CRIANÇA, AFETIVIDADE, ESCOLA E PANDEMIA – Reflexões

Em relação às crianças pequenas a escola tem duas funções que se destacam das demais funções: A socialização e a introdução aos conteúdos escolares ou científicos. Quero, de forma breve, tecer ideias, pontos de vista, opiniões (doxa) e algumas referências teóricas acerca da relação entre a construção da afetividade mediada pelas relações sociais e a situação de distanciamento com foco nos processos de ensinar e aprender na modalidade remota.

A socialização é primária; o ensino dos conteúdos secundária. Isso não quer dizer ou menosprezar a importância dos conteúdos. A importância, eu a considero uma relação não imperativa. Isto é, que as duas devem ser indissociáveis, na prática, e que devem receber a mesma importância nas salas de aulas, especialmente de crianças pequenas (Educação Infantil). Entendo, assim, por primária, que a socialização com as crianças pequenas é mais importante ou é primeiramente importante antes de ensinar os conteúdos. Não quero dar a entender que os conteúdos não são relevantes.

Penso que socializar – que para a criança pequena significa brincar com os demais, com seus pares – pode ocorrer sem uma necessária relação manifesta com conteúdos escolares. Como complexo, ou em perspectiva teórica, concordo que toda brincadeira traz em si uma relação com conteúdos. É neste sentido que a indissociabilidade sempre se faz presente. Ou seja, considero significativos os enunciados que se referem ao ‘brincar educando’ e ‘educar brincando’. Teoricamente eles não são separáveis.

Desconfio, puerilmente, que as crianças, pequenas especialmente, vão à escola, primeiramente, por causa da socialização. Porque encontram coleguinhas, fazem amigos, brincam, divertem-se. Depois, relacionam os conteúdos da escola ou escolarização com a necessidade de gostar da professora, dos conteúdos, das atividades e demais atividades escolares. Sim, algumas crianças vão gostar de certas disciplinas, de fato. Mas desconfio que a maioria das crianças não gosta de estudar. Mas adora a escola para brincar, para encontrar os amiguinhos, socializar-se. Quando se pergunta às crianças pequenas, sem induzir a respostas, se elas gostam mais de ter aula ou brincar na escola, a resposta é lógica... e honesta.

Para Cortella, um dos elementos da eficiência na aprendizagem é a afetividade. Afetividade envolve vínculo. Não há afetividade sem aproximação, sem contato. Claro, com o devido respeito que a situação demanda e consideração aos contextos que se apresentam. Para um professor ser afetivo com uma criança na escola ele precisa mostrar interesse por ela, aproximar-se, conversar, ajudar. Isto é vínculo. Isto é afetividade.

Entre as crianças pequenas a afetividade constitui-se nas relações de contato físico. Elas precisam estar perto de suas amiguinhas e amigos, de seus coleguinhas para experienciar esta relação que cria o vínculo afetivo. A mesma relação se estabelece entre o professor e seus alunos. Entre pais e filhos, nas relações familiares em que o contato e a presença são precárias, as afetividades também serão.

A socialização não acontece à distância. Não é possível estabelecer afetos só por meio do mundo virtual. Não há afetividade virtual ou remota. Objetivamente pode-se até pensar em mediação das tecnologias como meio de constituição da afetividade. Entretanto, sendo a afetividade um processo subjetivo, ela só se confirma na presencialidade. Este é um desafio que os professores enfrentam nas suas relações com o ensino e a aprendizagem no modo online ou a distância, pelo ‘wats’, por e-mail e outros mecanismos. Há uma lacuna na relação professor e aluno. Esta lacuna é a afetividade, é o vínculo afetivo; é a socialização engendrada pelos processos de contatos físicos que acontecem no espaço interior da escola. Como pensar esta questão para o pós pandemia?

De modo geral, considero que os três autores mais citados na formação de professores, quando se trata da relação afetividade e inteligência ou seus sinônimos são: Wallon, Piaget e Vigotski.

Para Wallon o afeto ou as emoções contribuem para criar e construir operações cognitivas na criança. Embora ele faz uma diferença entre a criança em idade escolar com a criança pequena, que pode desenvolver afetividade sem relação necessária com operações cognitivas. Para a idade escolar a afetividade é importante para a construção do conhecimento.

Piaget considera que o processo de construção do conhecimento ou da inteligência ocorre mediante duas facetas ou dimensões: a intelectual e afetiva. Para o autor, as duas são paralelas, mas caminham juntas. São indissociáveis. Assim, os laços da afetividade são constituídos na presença no contato, sentindo o cheiro, vendo a reação da outra pessoa. As crianças pequenas, principalmente, assimilam de seus pares, de suas/seus coleguinhas comportamentos. Imitam atitudes. Reformulam seus próprios comportamentos com base nos comportamentos de outras crianças. Neste sentido, a socialização, a presencialidade (do outro) é fundamental para o desenvolvimento, tanto cognitivo como emocional.

Em Vigotski a formação do indivíduo ocorre mediante um processo de interação mediada com a necessária presença do outro por meio da linguagem. O desenvolvimento cognitivo e psicológico é fruto desta relação, da presença do outro, na interação entre os sujeitos. A afetividade e a emoção atuam de forma conjunta na constituição das funções psicológicas superiores na construção do sujeito. A criança mediada pelas relações com o adulto constitui as características da sua personalidade. Pode-se inferir que a presença do outro, crianças interagindo entre crianças são aspectos fundamentais para a formação do comportamento infantil e da elaboração do conhecimento. Logo, a afetividade, como um produto de relações sociais experienciadas e reais é a base da construção do humano adulto a partir da criança.

Com base aproximativa das ideias desses autores, que para a maioria dos professores são a base sobre a qual constituem o entendimento da relação entre afetividade e aprendizagem, podemos perceber a importância da afetividade no processo de aprender. Um aspecto comum nos teóricos citados é a interação social, embora haja diferenças epistêmicas de como essa interação ocorre. Neste sentido, a socialidade ou a socialização entre as crianças é um dos pressupostos para a formação do indivíduo pleno e para a construção do conhecimento.

A partir do exposto, uma proposição em forma de preocupação, ou em forma de questão: Se a afetividade é uma constituição relacional, isto é, nas crianças pequenas, constitui-se no contato com outras crianças, com adultos, com professores e professoras e demais agentes educativos e continuando o distanciamento impedindo que as escolas reiniciem as atividades presenciais, como pensar a mediação entre afetividade e desenvolvimento cognitivo nas crianças pequenas, crianças maiores e também nos adultos nas relações ensino-aprendizagem no modelo remoto?