A JUSTIÇA EM SANTO AGOSTINHO
Santo Agostinho nasceu em Tagaste, norte da África, em 354 depois do nascimento de Jesus, e foi o último dos filósofos antigos, vindo a falecer no dia vinte e oito de agosto do ano 420 da era cristã. Agostinho de Hipona abordou temas como a fragilidade humana, a natureza do mal, a graça divina, o livre arbítrio, o amor, e também a justiça. Sua obra, publicada em Princeton, tem vinte e dois volumes, sendo que alguns volumes contêm mais de um livro. Quando Aurélio Agostinho aborda o tema da justiça em seu livro A Cidade de Deus, ele o faz se valendo da dialética platônica, em uma explícita analogia entre o mundo inteligível (das ideias), e o mundo sensível. Santo Agostinho se vale dessa dicotomia tanto para distinguir a cidade de Deus das cidades dos homens quanto para distinguir a justiça divina da justiça humana. Agostinho se propõe a fazer a reconciliação entre a fé e a razão, mostrando que elas não são antagônicas, mas podem fundir-se e edificar a apologia da fé, onde os fundamentos dogmáticos passam pelos critérios de cientificidade da filosofia. A “razão” dita aqui não se refere apenas ao pensamento lógico racional, mas, antes disso, busca a correta e verdadeira percepção da estrutura da realidade e a usa como fundamento para o atingimento de verdades mais elevadas.
A partir dos patrísticos, a estrutura da razão passa a ser usada como autoridade e não mais somente a revelação do Texto Sagrado. É perceptível e notório o contraste entre este período e o moderno: os filósofos medievais se valeram da razão para embasar sua fé e, mais tarde, até mesmo dialogaram filosoficamente com os muçulmanos, os quais, aliás, não tinham a mesma base de revelação religiosa; já nos dias modernos, entende-se “razão” como sendo a ruptura e o desprezo a tudo aquilo que é religioso ou que transcenda a pura matéria observável, justamente por não se encaixar nos critérios metodológicos e cientificistas de aferição da verdade.
O próprio apóstolo Paulo durante seu ministério já percebera que o cristianismo não poderia se embasar apenas em uma questão de fé, é por isso que em suas viagens missionárias e em suas epístolas às igrejas percebe-se a erudição da qual ele se valia, erudição advinda do fato de ser ele educado por Gamaliel, um doutor da lei judaica. O Apóstolo dos Gentios também era um cidadão romano e, por isso, gozava e reivindicava seus direitos como tal, conforme registrado em Atos 25: 10, episódio em que pede para ser julgado diante de César. Paulo também era um poliglota, falava o aramaico, o latim e o grego e, por conseguinte, conhecia bem o pensamento filosófico grego. Enfim, Paulo carregava a tradição judaica, a civilidade romana e a filosofia grega, Paulo possuía o que chamamos hoje de “cultura ocidental”. Quando, em seu ministério, Paulo fundava as bases do cristianismo, ele não hesitou em usar todas as armas da razão em sua empreitada. Em Atos 9: 22 está escrito que Paulo pregava “provando que Jesus era o Cristo”.
Paulo fala em suas cartas sobre a racionalidade nos momentos devocionais, o “culto racional” (Romanos 12: 1), e se coloca como apologeta da fé em Filipenses 1: 16b: “...sabendo que eu fui posto para defesa da fé”. Antes dos patrísticos lançarem as bases para os dogmas da Igreja, foi Paulo o escolhido por Deus para delinear a espinha dorsal do cristianismo, principalmente com a carta aos Romanos, na qual o apóstolo trata diretamente da questão da justiça divina e que somada ao Evangelho de João, constitui com ele as que são consideradas como as torres gêmeas do cristianismo. Alcançar a verdade e a felicidade é a base que sustenta toda a teologia agostiniana, e para isso a razão é uma ferramenta indispensável.
