AFINAL O QUE É SER PROFESSOR?
AFINAL, O QUE É SER PROFESSOR? SABERES E FAZERES PARA ALÉM DO
PEDAGÓGICO
Regina Lucia Barros Leal da Silveira 1
RESUMO
O texto ora apresentado foi tecido com zelo, por fios entrelaçados pela curiosidade sobre a
prática docente. Teve como objetivo estudar os conteúdos das falas contidas nas estórias, nas
narrativas e discursos manifestos em sala de aula sobre a prática docente, por meio de
sondagens, avaliações, debates, estórias, investigações. O trabalho é resultante de um estudo
descritivo exploratório de abordagem qualitativa realizada com professores que participam de
cursos de formação pedagógica, tanto na extensão como na pós-graduação, no período de
2002 a 2004, na Universidade de Fortaleza. Foram analisados ao longo dessa experiência,
relatos de 60 participantes dos cursos. Constatamos atitudes inusitadas, comuns, diferentes
narrativas que revelam: humor, perplexidade, tristeza, indignação, sonho, ousadia,
insegurança, curiosidades, entre muitas outras. Revelações temerosas, em determinadas
circunstâncias, de professores “preocupados” em ampliar uma ação educativa comprometida
com a aprendizagem cognitiva do aluno. Enfim, o saber docente tem sua peculiaridade e seus
mistérios. Os rituais individuais e coletivos que preenchem as salas de aula expressam que,
para ser professor, antes do domínio do saber teórico-metodológico, são indispensáveis o
compromisso, o zelo e competência humana.
Palavras-chaves: Docência. Competência. Habilidades. Formação Docente.
INTRODUÇÃO
“A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está
no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que
nada arrisca, e que, esquivando-se do sofrimento, perdemos também a
felicidade”.
(Carlos Drumonnd)
1Mestre em educação – UFC. Professora Titular da Universidade de Fortaleza-Unifor. Professora de cursos de
extensão, graduação e pós-graduação.Revendo trajetórias pedagógicas no ensino superior através das estórias de professores
sobre suas práticas cotidianas contadas ao longo de nossa experiência como professora de
cursos de aperfeiçoamento, tanto na extensão como na pós-graduação, procuramos fazer uma
reflexão desse acontecer em sala de aula com relação ao uso de recursos, instrumentos,
procedimentos, atividades didáticas, relação professor-aluno e da ética profissional. São
estórias permeadas de “aconteceres” singulares, narrativas sobre a construção das relações
interpessoais entre os protagonistas e as subjetividades entrecortadas de encontros e
desencontros. Estórias que contam uma busca incessante pelo novo, pelo diferente, uma
jornada empolgante em busca de melhores resultados de aprendizagem. Na questão ética, em
particular, baseamos nossa análise em Paulo freire por considerar que o educador deve
fundamentar sua pratica pedagógica na ética, sobretudo numa ética solidária. Freire (1997)
afirma que a ética é inseparável da prática educativa. A ética a que se refere é a ética universal
do ser humano, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana. Portanto,
os educadores devem ser mobilizados por uma ética de solidariedade que se consolida na
relação com o outro: com os alunos, colegas de trabalho, pais e todos aqueles envolvidos no
processo pedagógico.
Mas, para isso é necessário estabelecer a ruptura com o aulismo restrito,
com um ensino alienante e alienado, utilizando-se de um discurso e uma pratica
atualizada: transversalizada, complexa, interdisciplinarizada, integrada aos
conteúdos críticos. O aluno é um grande mobilizador de energia e o encontro
geracional do educador e educando, ambos em consonância de objetivos, metas e
compromisso, podem reverter uns cenários do ensino aprendizagem, onde o aluno e
um sujeito passivo. Pensar em experiências de aprendizagem como um dos
caminhos essenciais a formação do aluno.(LEAL 2004).
Diversos autores consideram fundamental na prática pedagógica ressaltar diferentes
aspectos, como a ética, a exemplo de TUGENDHAT (1996), FREIRE (1997), a competência
interpessoal, ALARCÃO (1996) CUNHA (1989), o compromisso político CHAUÍ (1999)
FREITAS (1995) TAFARREL e BARROSO (1998) NÓVOA (1994), LIBÂNEO (1994)
habilidades didático-pedagógica SCHON (1992) PERRENOUD (2001) CASTRO (1999), e
domínio das novas tecnologias MERCADO (1999), em sala de aula.
