O CONCEITO DE JUSTIÇA EM SANTO AGOSTINHO

 

     Santo Agostinho viveu na época do declínio do Império Romano do Ocidente, entre os séculos IV e V da era cristã. Agostinho foi filósofo, teólogo e Bispo na cidade de Hipona. Mais ainda, é um dos nomes mais exponenciais da patrística, período da filosofia medieval em que os pais (padres) da Igreja Católica formulavam as bases da doutrina cristã. O trabalho e a obra de Agostinho figurariam como a doutrina predominante do cristianismo por pelo menos mil anos (se bem que a densidade de sua obra a faz contemporânea a qualquer época), se arrastando durante toda a Idade Média até o surgimento da escolástica (séc. IX) e de São Tomás de Aquino, no século XIII, pouco tempo antes da tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos e a consequente queda do Império Romano do Oriente, evento que marca o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna.
     A filosofia agostiniana se caracteriza pelo resgate das obras de Platão e pela absorção de sua filosofia platônica pelo cristianismo, fazendo com que a doutrina cristã rompesse a simples confissão de fé e se tornasse um sistema sólido, inteligível e, principalmente, racional. Valendo-se da dicotomia platônica, Agostinho compara a justiça divina e a justiça humana com o mundo das ideias (ideal) e o mundo sensível. Assim como para Platão o mundo sensível é uma apenas cópia imperfeita do mundo ideal, para Agostinho a justiça humana é uma apenas uma representação falha e pálida da justiça divina.
     Quando o Bispo Agostinho conceitua a justiça, ele delimita suas concepções dizendo que só a justiça divina é boa e perfeita, enquanto a humana é errônea e corruptível. Sendo Deus amor em essência, a única forma de o homem ser justo é atendendo aos princípios divinos e balizando todos os seus atos pelo amor. A virtude da justiça vai consistir em viver-se o amor, pelo amor, e para o amor. O próprio Cristo já havia resumido toda a lei do Antigo Testamento em dois preceitos fundamentais, sendo eles amar a deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. A criação, como alvo do amor de um verdadeiro justo, é a expressão mais eloquente que possibilita o reconhecimento de que Deus é a ordem que sustenta e fundamenta toda a existência. Por certo, Agostinho leu Atos 17:25c: “...Porque Ele mesmo dá a todos a vida, a respiração e todas as coisas.”, e Romanos 11:36: “Porque dEle e por Ele, e para Ele são todas as coisas...
     Uma vez verificada a ordem fundamental de toda a criação em Deus, o homem passa a pautar todas as suas deliberações pelo prisma do amor, agindo assim de forma justa, ciente de que a justiça divina um dia lhe pedirá conta de todos os seus atos. Inclusive, uma das doutrinas mais terríveis do cristianismo é justamente no tocante à escatologia, a doutrina do Juízo Final, a crença de que um dia cada ser humano dará conta de suas obras diante de Deus, o qual julgará segundo sua reta e perfeita justiça e mandará os maus para o inferno e os bons para a glória celeste. O tema da justiça divina é abordado pelo apóstolo Paulo no segundo capítulo da epístola aos Romanos e mostra que a justiça divina é um ato soberano de Deus, independente da vontade humana. A teologia paulina apresenta todos os homens como condenados e merecedores do inferno. Todo o Velho Testamento apontava que o pecado necessitava ser expiado pelo sacrifício, que era necessário uma oferta de sangue para que o homem pudesse ser justificado diante de Deus. Em Jesus, o sacrifício foi suficiente e cabal, de forma que é pelo sacrifício de Jesus que os homens são resgatados do inferno e são justificados diante de Deus. É a justiça de Deus que justifica ou condena o homem.
     Agostinho, após mudar para sua cidade natal, Tagaste, na atual Argélia, e fundar ali um mosteiro, passa pela perda de sua mãe e, mais tarde, pela perda de seu filho, Adeodato. É nesse momento de sua vida que ele experimenta da forma mais crua e terrível o que Paulo quis dizer em I Coríntios 13:4: “O amor é sofredor.”. Agostinho apreende exatamente o que o apóstolo Paulo quis dizer quando pegou sua pena, a molhou no pigmento e a deslizou sobre o papiro. O Bispo experimenta uma das maiores dores - se não a maior - que um ser humano pode sentir: a dor de ter que enterrar um filho e sobreviver a ele. A dor sentida é proporcional ao amor sentido; a monstruosidade desse ocorrido se localiza na tragédia antinatural à estrutura humana. O natural da vida é os filhos enterrarem seus pais, todavia, quando um pai tem que pegar um filho sem vida nos braços e o conduzir até uma sepultura, essa é, sem dúvida, uma das mais terríveis desgraças que podem se abater sobre um homem. Ainda assim, Agostinho continua firme em sua fé, acreditando no amor, pois também confiava no que Paulo escreveu em I Coríntios 13:8a: “O amor nunca falha...”. Assim como Deus expressou seu amor enviando ao mundo o “Logos” encarnado, seu filho Jesus, para dar a própria vida em expiação pelos pecados de muitos, cada cristão deve imitar a Cristo e viver não para si, mas para Deus e para o seu próximo, tendo no amor a regra máxima de fé e conduta.
     Agostinho ainda veria a invasão e tomada de Roma pelo rei visigótico Alarico e o cerco à cidade de Hipona. Em meio ao caos de sua época, onde a ordem estatal estava esfacelada, se via o fim de um império de quinhentos anos, um império que era por muitos considerado como o “Império Eterno”, a grande águia de ferro: o Império Romano. É nesse pulsar efervescente que Agostinho aponta as causas da queda do Império Romano como sendo a promiscuidade, a idolatria, a corrupção e o caráter pecaminoso do homem. Agostinho calcifica o alicerce de toda a teologia que virá a ser defendida pela Igreja na Idade Média. Sendo ele o último dos filósofos antigos (e o primeiro dos medievais), eternizou seu nome na história ao lado de Sócrates, Platão e Aristóteles. Acerca dos fatos históricos acontecidos à época de Santo Agostinho, assim escreveu Eric Voegelin:
 
