SER E TEMPO DE MARTIN HEIDEGGER
Hedidegger foi um filósofo contemporâneo, conforme a divisão histórica da filosofia, que pensou ideias muito atuais, densas e complexas, complexidades essas que em nada soam pejorativas, aliás, Martin Heidegger marcou a história da filosofia com sua obra de tal forma que há pessoas que dizem que tiveram suas vidas mudadas depois de conhecerem o pensamento heideggeriano. Aliás, cabe aqui uma retificação, Heidegger não foi um filósofo, ele é um filósofo, e digo isso para reverberar o que ele mesmo escreveu, registrando que o ser só “é” enquanto existe em essência, no sentido ontológico, ou, quando morre, retornando assim à sua essência, pois quando é inserido no mundo e no tempo, e enquanto vive ele é um ser com todas as possibilidades de ser o que todas as potências inerentes a ele o permitem ser, no sentido aristotélico da palavra potência, no entanto é entificado pelo contexto temporal. Para ele, ninguém é organizado, ou ansioso, ou alegre, mas sim está alegre, está ansioso, ou está organizado, ou portador de qualquer outro predicado, uma vez que o ser ainda pode, potencialmente, mudar esse status a qualquer momento, porque ainda está inserido no fluxo temporal do eterno devir, podendo retornar ao seu ser e à sua verdadeira essência. É interessante observarmos que na riqueza do nosso idioma conseguimos distinguir facilmente entre “ser” e “estar”, o mesmo já não ocorre com o idioma inglês, que tem o mesmo verbo para as duas ações, o verbo “to be”.
O filósofo alemão começa sua investigação considerando que a investigação metafísica caiu em esquecimento, evocando a necessidade de revitalização da questão ontológica. Heidegger descreve que há uma obscuridade na questão do “ser”, mesmo depois de ter sido tratada por Aristóteles, Tomás de Aquino e Duns Scott, e, ainda, retrabalhado por Hegel. O ser é inabarcável e não pode, portanto, ser entificado, coisificado, de forma que a lógica formal falha quando se debruça a conceituar o ser. Heidegger não vê com bons olhos o fato de o problema ontológico, a definição do ser, a conceituação dessa ideia, serem tratados quase que como um axioma, um princípio auto-evidente que dispensa justificação, como se o simples pronunciar do seu signo oferecesse, junto dele, a definição cabal de seu significado. A fenomenologia de Edmund Husserl, que fora o mestre de Heidegger, foi fundamental para que o filósofo da Floresta Negra se valesse do método fenomenológico em sua investigação, método esse que apregoava o retorno à coisa em si. O ser, portanto, tem um caráter ontológico, é anterior à existência, não podendo ser explicado, tampouco abarcado, e, se fosse conceituado, seria, então, reduzido a um mero ente.
Heidegger pondera que a ciência só pode tratar como ente objetos que podem ser apreendidos em suas características e predicados, que podem ser parametrizados, conceituados, o que não acontece quando se mira o olhar ao “ser”, uma vez que ele “é” em pura essência e existência. Por essa razão é que objetos como uma caneta ou mesmo uma pedra, podem ser tratados como entes, uma vez que seus predicados são abarcáveis e não há nenhuma potencialidade em uma pedra para vir a se tornar outra coisa senão uma pedra. Não há perspectiva de mudança nos entes apreensíveis, ao contrário dos seres que, presos ao fluxo temporal, veem a possibilidade de mudança como uma característica bem presente e empírica no seu dia-a-dia.
Ao olhar para um ser humano, que é um ser manifesto no tempo, o que se observa nele é o “eterno devir”, cunhado pelo filósofo pré-socrático Heráclito, que dizia que não podemos nos banhar em um mesmo rio duas vezes, porque quando voltamos a esse rio, tanto o rio, quanto nós, já não somos os mesmos. Essa ideia é difundida por muitos estudiosos da área de educação, que tratam o homem como sendo um ser em desenvolvimento, nunca acabado, mas que morre aprendendo e, mesmo assim, ignorando muito mais conhecimentos do que os que aprendeu em vida.
Quando alguém ouve a pergunta “Quem é você?”, na esmagadora maioria das vezes, a resposta que se é apresentada está calçada na profissão dessa pessoa, ou seja, as pessoas identificam seu ser de acordo com seus papéis sociais e se colocam como entes definitivos e abarcáveis. De fato, o ser é uma constante mutação, inapreensível e só poderia ser tratado como um ente se ele pudesse se manifestar em todas as suas formas, em todas suas potencialidades e em todos os seus momentos, passados, presentes e futuros, o que é impossível.