2Desde então, as experiências descritas pelos professores do ensino superior, contendo
situações do cotidiano das salas de aula, aqui entendidas não como apenas um espaço físico,
têm se constituído nosso objeto de estudo, não só pelos significados diversos que evidenciam
a riqueza presente na prática docente, mas, sobretudo, pela sua natureza, por suas múltiplas
possibilidades de interpretação e variedade de situações pedagógicas traduzidas nos saberes e
fazeres diferenciados, pelo tempo histórico-cultural de cada um dos professores participantes.
O estudo tomou por base as contribuições de análise de conteúdo, segundo Bardin
(1989). Enquanto esforço de interpretação, a análise de conteúdo oscila entre dois pólos de
rigor da objetividade e de fecundidade da subjetividade. Refere que a analise de discurso
como técnica, absolve e cauciona o investigador por esta atração pelo escondido, pelo latente
e não aparente, o potencial do inédito (do não dito) retido por qualquer mensagem. Exige
então do pesquisador uma tarefa paciente de desocultação. Os instrumentos utilizados para
análise foram: anotações, os relatos escritos sobre a experiência em sala de aula; sondagens
iniciais, diagnósticos, avaliações, memoriais, textos de depoimentos, trabalhos temáticos,
pesquisas, investigações sobre grupos, entre outros procedimentos e recursos. Quando de
relatos orais, rodas de conversas em sala de aula, debates, a pesquisadora realizou anotações.
No entanto, foram as respostas escritas que basearam o presente estudo. Assim, durante as
aulas, e depois de concluídos os cursos, a pesquisadora analisava o material e ao mesmo
tempo em que procedia suas anotações.
Nesse percurso investigativo, uma pergunta sintetiza as dúvidas, as angústias e as
assertivas dos professores, independente da idade da experiência docente: que professor
desejo ser?
A nosso juízo, essa questão tem revelado uma atitude sábia: a de aprendiz.
O professor, na nova sociedade, revê de modo crítico seu papel de parceiro,
interlocutor, orientador do educando na busca de suas aprendizagens. Ele e o aprendiz
estudam, pesquisam, debatem, discutem, constroem e chegam a produzir
conhecimento, desenvolver habilidades e atitudes. O espaço aula se torna um
ambiente de aprendizagem, com trabalho coletivo a ser criado, trabalhando com os
novos recursos que a tecnologia oferece, na organização, flexibilização dos
conteúdos, na interação aluno-aluno e aluno-professor e na redefinição de seus
objetivos (MERCADO, 1999)..
3Os professores demonstraram reconhecer os seus limites, pois refletem sobre os
valores que norteiam sua prática, analisam os seus paradigmas. Percebemos, ainda, nas
tímidas falas de alguns, nas ousadas participações de outros, e em moderadas narrativas, uma
atitude de curiosidade articulada com a necessidade de ser um bom professor. Mas o que os
inspira e o que os mobiliza? Um aspecto é surpreendente. Pasmem! 90% dos professores
falam de amor a profissão! É uma expressão constante nos encontros pedagógicos.
O que, além disso, temos descoberto ao estudar sobre as narrativas, as estórias
contadas nas aulas? Constatamos atitudes inusitadas, comuns, diferentes narrativas que
revelam: humor, perplexidade, tristeza, indignação, sonho, ousadia, insegurança, curiosidades,
entre muitas outras. Revelações temerosas, em determinadas circunstâncias, de professores
“preocupados” em ampliar uma ação educativa comprometida com a aprendizagem cognitiva
do aluno; temos visto e escutado profissional almejando aprender novas estratégias de ensino,
métodos didáticos, bem como, o manuseio de recursos para melhorar o seu fazer docente, ora
numa perspectiva predominantemente técnica, ora numa posição essencialmente política;
verificamos, ainda, a presença em sala de aula de sujeitos amantes da profissão, ardorosos
sonhadores, afagados pela esperança de desenvolverem uma prática transformadora;
constatamos, do mesmo modo, a existência, na academia, de professores combatentes,
envolvidos politicamente com sua prática social, sonhadores, românticos, idealistas,
vocacionados ontologicamente2 com a profissão de professor.
A educação, portanto não é apenas a transmissão de conhecimento, mas, sobretudo
uma iniciação à vida e uma permanente fonte de formação para que possa servir a
construção de ser ao invés da deificação do ter, para que possa criar significados
humanos solidários, éticos e organizados. (LEAL 2000).
