação do individual com o social – ele, o pescador, é uma equivalência simbólica da realidade africana.
“O pescador, silencioso, percorria os atalhos da alma.” (p.98), procurando na sua simplicidade uma saída que fosse, para a complexidade do espírito do homem, mas “O pescador ficou só, parecia o real ficara ainda mais imenso.” (p.98). Ao procurar sair do isolamento e da solidão Maneca Mazembe encontra-se em um espaço vazio, não há um encontro com o “eu”, o que seria uma prova viva de sua identidade. Agora limitado também pelo desconhecido e pelo medo que o levam a um profundo sentimento de angústia quando, de repente, uma grossa chuva de gelo cai do céu:
“A terra subiu para o céu, pensou. Virando do avesso, o mundo deixava tombar seus materiais. Em angústia de órfão o pescador caiu sobre os joelhos, braços enrolados sobre a cabeça. Ele nem a si se ouvia, senão se notava chamando por Salima, entre soluços seus e gemidos da terra.” (p.99)
Através da solidão do pescador cada vez que olhamos para dentro de nós mesmos e, refletimos sobre o nosso interior, podemos encontrar uma tempestade de pensamentos conflituosos, na verdade, estamos perscrutando um pedaço do cosmo ainda completamente inexplorado, como pensava Mazembe: “Virando do avesso, o mundo deixava tombar seus materiais”. Assim é ‘o universal humano”, aquilo que tem de mais comum entre todos os homens, a sua subjetividade que, ao mergulhar no espírito humano, compromete-se com o social, mesmo sem uma real e total intenção. Dessa maneira a cosmogonia da subjetividade se faz entender, paradoxalmente, individual e universal, dentro de um só homem, um uno entranhado de matéria múltipla.
Essas observações sobre o “universal humano” são de relevante importância para a literatura de ficção, pois parte da compreensão de que tudo depende do nosso olhar, da maneira como vemos as coisas a nossa volta, do conhecimento prévio e do conhecimento contextual que compõe a história, e também de tudo aquilo que compõe o nosso interior: “O olhar ensina um pensar generoso que, entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e prossegue. O olhar, identidade de sair e do entrar em si, é a definição mesma do espírito.” (CHAUI, p.61).
É assim que encontramos a relação da atitude drástica do pescador Maneca Mazembe, tentando reencontrar sua identidade e (re)definir seu espírito junto aos mitos africanos. Ingenuamente poderíamos perguntar por que o pescador arrancou os próprios olhos, e não outra parte qualquer do corpo, as orelhas, por exemplo. Ora, se assim o fizéssemos estaríamos, aqui, destituindo o personagem de seu mito e tentando transpô- lo para a vida real, quando na verdade o que interessa mesmo é a compreensão do universo humano, algo que não está escrito, mas que podemos ver através da solidão de Mazembe ao perder os olhos: “Assim, em passos líquidos, ele aparentava buscar seu completo rosto, gerações e gerações de ondas.” “passos líquidos” são pegadas que desaparecem para sempre, uma identidade que jamais será encontrada. Um povo que não domina e perde a memória não tem perspectivas de construção de um futuro melhor é o que nos adverte Le Goff (2003):
“Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.” (p.422)
Sob esse prisma, a ideia central que permeia a narrativa reside em preservar as verdades da oralidade da África, suas crenças e seus costumes, histórias e fantasias, tal qual elas se apresentam no ato de contar na cultura africana a fim de garantir a manutenção de sua memória. Ao mesmo tempo em que a trama da narrativa aponta para os aspectos gerais da realidade social africana, parece conjugar esses mesmos aspectos em componentes internos, como se os instituísse como “princípio de generalização”.
No conto, “O pescador cego”, a perda dos olhos do pescador nos leva gradativamente a aspectos cada vez mais profundos da cegueira, pois sem os olhos aprendemos a “ver” e não mais a “olhar” no sentido lato da palavra, como nos esclarece Marilena Chaui5. Já esta observação nos levaria à alma humana, ao conhecimento interior. Observe que no início do conto o narrador nos chama a atenção para a seguinte reflexão: “Porque (sic) nos preferimos nessa escuridão interior? Talvez porque o escuro junta as coisas, costura os fios do disperso.” (p.93) e é dessa forma que Mazembe vai tentar se encontrar, “costurando os fios do disperso”.