Para Heidegger, no entanto, enquanto o ser permanece como uma essência ele traz em si todas as possibilidades, ou potências, potências essas que só são dissipadas quando o ser vem à existência, é inserido num horizonte de temporalidade e se mostra como um ser no tempo. É justamente quando o ser vem ao mundo sem ser consultado sobre suas vontades ou predileções, que ele acaba por esquecer do seu “ser”, e é entificado, uma vez que o tempo e as circunstâncias existenciais, contextos econômicos e sociais, acabam por forjá-lo e coisificá-lo. Uma analogia que me vem à mente é a do experimento da fenda dupla, famoso na física quântica, onde partículas de átomos são lançadas contra uma parede, tendo que atravessar uma placa com duas fendas. Em um primeiro momento, toda a extensão da parede é bombardeada pelas partículas, como se o feixe de partículas se comportasse como uma onda, uma onda de possibilidades. No entanto, quando há um observador, esse comportamento muda e as partículas deixam de se comportar como ondas, se comportando como matéria e marcando a parede por detrás das fendas nos exatos locais por onde atravessaram a fenda. O que se deduz dessa experiência é que, embora partículas se comportem como feixes de possibilidades, o observador acaba por dissipar essas possibilidades em uma única realidade!
No caso do “ser aí” de Heidegger, embora ele carregue consigo todas as potencialidades, da forma mais aristotélica possível, não são todas as possibilidades que acabam por se tornarem reais, mas somente aquelas que o contexto temporal constrói. O tempo, nesse sentido, é como se fosse o observador que dissolve as possibilidades do ser em momentos de agora, e acaba por fazer dele um ente. Ainda assim, quando o ser se torna um “ser aí”, ou um “ser no mundo”, descrito por Heidegger pelo termo alemão intraduzível “Dasein”, o ser ainda possui em sua essência as suas potencialidades, e, concordando com Heráclito, além de Aristóteles, pode mudar a todo instante deixando de ser aquilo que era. É a manifestação do ser no fluxo do tempo que o massifica e o entifica, o distanciando de todas as potencialidades daquilo que ele poderia ser, ou até mesmo poderia querer ser, por força dos condicionantes externos, como a época em que o ser se manifestou, o contexto social em que foi inserido, a localização geográfica de sua existência, a condição econômica em que nasceu ou vive e todas as demais mazelas que são determinantes e inerentes à existência humana. Ao se entificar pelo contexto existencial ou pelo coletivo social, o ser é sufocado, distanciado e esquecido, o que deságua em uma existência agonizante, angustiante, superficial e, como diria Heidegger, em uma existência inautêntica.
Por fim, quando se aproxima do horizonte de temporalidade, e já bem próximo da morte o indivíduo se torna um “ser para a morte”, de sorte que quando morto, o ser retorna à sua essência, e pode ter, novamente, seus predicados adjetivados pelo “é”, uma vez que, embora todas suas potencialidades tenham morrido com ele, ele deixou de ser entificado pelo horizonte temporal. A partir da morte há propriedade para se referir a um ser usando o verbo ser no presente: ele “é”, pois houve um retorno ao “ser” em essência, sentida e percebida pelo indivíduo, segundo Heidegger, como sendo a angústia pela morte. Aqui, o indivíduo retorna à sua essência, há um retorno ao ser ontológico e o indivíduo reencontra sua verdadeira essência.
BIBLIOGRAFIA
CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1952.
HEIDEGGER, Martin. O Ser e o Tempo. Parte I. Tradução Márcia Sá Cavalcante Shuback. São Paulo: Editora Vozes, 2005.
O filósofo alemão começa sua investigação considerando que a investigação metafísica caiu em esquecimento, evocando a necessidade de revitalização da questão ontológica. Heidegger descreve que há uma obscuridade na questão do “ser”, mesmo depois de ter sido tratada por Aristóteles, Tomás de Aquino e Duns Scott, e, ainda, retrabalhado por Hegel. O ser é inabarcável e não pode, portanto, ser entificado, coisificado, de forma que a lógica formal falha quando se debruça a conceituar o ser. Heidegger não vê com bons olhos o fato de o problema ontológico, a definição do ser, a conceituação dessa ideia, serem tratados quase que como um axioma, um princípio auto-evidente que dispensa justificação, como se o simples pronunciar do seu signo oferecesse, junto dele, a definição cabal de seu significado. A fenomenologia de Edmund Husserl, que fora o mestre de Heidegger, foi fundamental para que o filósofo da Floresta Negra se valesse do método fenomenológico em sua investigação, método esse que apregoava o retorno à coisa em si. O ser, portanto, tem um caráter ontológico, é anterior à existência, não podendo ser explicado, tampouco abarcado, e, se fosse conceituado, seria, então, reduzido a um mero ente.
Heidegger pondera que a ciência só pode tratar como ente objetos que podem ser apreendidos em suas características e predicados, que podem ser parametrizados, conceituados, o que não acontece quando se mira o olhar ao “ser”, uma vez que ele “é” em pura essência e existência. Por essa razão é que objetos como uma caneta ou mesmo uma pedra, podem ser tratados como entes, uma vez que seus predicados são abarcáveis e não há nenhuma potencialidade em uma pedra para vir a se tornar outra coisa senão uma pedra. Não há perspectiva de mudança nos entes apreensíveis, ao contrário dos seres que, presos ao fluxo temporal, veem a possibilidade de mudança como uma característica bem presente e empírica no seu dia-a-dia.
