Professor: saberes e fazeres para além do pedagógico

Professor: saberes e fazeres para além do pedagógico

Regina Lucia Barros Leal da Silveira (UNIFOR)

Fortaleza/2005

RESUMO

O artigo é resultante de uma investigação realizada com professores que

participaram de cursos de formação, tanto na extensão como na pós-graduação.

Foram analisados relatos1 orais e escritos de professores: sondagens, memoriais,

textos, trabalhos temáticos, estudos e debates, roda de conversa e explanações,

pesquisas, investigações sobre grupos, entre outros procedimentos e recursos. A

investigação foi realizada no período de 2003 a 2004, com professores que

participaram de cursos de extensão e pós-graduação. Um universo de 120

professores, em 4 cursos de formação docente. Os dados foram organizados em

categorias: como melhorar a prática; relato de experiências; dificuldades na

docência; expectativa do curso de formação; modelo de professor que gostaria

ser; a prática docente. Assim, a análise (não foi uma pesquisa formal) seguiu

um modelo de classificação, assinalando a predominância das respostas, Além

disso, fizemos registros em agendas, cadernos, folhas avulsas etc. Dependendo

da circunstância, nós registrávamos. Daí, não termos pretensões formais quanto

aos seus resultados. Isto posto, esclareço que o texto ora apresentado sintetiza o

referido estudo. É simples, despretensioso, mas foi tecido com zelo, por fios

entrelaçados pela curiosidade sobre a prática docente. Na medida em que

costurávamos as idéias desenvolvidas pelos protagonistas de tantas cenas no diaa-dia da sala de aula, fomos aprendendo e analisando as diferentes práticas

acadêmicas, coloridas pela multiplicidade de situações.

Palavras-chaves: Docência; Competência; Habilidades.

1 Material de análise: sondagens, relatos, estudos em grupos sobre a prática docente, questionários; além de

estórias contadas em sala, debates etc.INTRODUÇÃO

Aí me vejo também com contadora de

estórias, daquelas que enche nosso

coração de satisfação e dúvida. Ah! A

duvida que alimenta nossa prática.

Regina

Revendo trajetórias pedagógicas no ensino superior através das estórias de

professores sobre suas práticas cotidianas contadas ao longo de nossa

experiência como professora de cursos de aperfeiçoamento, tanto na extensão

como na pós-graduação, procuramos fazer uma reflexão desse acontecer em sala

de aula com relação ao uso de recursos, instrumentos, procedimentos, atividades

didáticas. São estórias permeadas de “aconteceres” singulares, um território dos

significados e sentidos, uma construção das relações interpessoais entre os

protagonistas e as subjetividades entrecortadas de encontros e desencontros.

Estórias que contam uma busca incessante pelo novo, pelo diferente, desafios

que implicam em dialogar com as representações simbólicas e sociais dos

professores sobre seus modelos profissionais apresentando uma rica e, às vezes,

perturbadora diversidade acadêmica. Mas, é apostando no novo, na

complexidade que resolvemos estudar o acervo memorialístico dos professores,

o que por eles é revestido de sentido em sua prática e quais os significados

atribuídos.

Desde então, as experiências descritas pelos professores do ensino

superior, contendo situações do cotidiano das salas de aula (aqui entendidas não

como apenas um espaço físico) têm se constituído nosso objeto de estudo, não

só pelos significados diversos que evidenciam a riqueza presente na prática

docente, mas, sobretudo, pela sua natureza, por suas múltiplas possibilidades de

interpretação e variedade de situações pedagógicas traduzidas nos saberes e

fazeres diferenciados, pelo tempo histórico-cultural de cada um dos professores

participantes. Nesse sentido, temos feito anotações, analisado relatos,

avaliações, memoriais, textos, trabalhos temáticos, estudos e debates, roda de

conversa e explanações, pesquisas, investigações sobre grupos, entre outros

procedimentos e recursos.

Nesse percurso investigativo, uma pergunta sintetiza as dúvidas, as

angústias e as assertivas dos professores, independente da idade da experiência

docente: que professor desejo ser?

2A nosso juízo, os professores demonstram reconhecer os seus limites,

refletem sobre os valores que norteiam sua prática, analisam os seus paradigmas.

