Uma breve reflexão: educação, infância e pandemia.

A infância é uma categoria que transcende apenas a condição biológica do indivíduo, sendo composta, também, por inter-relações sociais e culturais, em um complexo sistema dinâmico: todos esses fatores amalgamam-se para chamar o que se acostumou determinar como infância. A impossibilidade de afirmar um determinismo biológico sobre a infância, permite-a ser matéria não apenas da biologia ou mesmo da medicina, se assim o fosse, os Saterê-Mawé não se tornariam homens ao quatorze anos, até mesmo se pode averiguar com as próprias “crianças” como essa definição vária de uma geração a outra ou entre localidades. Seriam os pequenos soldados do Sudão crianças? Ou mesmo na realidade da sala de aula, qual professor nunca se deparou com aquele pequeno aluno ou aluna que diz “eu não sou mais criança”?

Até mesmo os estudos biológicos demonstram como diversos fatores coadunam no corpo do infante para determinar o conceito de “infância”, contudo não se a de negar que o corpo em desenvolvimento é a característica dessa fase, como demonstrou Piaget. Sendo, sobretudo, um conceito a infância, por assim ser, é matéria de diversos campos epistemológicos: a filosofia, a história, a sociologia, a biologia, a psicanálise e a literatura. A infância é um campo em disputa. Quem seria a melhor pessoa para determinar a infância senão a própria crianças?Contudo, muitas vezes, os adultos esquecem-se que elas são sujeitos, que têm opiniões e uma visão de mundo própria, e as tratam como pequenos corpos que nada sabem e nada têm a dizer. Não se trata de assumi-la como homúnculos, pequenos homens adultos, como lembrou Barthes (2009); mas aceitá-los assim como são, sujeitos em desenvolvimento, descobridores de um novo mundo que lhes saltam os olhos.

O poeta Manoel de Barros disse certa vez: “As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças” (BARROS, 2016, p.16), o que pode parecer, para os mais ortodoxos, uma imaturidade cognitiva ou um desvio do intelecto – que, por muito tempo, fora função da educação consertá-lo –, na verdade é uma potencialidade (dynamis) de desenvolver a criatividade; pois as coisas somente existem a partir da linguagem: não ter nome implica no fato de precisar nomeá-las e, por sua pouca experiência de mundo, as crianças são livres para assim fazer como quiserem.

A função da educação deve ser não estreitar os caminhos da criança; mas, antes de estudo, como traz em sua própria raiz latina, conduzi-la para fora de sendas já postas, transcendê-las. O fato de nomear coisas sem nome é, ao mesmo tempo, criar significados para um universo que, anteriormente, não os tinha: é fazer de uma espiga de milho uma boneca; panelas transformam-se em instrumentos musicais; os móveis, em castelos e masmorras e tudo mais que a imaginação e a criatividade permitir. O professor, sendo o sujeito que conduz, deve ater-se ao ato de conduzir, mediar a criança e a realidade – o que ganha destaque em um momento de aulas online e de pandemia.

Essa condição permite criar um mundo que “só é verdade no mundo de quem gosta de inventar” (LISPECTOR, 2014, p. 04), inventar é a possibilidade de criar um novo mundo, interferir na realidade para o que existia apenas em ideias materialize-se. Sonhar é negar o status quo, buscando uma nova forma de ser para si e para outros: essa deve ser a função da educação.

Referências:

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2009.

BARROS, Manoel de. O livro das ignorãça. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

LISPECTOR, Clarice. Quase de verdade. Rio de Janeiro: ROCCO, 2014.