O CONCEITO DE JUSTIÇA EM "A REPÚBLICA" DE PLATÃO
 
   busca por uma definição do que é justiça vai ser o estopim do livro A República de Platão. Ao folhearmos as primeiras páginas da obra, percebemos que Sócrates, personagem central do livro, antes de partir para a definição do que é propriamente a justiça, se ocupa de demonstrar o que a justiça não é. Platão usa Sócrates em seus diálogos para contrapor os conceitos apresentados por outros personagens como Céfalo, Polemarco, Trasímaco e Glauco, até que, após todos os argumentos e refutações, o próprio Sócrates reconhece que ainda não há uma definição satisfatória para o que é justiça e que, portanto, faz-se necessário continuar a investigação para encontrar tal definição.
     O primeiro argumento que Sócrates refuta é o de Céfalo, um idoso que vê com bons olhos a idade avançada tanto dele como de Sócrates, pois, segundo ele, na velhice o homem se vê liberto das paixões, podendo assim se dedicar à busca pela sabedoria. Céfalo conceitua a justiça dizendo que Justiça é dar a cada um o que lhe pertence. Sócrates mostra então que há situações em que entregar a alguém o que lhe pertença não é o mais justo a se fazer, como no caso de devolver a um amigo que perdeu o juízo uma arma que se tinha em posse por empréstimo, sabendo que o tal amigo pode com isso vir a morrer ou a matar. O argumento de Sócrates se solidifica ainda mais quando, atentando a aspectos antropológicos, percebemos que, na criação de seus filhos, os homens os privam de liberdade e não lhes dão autonomia de escolha até que atinjam uma idade avançada, até que tenham maturidade suficiente para tomar decisões por si mesmos. E fazem isso justamente para proteger sua prole e dar a ela segurança. Qual o pai que, em nome da liberdade que é devida ao filho, deixaria que este saísse engatinhando portão afora em direção a uma estrada movimentada? Qual pai daria ao filho autonomia para tomar decisões enquanto este fosse ainda um ser em desenvolvimento? Ou qual o pai não chegaria ao ponto de trancar o próprio filho em um quarto, se realmente essa fosse uma medida eficaz para impedir que ele fizesse uma loucura? Ou qual pai não usaria até mesmo a força para impedir que seu filho cometesse suicídio? Dar a cada um o que lhe pertence não parece ser mesmo uma boa definição de justiça, pois se assim fosse, não haveria um justo sequer.
     Surge, então, no diálogo, Polemarco, filho de Céfalo, trazendo outra definição para o problema lançado por Sócrates. Para Polemarco justiça é fazer bem aos amigos e fazer mal aos inimigos. Sócrates refuta essa definição dizendo que fazer o mal nunca é justo, uma vez que mal e justiça são incompatíveis. Essa refutação feita por Sócrates parece colidir em cheio com o senso comum que permeia o mundo atual, onde a justiça é percebida como sendo o ato de responsabilizar um infrator pelo crime cometido. Assim, se considerarmos que toda pena ou condenação é um mal aferido pelo Estado a um criminoso proporcionalmente ao crime cometido, então, para Sócrates, todo o sistema jurídico que conhecemos é injusto! É ainda mais interessante notar que o próprio Sócrates veio a ser condenado à morte por envenenamento, acusado de pregar o descrédito aos deuses de Atenas e corromper a juventude. Uma das coisas que mais nos comove nesse caso em específico é a gritante discrepância entre o crime do qual Sócrates foi acusado e a pena à qual foi condenado, além de a própria acusação em si ter sido já uma grande injustiça que se abateu sobre o filósofo. Um olhar atencioso ao rosto tranquilo de Sócrates, especialmente enquanto aguardava o veneno fazer efeito, nos revela que Sócrates sabia que nada acontece por acaso, que sua morte seria mais eloquente que qualquer discurso, que qualquer livro. Sócrates parecia saber que, após fechar os olhos de vez, a busca pela justiça nunca mais acabaria…
     Na sequência de A República, surge no diálogo agora Trasímaco, que era um sofista, e foram justamente os sofistas que sustentaram as acusações contra Sócrates e o queriam eliminado. Trasímaco entra no diálogo conceituando justiça como sendo a conveniência do mais forte. Sócrates refuta o sofista trazendo à memória um lutador de uma espécie de luta muito antiga (a qual daria escopo posteriormente à luta greco-romana), lutador esse que, segundo diziam, comia um boi por dia. Sócrates argumenta que seremos então justos se comermos um boi por dia. Trasímaco então, como bom orador que era, continua o diálogo dizendo que não só é verdade que a justiça é a conveniência do mais forte, como também a máxima conveniência é ser injusto, mas parecer justo. O sofista parece apresentar uma espécie de utilitarismo da justiça e para isso cita exemplos como o de um pastor que cuida o rebanho visando à lã do animal, cita o exemplo de um médico que visa ao lucro, sustentando que todas essas artes têm aparência de serem justas, mas na verdade são apenas conveniências dos mais fortes. Sócrates trata de esclarecer que cada arte é uma arte em específico e que a arte do comércio e do lucro é outra arte, uma arte que, por sua vez, se distingue das demais.
     O utilitarismo exposto por Trasímaco pode ser notado quando legisladores legislam em causa própria e fazem leis para atender as conveniências dos poderosos. Quando se toma a injustiça por justiça, quando a “justiça” é usada como uma ferramenta para atender a interesses escusos, acontece o que aconteceu com Sócrates. Quando Trasímaco está olhando para Sócrates e dizendo que a justiça é o que convém ao mais forte, é como se ele estivesse desnudando toda a crueza da realidade que cercava o momento que vivenciavam: Sócrates seria condenado e morto. Ainda assim, diante do terror da morte que se desenhava no seu futuro próximo, já sentindo o frio gelado da morte lhe percorrendo a espinha, Sócrates permaneceu firme e seus olhos nunca se desviaram do horizonte da justiça.
     Sócrates esclarece com muita veemência que justiça não é o mesmo que legalidade ou lei. É fácil perceber que nem tudo o que é legal é justo e que nem tudo o que é injusto é ilegal. Sócrates evidenciou isso na prática, fazendo com que a busca pelo conceito da justiça rompesse a abstração e se manifestasse na realidade, principalmente quando foi compelido por um amigo, Críton, a fugir da condenação à morte que recebera e recusou-se a fazê-lo. Sócrates se dispôs a cumprir a lei e a aceitar a pena que lhe foi imputada para mostrar que lei e justiça não são equivalentes, e para isso deu sua própria vida. Quando Platão escreve o diálogo Fédon relatando os últimos momentos da vida de Sócrates antes de ingerir o cálice de cicuta, além de estar apresentando a temática da imortalidade da alma e de como o filósofo encara a morte, estava também eternizando Sócrates e alavancando para a eternidade a investigação sobre o que é justiça. Quando Sócrates ingere a cicuta, ele não estava apenas envenenando seu corpo, mas também estava eternizando o que ele mesmo começou, eternizando a filosofia, e fazendo com que tanto ela quanto ele próprio alcançassem a imortalidade e sobrevivessem aos seus detratores.



BIBLIOGRAFIA:

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Tradução de Enrico Corvisieri.

PLATÃO. Fédon. São Paulo: Nova Cultural, 1991 Tradução de José Cavalcante de Souza

CORNFORD, F. M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego. Tradução Maria Manuela Rocheta dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1952.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 27/12/2019
Reeditado em 14/02/2021
Código do texto: T6828373
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