Percebemos, ainda, nas tímidas falas de alguns, nas ousadas participações de

outros, e em moderadas narrativas, uma atitude de curiosidade articulada com a

necessidade de ser um bom professor. Mas o que os inspira e o que os

mobiliza? Um aspecto é surpreendente. Pasmem! 90% dos professores falam de

amor a profissão! Quem diria? Pois é, mas essa é uma expressão constante nos

encontros pedagógicos.

O que, além disso, temos descoberto ao estudar sobre as narrativas, as

estórias contadas nas aulas? Constatamos atitudes inusitadas, comuns, diferentes

narrativas que revelam: humor, perplexidade, tristeza, indignação, sonho,

ousadia, insegurança, curiosidades, entre muitas outras. Revelações temerosas,

em determinadas circunstâncias, de professores “preocupados” em ampliar uma

ação educativa comprometida com a aprendizagem cognitiva do aluno; temos

visto e escutado profissionais almejando aprender novas estratégias de ensino,

métodos didáticos, bem como, o manuseio de recursos para melhorar o seu fazer

docente, ora numa perspectiva predominantemente técnica, ora numa posição

essencialmente política; verificamos, ainda, a presença em sala de aula de

sujeitos amantes da profissão, ardorosos sonhadores, afagados pela esperança de

desenvolverem uma prática transformadora. Constatamos, do mesmo modo, a

existência, na academia, de professores combatentes, envolvidos politicamente

com sua prática social, sonhadores, românticos, idealistas, vocacionados

ontologicamente com a profissão de professor.

A educação, portanto não é apenas a transmissão de

conhecimento, mas, sobretudo uma iniciação à vida e uma

permanente fonte de formação para que possa servir a

construção de ser ao invés da deificação do ter, para que

possa criar significados humanos solidários, éticos e

organizados. (LEAL, 2000, p.3).

Assim, arriscamos afirmar que as diferentes narrativas de professores

sobre a prática docente desvendam intencionalidades, concepções, valores que

não se esgotam no olhar do professor sobre o mundo, sobre o acontecer didático

epistemológico da sala de aula, mas, sim, transcendem os limites do individual

indo para além do imaginável, do planejado, do sistemático; atravessam o tempo

do pedagógico e se instalam num tempo das possibilidades.

Propiciar o despertar de sonhos possíveis, a elaboração de

projetos acadêmicos, a atitude de ousadia, a coragem de

romper paradigmas, a visão de futuro. O educador que

3visualiza as influências externas e está inserido no contexto

social histórico político e econômico favorecerá espaços

para a mudança, a flexibilidade, incentivando a pesquisa, e

novas alternativas de aprender. Vivenciar a diferença

sedimentada na perspectiva do novo. (LEAL, 2003, p.2).

Seria necessário, então, do ponto de vista epistemológico, nos

desvencilharmos desse olhar que nos parece, às vezes, um tanto ingênuo e

teimosamente não arreda pé da nossa prática pedagógica? Seria alienação?

Temos consciência da base teórico-metodológica das práticas sociais marcadas

por ideologias, algumas posições sustentadas na hegemonia da classe

dominante, reproduzindo um discurso pedagógico conferido pelo modelo

capitalista. Recorremos a Celi Zulke Taffarel e Geraldo Barroso2 que, numa

pesquisa sobre a produção de professores (teses, monografias, dissertações de

mestrados, produções de aula), consideraram:

O caráter individualista que se expressa no programa, nos

textos ou nas aulas não pode ser explicado de forma

isolada, visto que qualquer obra, seja literária, artística ou

científica, é a expressão de uma visão de mundo, um

fenômeno de consciência coletiva que atinge um grau

determinado de clareza conceitual, sensível ou prática, na

consciência do professor, artista, filósofo ou cientista. Uma

visão de mundo manifesta, portanto, um conjunto de

aspirações, idéias e sentimentos que reúne os membros de

uma classe ou grupo social e os distinguem de outras.

(TAFFARE e BARROSO, 2003, on-line).

Sabemos que o cotidiano das salas de aula revela sua horizontalidade

com as questões maiores e mostra o nosso compromisso com uma concepção de

mundo que se sustenta numa ideologia. Ainda assim, temos conhecimento de

que, além de profissionais de ensino, somos, também, sujeitos de classe, sujeitos

culturais e históricos. E a consciência dessa “cartografia social” (se é que

podemos assim denominar) a temos, na medida em que fazemos nossas escolhas

epistemológicas, pedagógicas e instrumentais.