O escritor age como se quisesse (re) inteirar a imanência da simples arte do contar, e nada mais. Como em um passe de mágica em que surge a África contadora de estórias, da infinita oralidade, do inexplicável, “maneira como ele perdeu as vistas é assunto de acreditar” (p. 93), e pronto, tudo acontece. E é assim mesmo como observa Secco (2008):
“O magnetismo exercido pelas literaturas de Angola e Moçambique, das quais ora nos ocupamos, advém, pois, de várias formas de magia. Uma dessas resulta, em parte, da presença da oralidade reatualizada, de forma inventiva, por escrituras que se querem, simultaneamente, som,corpo e letra.” (p.26).
A oralidade da África é, pois, mágica e inventiva, requer reflexão e, sobretudo, imaginação e fantasia, coisas que fazem parte do cotidiano do povo africano, como contar a história de um pescador cego. Esso está relecionado com o ato de ver e conhecer o interior, enxergar com profundidade de espírito, ver o que está além das palavras, o conto todo é uma metáfora. Acrescente-se aí a leitura de denúncia social que sempre se configura na ficção de Mia couto – como veremos mais adiante.
Maneca Mazembe encontrou o caminho de volta para casa apenas usando o esforço físico dos braços, tudo isso depois de perder os olhos e ficar completamente cego. Uma volta do sujeito fragmentado: “Sua chegada espalhava alegrias, seu aspecto semeava horrores.” (p.95), o antagonismo descritivo da sentença já revela a perda da identidade. No personagem a memória e o esquecimento são duas faces da mesma moeda. Mazembe chega, mas não é mais o mesmo. Através do mar o colonizador levou embora muito da memória africana e deixou para trás grande rastro de horror.
A metáfora do pescador cego tem ainda uma forte ligação com uma célebre frase de Leonardo da Vinci “os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo”. Sem os olhos a alma ficará encarcerada no corpo até a morte e a partir daí, quais seriam as referências do mundo exterior e interior? É assim que Mazembe nos é apresentado pelo narrador ao regressar de sua jornada: “Mazembe regressa despido daquilo que mais nos constitui: os olhos, janelas onde nossa alma se acende.” (p. 95). A alma aqui é metáfora do humano no homem, onde se revela os recônditos mais profundos do ser. Nesse sentido, arrancar os próprios olhos simboliza não apenas uma saída possível para o pescador, considerando as suas circunstâncias adversas, mas também nos remete para a compreensão de um sujeito fraturado, fragmentado, pois a extração dos olhos parece ser a supressão da alma. Ao perder os olhos, o pescador tem a alma aprisionada, solitária e angustiada, ainda que seja também sinal de sua salvação.