A dialética platônica, como já dito, é expressa no livro A Cidade de Deus pelo dualismo entre a cidade de Deus e a cidade dos homens; aquela representada em Abel, esta representada em Caim, aquela com origem no amor de Deus, esta com origem no amor a si mesmo, aquela tem o seu governante escolhido por Deus, esta tem na fragilidade do livre arbítrio as suas bases. A justiça humana apresentada pelo Bispo de Hipona é, assim como os homens, falha, imperfeita e sujeita ao aspecto temporal e espacial. Uma vez que o livre arbítrio do homem o leva à corrupção através de escolhas erradas, essa falibilidade também é percebida na justiça que é feita pelos homens. É por essa natureza corrompida que acontecem na justiça humana certas injustiças, desvios, corrupções e uma limitação de caráter social, em função das especificidades e relatividades nas quais o homem está inserido. Já a justiça divina é descrita pelo filósofo como sendo perfeita, infalível, eterna, imutável, boa e justa. Na justiça agostiniana, somente Deus é perfeitamente justo, os homens, por sua vez, são incapazes de serem justos, e isso por causa da mácula que carregam do pecado original e da descendência pecaminosa da semente de Adão. Essa concepção amarra com maestria a dialética platônica às doutrinas do cristianismo.
As leis, para Santo Agostinho, estão classificadas como sendo a lei eterna (lex aeterna), que representa a razão e a vontade de Deus, a lei natural (lex naturae), que representa a lei eterna na mente humana, e a lei temporal (lex temporalis), que representa o direito positivo, a justiça humana. Essa justiça "humana" não recebe à toa esse adjetivo, mas vem carregada em sua essência das relatividades das relações humanas, como as limitações circunstanciais e proporcionais e é, por sua vez, apenas uma imagem do ideal: a justiça divina.
Tratando especificamente da justiça, Agostinho a vê como uma das quatro virtudes da alma, além da força, da prudência, e da temperança. Justiça é, portanto, uma virtude da qual outras virtudes derivam-se. Sendo virtude, a justiça passa pelo crivo do hábito para se consolidar como virtude em si, como qualidade daquele que é justo, daquele que pratica a justiça. Segundo Eric Voegelin, nesse sentido Santo Agostinho discordou das ideias de Cícero e de seu autoritarismo legalista:
“Ele dá voz ao protesto do espírito contra a proteção complacente das iniquidades governamentais pelo vocabulário jurídico; deixa muito claro que uma ordem jurídica funcional pode ser injusta. E dá voz ao protesto do empirista contra qualquer tentativa de construir o povo a partir de formas jurídicas. Como resultado teórico, podemos resumir que o povo e sua civilização são uma coisa; a organização jurídica do povo outra; e o espírito de justiça, uma terceira.”[1]
Enquanto no pensamento grego a justiça estava representada na ordem cósmica, na justiça agostiniana a base está no fato de Deus sustentar todas as coisas possíveis e impossíveis. No reconhecimento da soberania de um Deus eterno e que sustenta o universo é que se tem a justiça como a virtude que consiste na realização do maior mandamento cristão: amar ao próximo como a si mesmo. Sendo, pois, Agostinho um profundo conhecedor das Sagradas Letras, ele sabia muito bem que o amor era o norte para a prática cristã, que o amor estava fincado nas bases dos evangelhos e das cartas paulinas. Agostinho sabia do caráter altruísta que a prática cristã pautada pelo amor tem. Ele trata de justiça como sendo uma “ética do amor”, onde o justo ama a Deus acima de tudo e ama também as coisas e os seres criados por Deus. “Qualquer que ama é nascido de Deus e conhece a Deus.” (I João 4: 7b). Assim, A virtude da justiça para Agostinho significava viver segundo Deus, em amor.
BIBLIOGRAFIA:
AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. 3 volumes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991 (vol. 1), 1993 (vol. 2) e 1995 (vol. 3).
BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.
STREFLING, Sérgio Ricardo. A filosofia Política na Idade Média. Pelotas: NEPFil Online, 2016.
VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas - Vol. 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012.
[1] VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas - Vol. 1: Helenismo, Roma e Cristianismo Primitivo. Tradução de Mendo Castro Henriques. São Paulo: É Realizações, 2012. Pág. 284.