O CONCEITO DE JUSTIÇA EM PLATÃO
 
    A obra A República de Platão é um dos maiores clássicos da literatura ocidental e leitura obrigatória a todos aqueles que amam e buscam o conhecimento. Escrita em forma de diálogos e tendo Sócrates como personagem principal, a obra busca em seu transcurso, valendo-se de pontos e contrapontos, conceituar a Justiça a encontrar para ela um conceito que seja no mínimo satisfatório, um consenso sobre o que verdadeiramente é a justiça. É importante notar que Platão não encerra nenhuma discussão com conclusões dogmáticas em sua obra, aliás, ele não o faz em nenhum de seus escritos. Usando ironia e poesia, Platão atende ao grande plano de Sócrates, que é ensinar o método de investigação por excelência, o método para a busca da verdade, a ferramenta eficaz em busca do que é um conhecimento certo e indestrutível e que não sofre a corrosão do tempo. E não há nada de errado no fato de haver um teto, um limite, um terreno a ser ainda conhecido e investigado, uma aporia, pois não foi essa a preocupação nem de Sócrates nem de Platão, a de encerrar ideias conceituais ou doutrinas, tanto que não existe uma - vamos dizer - “doutrina” socrática. A República não fecha questões, antes, dispara o gatilho da investigação, deixando deliberadamente temas em aberto para investigações posteriores, dando à filosofia um atributo de constância temporal, legando à humanidade uma verdadeira herança.
     Foi por isso que Sócrates escolheu morrer; foi para cimentar o seu projeto que ele não passou de si o cálice de cicuta, foi para que o exercício da razão passasse a se constituir como a ferramenta absoluta na investigação da realidade. Não é por menos que a filosofia se divide entre antes e depois de Sócrates, com o período pré-socrático, socrático, e pós-socrático, um verdadeiro paralelo com a divisão dos séculos entre antes e depois de Cristo, paralelo que fica ainda mais acentuado quando se leva em conta que ambos se entregaram voluntariamente com vistas a um projeto muito maior que suas próprias vidas e que viria a abranger toda a humanidade.
     A justiça vai ser o fio condutor de toda A República, que se apoia na preocupação em definir o conceito de justiça. Hodiernamente, justiça pode ser equivocadamente entendida como o sistema legal e o aparato judiciário de um Estado, ela pode também ser confundida com uma pena, como quando um criminoso recebe uma sentença, dizendo-se que a justiça foi feita. Mas, partindo do diálogo platônico, podemos ir mais a fundo nessas concepções modernas e opacas de justiça para verificarmos se os atuais conceitos passam pelo crivo da investigação criteriosa.
     Pensar justiça como sendo a posterior condenação a quem cometa algum crime é um pensamento demasiado presente no senso comum. Será que encarcerar o assassino que matou alguém é fazer justiça? Se pensarmos justiça como sendo a busca pelo equilíbrio nos dois lados da balança não. A prisão do assassino não trará equilíbrio, pois não trará qualquer impacto sobre a morte da vítima nem sobre a dor dos que a choram. E se o assassino fosse condenado à morte? Isso traria equilíbrio? Pode parecer que sim, mas o efeito sobre a vítima é nulo, nada mais pode equilibrar o mal feito, nem a morte do assassino poderá trazer à vida novamente a vítima. Porque então encarceramos e sentimos alento e certo conforto em ver penas sendo aplicadas a criminosos? Fato é que o encarceramento não é em si mesmo uma manifestação da justiça, tampouco é uma “ressocialização”, porque o sistema prisional não só não recupera os presos para o convívio social como não tem esse desejo como uma coisa séria. Em verdade, olhando bem de perto, percebe-se que a real intenção do aprisionamento, conquanto seja um esforço um tanto quanto inútil em busca da justiça, não é ressocializar o apenado, mas é, antes de tudo, tirar do convívio social aqueles que trazem perigo e ameaçam a segurança individual e coletiva. Deixando de lado os eufemismos, os quais nunca me atraíram, e fazendo uso de disfemismos, os quais esses sim vejo como próprios para quem quer ser sincero, direto e fugir da hipocrisia, posso dizer que em alguns casos os criminosos são presos porque ninguém mais os aguenta em sociedade, sendo assim trancafiados como verdadeiros selvagens, incivilizados, aviltadores e desprezadores da vida, causadores de males que são impossíveis de serem reparados, agentes que tornam a justiça impossível de ser alcançada por quaisquer dos meios disponíveis nessa existência.