Assim, arriscamos afirmar que as diferentes narrativas de professores sobre a prática
docente desvendam intencionalidades, concepções, valores que não se esgotam no olhar do
professor sobre o mundo, sobre o acontecer didático epistemológico da sala de aula, mas, sim,
transcendem os limites do individual indo para além do imaginável, do planejado, do
sistemático; atravessam o tempo do pedagógico e se instalam num tempo das possibilidades.
2 Expressão usada por Paulo Freire acerca da formação de professores em várias de suas obras
4Propiciar o despertar de sonhos possíveis, a elaboração de projetos acadêmicos, a
atitude de ousadia, a coragem de romper paradigmas, a visão de futuro. O educador
que visualiza as influências externas e está inserido no contexto social histórico
político e econômico favorecerá espaços para a mudança, a flexibilidade,
incentivando a pesquisa, e novas alternativas de aprender. Vivenciar a diferença
sedimentada na perspectiva do novo(LEAL 2003).
Seria necessário, então, do ponto de vista epistemológico, nos desvencilharmos desse
olhar que nos parece, às vezes, um tanto ingênuo e teimosamente não arreda pé da nossa
prática pedagógica? Seria alienação? Temos consciência da base teórico-metodológica das
práticas sociais marcadas por ideologias, algumas posições sustentadas na hegemonia da
classe dominante, reproduzindo um discurso pedagógico conferido pelo modelo capitalista.
Recorremos a Celi Taffarel e Geraldo Barroso3 que, numa pesquisa sobre a produção de
professores (teses, monografias, dissertações de mestrados, produções de aula), consideraram:
“ O caráter individualista que se expressa no programa, nos textos ou nas aulas não
pode ser explicado de forma isolada, visto que qualquer obra, seja literária, artística
ou científica, é a expressão de uma visão de mundo, um fenômeno de consciência
coletiva que atinge um grau determinado de clareza conceitual, sensível ou prática,
na consciência do professor, artista, filósofo ou cientista. Uma visão de mundo
manifesta, portanto, um conjunto de aspirações, idéias e sentimentos que reúne os
membros de uma classe ou grupo social e os distinguem de outras.(TAFFAREL e
BARROSO 2003).”
Sabemos que o cotidiano das salas de aula revela sua horizontalidade com as
questões maiores e mostra o compromisso com uma concepção de mundo que se sustenta
numa ideologia. Ainda assim, temos conhecimento de que, além de profissionais de ensino,
somos, também, sujeitos de classe, sujeitos culturais e históricos. E as consciências dessa
“cartografia sociais” (se é que podemos assim denominar) a têm, na medida em que fazemos
nossas escolhas epistemológicas, pedagógicas e instrumentais.
3
As concepções presentes nas monografias, dissertações, teses e nas aulas podem ser tomadas como indicadores
da visão de mundo dos pesquisadores e professores. Considerada de forma mais abrangente, é essa visão que
explica e justificam as opções metodológicas, técnicas, teóricas e epistemológicas, feitas por cada
professor/pesquisador. (TAFFAREL e BARROSO)
5Perguntamos: mais uma vez: Que professor desejo ser e para servir a quem? Quais as
habilidades necessárias para ser um professor competente? São muitas as considerações
acerca dessa questão. Considerando o conceito de professor reflexivo, como professor
competente, Donald Schön4 afirma:
“ ...Os bons profissionais utilizam um conjunto de processos que não dependem da
lógica, mas, sim, das manifestações de talento, sagacidade, intuição sensibilidade
artística. Contribui com o conceito de Professor Reflexivo, caracterizando-o como
aquele que ainda se surpreende com o aluno e o acolhe em suas dificuldades
(SCHÖN, 1992). “
São tantas as questões e muitas as alternativas de respostas que, certamente, irão
diferir em função da abordagem teórica escolhida. Dessa forma, não há certezas acadêmicas
do ponto de vista técnico-teórico, mesmo porque, em cada momento de ensino, a
multiplicidade e a complexidade do processo se revela.
A investigação evidenciou que 80% dos professores mostra segurança quanto ao
chamado “domínio do conhecimento”; 60% revela fragilidade metodológica ao expor suas
dúvidas na área; 70% reconhecem dificuldades no uso de recursos tecnológicos e 90%
afirmam a importância de um bom relacionamento com o aluno. Presente nas repostas estão
as questões pessoais, os medos, as dúvidas...
“ O professor é a pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor.