Portanto, ver exige maior profundidade de conhecimento e reflexão. Olhar é perceber a superfície, é ter contato com a aparência do corpo, e a experiência desse contato muitas vezes se resume apenas em matéria e forma externa. Mas, ao perder os olhos, voltamo-nos para nosso interior: “Só ao término da visão – de minha ausência de mim mesma – fecho-me sobre mim.” (CHAUI, 1988, p. 60). Dessa maneira a personagem Maneca Mazembe nos quer falar do espírito humano, do metafísico, da alma e da essência do homem, que são coisas que transcendem a matéria, a aparência, e estão além do olhar humano. Com isso, aprendemos mais com a cegueira de Maneca Mazembe, observando a sua solidão, do que o próprio personagem com a sua desenvoltura limitada dentro da narrativa. No início do conto Mia Couto já leva o leitor a essa direção do interior humano:
“ Vivemos longe de nós, em distante fingimento. Desaparecemo-nos. Porque (sic) nos preferimos nessa escuridão interior? Talvez porque o escuro junta as coisas, costura os fios do disperso. No aconchego da noite, o impossível ganha a suposição do visível. Nessa ilusão descansam os nossos fantasmas.” (p.93)
Com a leitura metafórica do olhar o conto pode estar chamando nossa a atenção para alguns pontos cruciais de reflexão: à medida que Mazembe ficava cego, sua fome ia sendo saciada, e a cegueira total o salvou da morte, o que implica dizer que a perda dos olhos não nos impede de pensar, refletir, encontrar soluções para a vida. Com a perda de um dos olhos “Maneca amoleceu até sonecar.” (p.95), mas com a perda dos dois olhos “seus braços reganharam competência. Sua alma regressara do mar.” (p.95). Estamos habituados a medir nossa força física pelo que vemos, e nos desestimulamos com as adversidades que visivelmente são superiores a nós, mas quando cego Mazembe desconheceu essas adversidades e começou a remar sem medo do mar, ou da distância que o separava do continente, e isso o salvou, antes, porém, Mazembe “fazia fé na espera”, “Mazembe queria remar, desconseguia” (p.95), completamente sem esperança:
“A tempestade assustara o pequeno concho e o pescador se findou, invindável. Passaram as horas, chamadas pelo tempo. Sem rede nem reserva, Mazembe fez fé na espera. Mas a fome começou a fazer ninho em sua barriga. Decidiu lança linha, já sem esperança.” (p. 93).
Quando “O escuro encerrou o pescador.” foi justamente o momento em que ele pegou o maior peixe de sua vida e que conseguiu encontrar o caminho de volta para casa. Esta metáfora, que mais parece um ponto final na vida de Mazembe, para que ele possa inaugurar nova vida, leva o leitor a pensar que o pescador sofria de uma cegueira ainda maior quando tinha os olhos que o impedia de prosseguir, tentando encontrar saídas.
Ao retornar desfigurado, Mazembe foi recebido com alegria pelo povo. E foi assim que “Todos lhe queriam ver, ninguém lhe queria olhar.” (p. 95). Estas questões, que na verdade são evidências para uma leitura do interior humano, nos fazem crer que os olhos são, na verdade, meios canalizadores que nos conduzem para a alma do homem. Em que situação nós temos que perder os olhos para sobreviver? dipo furou os olhos para ver a verdade. Pois tudo Mazembe consegue depois de ficar completamente cego: pesca, se alimenta, rema, e volta para casa. Ao perder o primeiro olho, o pescador tinha a seguinte visão sobre sua esposa: “Salima, que sabia ela? Magrita, sua delicadeza era a dos caniços, submissos, mesmo à suave brisa. Nem se entendia que força ela tirava de si mesma quando erguia bem alto o pau do pilão. E no embalo de Salima, Maneca amoleceu até sonecar.” (p. 94). Portanto, fraca e sem conhecimento das coisas do mundo, Salima nada podia oferecer à vida. E em várias passagens o pescador não aceita que Salima assuma o remo do barco em uma pescaria em alto mar, com medo que isso afete o seu macho estatuto dentro de casa. Dizia ele: “– Nem que seja eu te amarrar no meu pé, Salima: tu não vais no mar.” (p. 97). Ao final do conto, Mazembe muda seu modo de pensar sobre Salima e aceita que ela vá pescar: “Leva esses remos. Lá, na praia, está um barco que eu fiz para você sair na pesca. E prosseguiu: ela que saísse, baixasse seus mandos naquele barco. Nem se preocupasse consigo. Ele ficaria na beira- água, dedicado aos despojos do mar.” (p. 100). A mudança de atitude em relação à Salima talvez seja a maior prova de aprendizado espiritual que de maneira real atuou na formação do pescador, pois a mudança de comportamento implica, nesse contexto, um melhoramento do espírito humano. Mazembe tornou-se humanamente mais flexível e mais sensível para a vida.