     O golpe final que ameaçou aniquilar a igreja numa onda de ressentimento do mundo pagão veio com a pressão crescente das tribos germânicas sobre o império e, em particular, o saque de Roma por Alarico em 410 d. C. A conquista do símbolo da eternidade romana pelos bárbaros teve grande repercussão no sentimento popular, uma vez que os pagãos, naturalmente, culparam a cristianização do império como a causa do desastre, ficando os cristãos profundamente perturbados pelo fato de que a própria cristianização nada pôde evitar. É nesta situação que, após 410 d. C., Agostinho começa a escrever o seu tratado De Civitate Dei Contra Paganos, completada em 426, como um discurso político buscando refutar os argumentos populares sobre a culpa ou ineficácia do cristianismo diante da catástrofe de Roma.[1]

    Depois de Agostinho, a Igreja Católica vai se consolidar por um longo período como a única instituição com funções administrativas e de ordem social da Europa Ocidental, em função do esfacelamento do Império Romano e da criação dos feudos. É arraigada nessa justiça baseada no amor que a Igreja Católica viria a ser, tanto na Idade Média quanto nos tempos modernos, uma das poucas instituições mundiais a manter orfanatos, hospitais, escolas, asilos e lares para acolhimento de pessoas desamparadas, isso quando não era a única. Esse foi o legado de Santo Agostinho: o homem que age guiado pelo amor a Deus e à sua criação é um homem que pode verdadeiramente ser chamado de justo.

 


[1] VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas - Vol. 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012. Pág. 272.



BIBLIOGRAFIA:

AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. 3 volumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991 (vol. 1), 1993 (vol. 2) e 1995 (vol. 3).

BÍBLIA. Português. Bíblia de Referência Thompson. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e corr. Compilado e redigido por Frank Charles Thompson. São Paulo: Vida, 1992.

HINRICHSEN, Luís Evandro. Agostinho e a Cidade: de Deus ou dos homens? – Sobre a inquieta dinâmica da paz. In: Civitas Augustiniana, Porto, volume 1, número 1, 2012.
 
VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas - Vol. 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012.

Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 27/12/2019
Reeditado em 04/11/2021
Código do texto: T6828202
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