Ao olhar para um ser humano, que é um ser manifesto no tempo, o que se observa nele é o “eterno devir”, cunhado pelo filósofo pré-socrático Heráclito, que dizia que não podemos nos banhar em um mesmo rio duas vezes, porque quando voltamos a esse rio, tanto o rio, quanto nós, já não somos os mesmos. Essa ideia é difundida por muitos estudiosos da área de educação, que tratam o homem como sendo um ser em desenvolvimento, nunca acabado, mas que morre aprendendo e, mesmo assim, ignorando muito mais conhecimentos do que os que aprendeu em vida.
Quando alguém ouve a pergunta “Quem é você?”, na esmagadora maioria das vezes, a resposta que se é apresentada está calçada na profissão dessa pessoa, ou seja, as pessoas identificam seu ser de acordo com seus papéis sociais e se colocam como entes definitivos e abarcáveis. De fato, o ser é uma constante mutação, inapreensível e só poderia ser tratado como um ente se ele pudesse se manifestar em todas as suas formas, em todas suas potencialidades e em todos os seus momentos, passados, presentes e futuros, o que é impossível.
Para Heidegger, no entanto, enquanto o ser permanece como uma essência ele traz em si todas as possibilidades, ou potências, potências essas que só são dissipadas quando o ser vem à existência, é inserido num horizonte de temporalidade e se mostra como um ser no tempo. É justamente quando o ser vem ao mundo sem ser consultado sobre suas vontades ou predileções, que ele acaba por esquecer do seu “ser”, e é entificado, uma vez que o tempo e as circunstâncias existenciais, contextos econômicos e sociais, acabam por forjá-lo e coisificá-lo. Uma analogia que me vem à mente é a do experimento da fenda dupla, famoso na física quântica, onde partículas de átomos são lançadas contra uma parede, tendo que atravessar uma placa com duas fendas. Em um primeiro momento, toda a extensão da parede é bombardeada pelas partículas, como se o feixe de partículas se comportasse como uma onda, uma onda de possibilidades. No entanto, quando há um observador, esse comportamento muda e as partículas deixam de se comportar como ondas, se comportando como matéria e marcando a parede por detrás das fendas nos exatos locais por onde atravessaram a fenda. O que se deduz dessa experiência é que, embora partículas se comportem como feixes de possibilidades, o observador acaba por dissipar essas possibilidades em uma única realidade!
No caso do “ser aí” de Heidegger, embora ele carregue consigo todas as potencialidades, da forma mais aristotélica possível, não são todas as possibilidades que acabam por se tornarem reais, mas somente aquelas que o contexto temporal constrói. O tempo, nesse sentido, é como se fosse o observador que dissolve as possibilidades do ser em momentos de agora, e acaba por fazer dele um ente. Ainda assim, quando o ser se torna um “ser aí”, ou um “ser no mundo”, descrito por Heidegger pelo termo alemão intraduzível “Dasein”, o ser ainda possui em sua essência as suas potencialidades, e, concordando com Heráclito, além de Aristóteles, pode mudar a todo instante deixando de ser aquilo que era. É a manifestação do ser no fluxo do tempo que o massifica e o entifica, o distanciando de todas as potencialidades daquilo que ele poderia ser, ou até mesmo poderia querer ser, por força dos condicionantes externos, como a época em que o ser se manifestou, o contexto social em que foi inserido, a localização geográfica de sua existência, a condição econômica em que nasceu ou vive e todas as demais mazelas que são determinantes e inerentes à existência humana. Ao se entificar pelo contexto existencial ou pelo coletivo social, o ser é sufocado, distanciado e esquecido, o que deságua em uma existência agonizante, angustiante, superficial e, como diria Heidegger, em uma existência inautêntica.
Por fim, quando se aproxima do horizonte de temporalidade, e já bem próximo da morte o indivíduo se torna um “ser para a morte”, de sorte que quando morto, o ser retorna à sua essência, e pode ter, novamente, seus predicados adjetivados pelo “é”, uma vez que, embora todas suas potencialidades tenham morrido com ele, ele deixou de ser entificado pelo horizonte temporal. A partir da morte há propriedade para se referir a um ser usando o verbo ser no presente: ele “é”, pois houve um retorno ao “ser” em essência, sentida e percebida pelo indivíduo, segundo Heidegger, como sendo a angústia pela morte. Aqui, o indivíduo retorna à sua essência, há um retorno ao ser ontológico e o indivíduo reencontra sua verdadeira essência.
BIBLIOGRAFIA
CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1952.
HEIDEGGER, Martin. O Ser e o Tempo. Parte I. Tradução Márcia Sá Cavalcante Shuback. São Paulo: Editora Vozes, 2005.