2 As concepções presentes nas monografias, dissertações, teses e nas aulas podem ser tomadas como indicadores

da visão de mundo dos pesquisadores e professores. Considerada de forma mais abrangente, é essa visão que

explica e justifica as opções metodológicas, técnicas, teóricas e epistemológicas feitas por cada

professor/pesquisador. (CELI NELZA ZULKE TAFFAREL e GERALDO BARROSO).

4Perguntamos: mais uma vez: Que professor desejo ser e para servir a

quem? Qual a habilidade deve estudar para ser um professor competente?

Considerando conceito de professor reflexivo, Donald Schön3 afirma:

Os bons profissionais utilizam um conjunto de processos

que não dependem da lógica, mas, sim, das manifestações

de talento, sagacidade, intuição sensibilidade artística

(grifo nosso). Contribui com o conceito de Professor

Reflexivo, caracterizando-o como aquele que ainda se

surpreende com o aluno e o acolhe em suas dificuldades

(NÓVOA, 1992, p 13).

São tantas as questões e muitas as alternativas de respostas que,

certamente, irão diferir em função da abordagem teórica escolhida. Dessa forma,

não há certezas acadêmicas do ponto de vista técnico-teórico, mesmo porque,

em cada momento de ensino, a multiplicidade e a complexidade do processo se

revelam.

A investigação tem evidenciado que 80% dos professores mostra

segurança quanto ao chamado “domínio do conhecimento”; 60% revelam

fragilidade metodológica ao expor suas dúvidas na área; 70% reconhecem

dificuldades no uso de recursos tecnológicos. Além dos aspectos aqui

evidenciados, 80% dos professores que participam dos cursos de extensão e pósgraduação, anunciam um novo olhar sobre a prática docente, no sentido de

entendê-la como um desafio profissional e uma nova responsabilidade social.

Ressaltamos a formulação e o conteúdo das perguntas que estão presentes em

círculos de discussão, debates livres, relatos escritos e orais. Os professores

demonstram sensibilidade estética. Expressões como: beleza, exuberância, ética,

solidariedade, humanidade, esperança, crença, são componentes de suas falas.

Ficamos sensibilizadas com as experiências que ocorrem em salas de aula.

Isabel Cunha4 refere que a aula universitária vai além de uma visão tecnicista, é

um contexto revelador de intencionalidades, portanto, subjetividades, e é

carregada de valores e contradições. Ressalta ainda, ser também um espaço de

materialização dos conflitos e expectativas sociais, coletivas e individuais, bem

como, transmissão e produção de conhecimento.

Enfim, observamos que o saber docente tem sua peculiaridade e seus

mistérios. Os rituais individuais e coletivos que preenchem as salas de aula

expressam que para ser professor, antes do domínio do saber teórico-

3 Donald Schön referindo-se a professores que revelam um saber tácito, competente.

4 Professora titular da Faculdade de educação da UFP e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em

Educação. Pesquisadora do CNPq.

5metodológico, é indispensável o zelo, o cuidado afetivo, a competência humana.

Não se fabrica um bom professor. Pode-se treinar um profissional com

condições técnicas para desenvolver habilidades didático-pedagógicas, mas o

que faz a diferença é algo que não se explica só por palavra, vai além do

previsível, mas se compreende pela ação, pela sensibilidade intuitiva, habilidade

em provocar sonhos e a capacidade de usufruir a condição de amante movido

pela vocação e pelo compromisso social com uma práxis critica e criativa.

REFERÊNCIAS

BARROS LEAL, R. As Dimensões Educativas... Revista Iberoamericana de

Educación (ISSN: 1681-5653), de los lectores, N.31. Abril, 2003.

______. A discussão contemporânea do Saber. Mimeo, 2004.

CUNHA, Maria I. de. O bom professor e sua Prática. São Paulo editora

papirus,1989

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autofobia: saberes necessários à prática

educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

PERRENNOUD, Philippe. Dez competências para ensinar. Porto Alegre:Artes

Médicas, 2002.

SCHÖN, Donald A. Formar professores como profissionais reflexivos. In:

NÓVOA, Antônio (coord). Os professores e sua formação. Lisboa: Don

Quixote, 1992.

TAFFAREL, Celi Nelza Zulke e BARROSO, Geraldo. Crítica à organização

do processo de trabalho pedagógico no ensino superior, 2005.

http://www.faced.ufba.br/rascunho_digital/textos/408.htm- acesso 13/04/2005

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Regina Barros Leal
Enviado por Regina Barros Leal em 29/11/2020
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