A memória do povo africano está ligada estreitamente ao mar, ao regresso, ao silêncio, a escuridão, a solidão, a cegueira, que são marcadores articulados ao processo de roedura do continente africano. Particularmente, o mar do leste do continente, pois Moçambique foi considerado território estratégico na rota das Índias. Por ali, milhares de negros foram traficados. O mar foi palco dos horrores da escravidão durante séculos. Pelo mar seu povo via seus entes sumirem para nunca mais voltar. E aqueles que ficaram em terra firme foram da mesma forma vítimas da opressão. Ficaram cegos pela aculturação que lhes fora imposta, uma cegueira provocada pelo longo processo de exploração e colonização. Este é o momento em que a memória pretende apreender o passado para modificar o futuro e não deixar que este episódio da história volte a acontecer: “A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual reevocamos as coisas passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com as passadas” (LE GOFF, 2003, p.447).
Também os países colonizadores fecharam os olhos durante décadas aos países da África. Depois disso o continente africano ficou isolado do mundo, continuando a sofrer dos efeitos do preconceito, do sectarismo étnico e religioso. Uma solidão que mais tarde o transformaria no continente mais pobre do mundo.
A África foi silenciada de várias formas, mas principalmente pela falta de liberdade e pelo preconceito. Não me admira que Maneca Mazembe não quisesse que Salima entrasse no mar para pescar “A identidade daquela mulher, no silêncio, se haveria de perder.” (p. 100), ou que ele tenha perdido os olhos em alto mar e regressado cego, deixando lá um pouco da sua identidade: “- Faz conta ando a procurar esses meus olhos que perdi.” Pois quem atravessasse o mar, poucas ou nenhuma chance teria de regressar. Maneca Mazembe é mais que um pescador, ele simboliza uma nação inteira, com todas as suas marcas e equivalências históricas e sociais, ele é parte de um processo de reconstrução da própria identidade e voltou para virar a estória do avesso: “Virado do avesso, o mundo deixava tombar seus materiais.”
Maneca Mazembe está dotado de uma carga simbólica individual e universal, posto que o seu estado de solidão e angústia pode ser algo inerente à humana condição, como também observamos a forte carga de oralidade na arte do contar, privilegiando os elementos fantásticos. No que se refere à memória, podemos dizer que ela reúne elementos do passado através do simbolismo da cegueira do personagem, e denuncia certo sentimento opressor no presente, provocado pelos longos anos de exploração colonial, o que afetou profundamente as relações culturais africanas, fazendo-nos refletir e desejar algo diferente no futuro.
Os dois aspectos encontrados em um só personagem é o resultado de uma análise baseada na redução estrutural de Antonio Candido, onde os elementos culturais da oralidade se organizam de tal maneira que a realidade e a ficção possam garantir a existência de algo que não existe. É dessa forma que Mia Couto dá a ver esse processo de formação e transformação cultural dentro do conto “O pescador cego”. Mergulhando entre o mítico, o mágico e a realidade social, valendo-se da força do personagem das lendas moçambicanas, acrescentando-lhe valores culturais que invocam a realidade social e a memória coletiva – somam-se aí, as múltiplas identidades culturais, resquícios de memórias, de ritos, lendas, festas, danças, causos, imagens, símbolos, mitos, todos ligados a uma tradição num esforço para preservar a memória coletiva africana nas narrativas de ficção.
REFERÊNCIAS
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CHAUI, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In.: O olhar. São Paulo: Companhia das letras, 1988, p. 31-61.
COUTO, Antonio Emilio L. O embondeiro que sonhava pássaros. In: Cada homem é uma raça. 9 ed. Lisboa: Caminho SA, 2005, p. 69-87.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. S. Paulo: Selo Negro, 2005. p. 11-44 e 520-612.
HOLANDA, Lourival. Sob o signo do silêncio. Vidas Secas e o Estrangeiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.
LE GOFF, Jacques. Memória. In História e memória; trad. Bernardo Leitão [et al] 5 ed. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 2003
LÖWY, Michael. Ideologia. In: Ideologias e Ciências Sociais. Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortrez, 2006.
SCHWARZ, Roberto. Pressupostos, salvo engano, de Dialética da malandragem. In.: . Que horas são?: Ensaios. São Paulo: Companhia das letras, 1987. p. 127-155.
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http://pt.shvoong.com/humanities/cegueira-em-edipo-rei