     Como poderia então uma vítima ser vingada, uma vítima ter sua honra lavada pela justiça? É interessante notar aqui que muito antes de Platão, no Oriente Médio, especificamente na região da Mesopotâmia, tanto os babilônicos quanto os hebreus já tinham seus códigos civis e um senso de justiça bem arraigados e sólidos. O código de Hamurabi consistia na rigorosa reciprocidade do crime e da pena. Por sua vez, o Pentateuco, reunião dos cinco livros sagrados dos hebreus, que são também os cinco primeiros livros da Bíblia cristã, prevê em Êxodo 21: 24, 25: “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.” Parece, então, que para Deus a condenação do infrator a uma pena proporcional ao crime cometido é a maneira como deve se dar a aplicação da justiça. É claro que me é temerário contrapor esse senso de justiça, uma vez que está contido em um livro sagrado e é atributo de um Deus que tem na justiça a base do Seu trono. Para que eu me apresentasse reprovando esse método, eu precisaria apresentar outro remédio para a chaga da injustiça e, infelizmente, eu não o tenho; mas, ao mesmo tempo, pouco eu teria a opor, posto que a proporcionalidade é verdadeiramente um dos princípios mais fundamentais da justiça. Quando deixamos a areia da praia e avançamos um pouco mais nessas águas, notamos que as leis divinas contidas no livro sagrado são, também, um paliativo, não uma solução final e eficaz, pois o próprio livro traz com muito vigor e terror a ideia de um Juízo Final, onde cada ação ou omissão será cobrada e recompensada com sentenças peremptórias que se estenderão, terrivelmente, por toda a eternidade.
     Ao olharmos para os sistemas jurídicos do mundo buscando um que seja o mais justo ou um lugar onde impere a justiça, o que percebemos é o reino total das injustiças. Quem quer que seja que sinta inconformismo com as injustiças de seu país e pense em buscar outro lugar para viver, não demorará a perceber, depois de passar os olhos sobre toda a Terra buscando um lugar onde a justiça de fato impere, que esse lugar não pode ser encontrado. Tal sondagem só faz aumentar ainda mais a sede e a fome que as injustiças causam em quem as testemunha; a geografia se apresenta como mais uma aposta fracassada, como mais uma, senão a derradeira, desilusão. É notória a sede de justiça que o ser humano carrega em seu ser, há algo nele que se convulsiona diante das injustiças, e é por isso que se busca pela justiça nos mais variados aspectos da realidade: busca-se inutilmente encontrá-la em instituições e, quando ali não encontrada, busca-se por ela em sistemas jurídicos, quando a busca ali também  fracassa, parte-se para a geografia, e no fim de tudo só o que se acumula são as decepções e as desilusões, é a sede causticante, como se em cada uma dessas fontes visitadas a água encontrada para matar a sede fosse salgada.
     Resta acreditar que um dia brilhará o sol da justiça, que todas as ações humanas serão pesadas e devidamente recompensadas. Não fosse assim, não houvesse essa esperança, o mundo seria um caos entregue à própria sorte, onde não importaria mais o que é certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, pois não haveria uma colheita para o que se é semeado; não haveria razões para fugir da injustiça, uma vez que a impunidade reinaria absoluta. Foi precisamente buscando dar esperança e consolo aos sedentos que Cristo disse as palavras que foram registradas por Mateus em seu Evangelho, no capítulo 5 e no verso 6: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos”.


BIBLIOGRAFIA:

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil.

PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Tradução de Enrico Corvisieri.

COLLI, G. O Nascimento da Filosofia. Tradução Federico Carotti. 3. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 27/12/2019
Reeditado em 14/02/2021
Código do texto: T6828361
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