Urge por isso (re) encontrar espaços de interação entre as dimensões
pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus
processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro de suas histórias de
vida (NÒVOA, 1992). “
Além dos aspectos aqui evidenciados, 80% dos professores que participaram dos
cursos de formação anunciavam um novo olhar sobre a prática docente, no sentido de
entendê-la como um desafio profissional e uma nova responsabilidade social. Ressaltamos a
4 Donald Schön referindo-se a professores que revelam um saber tácito, competente. Os que têm uma
experiência consolidada, no dia a dia da sala de aula.
6formulação e o conteúdo das perguntas e respostas que estão presentes em círculos de
discussão, debates livres, relatos escritos e orais.
Os professores demonstram sensibilidade estética. Expressões como: beleza,
exuberância, ética, solidariedade, humanidade, esperança, crença, são componentes de suas
falas. Ficamos sensibilizadas com as experiências que ocorrem em salas de aula. Recorremos
então a Cunha5 que refere ao discutir a aula universitária:
A aula universitária é sempre síntese. Não pode ser vista apenas numa perspectiva
fracionada, própria da visão tecnicista. Quando nos propomos a estudar a aula
universitária estamos entendendo que ela é o espaço revelador de intencionalidades,
carregada de valores e contradições. Nela é que se materializam os conflitos entre
expectativas sociais e projeto de cada universidade, sonhos individuais e
compromissos coletivos, transmissão e produção do conhecimento, ser e vir-a-ser
(CUNHA, 1997).
Enfim, observamos que o saber docente tem sua peculiaridade e seus mistérios.
Os rituais individuais e coletivos que preenchem as salas de aula expressam que para ser
professor, antes do domínio do saber teórico-metodológico, é indispensável o zelo, o cuidado
afetivo, a competência humana. Não se fabrica um bom professor.
Competência técnica e competência política não são aspectos contrapostos.
A prática pedagógica, exatamente por ser política, exige a competência
técnica. As dimensões política, técnica e humana da prática pedagógica se
exigem reciprocamente. Mas esta mútua implicação não se dá
automaticamente e espontaneamente. É necessário que seja conscientemente
trabalhada. (CANDAU, 1992).
Pode-se treinar um profissional com condições técnicas para desenvolver habilidades
didático-pedagógicas, mas o que faz a diferença é algo que não se explica só pela palavra, vai
além do previsível, e (mas) se compreende pela ação, pela habilidade em provocar sonhos e a
capacidade de usufruir a condição de amante movido pela vocação e pelo compromisso social
com uma práxis critica e criativa. Afinal, o que é ser professor?
5 Professora titular da Faculdade de educação da UFP e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação.
Pesquisadora do CNPq.
7REFERÊNCIAS
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Porto Editora, 1996.
ANASTASIOU, Lea das Graças Camargo e ALVES, Leoni Passate. Processos de
Ensinagem na Universidade. Joinville-, SC: UNIVILLE, 2004
LEAL. B. R. As dimensões educativas.In.Revista Iberoamericana de Educación
(ISSN: 1681-5653), N.34 de Janeiro a Abril/ 2004.
________________ Competências e Habilidades Pedagógicas, In Revista
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2003.
CUNHA, Maria Isabel. O Bom Professor e sua Prática. Campinas, Papirus: 1989;
___________ A discussão contemporânea do Saber. Mimeo, 2004.
FREITAS, Luís Carlos de. Critica a organização do processo de trabalho
pedagógico e a didática. Campinas, Papirus, 1995.
GARRIDO, Pimenta e ANASTISIOU, Lea das Graças Camargo. Docência no
Ensino Superior. São Paulo: Cortez, 2002.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. São Paulo: Cortez, 1994
MERCADO, Luís Paulo Leopoldo – Formação Continuada de Professores e Nova
Tecnologia, Editora EDUFAL, Maceió, 1999.
MINAYO, M. C. de S. Pesquisa Social – teoria, método, criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes,
1994.
8NÓVOA, A. (org.) Os professores e a sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992.
PERRENNOUD, Philippe. Dez competências para ensinar. Porto Alegre:
Artmédicas, (ou é ArtMed ou Artes Médicas) 2002.
SCHÖN, Donald A. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA,
Antônio (coord). Os professores e sua formação. Lisboa: Don Quixote, 1992.
TAFFAREL, C.N.Z. A Prática pedagógica dos professores nas universidades:
um estudo exploratório na UFPE -54. Recife/PE, UFPE (Mimeo.) Março 1998 (2).
_________________. Introdução a Didática do Ensino Superior. Recife UFPE, 1997.
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