Os da minha rua: os traços da educação luandesa revelados nas memórias e nos afetos da infância de Ondjaki

Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP)

Artigo desenvolvido em Pedagogia, através da disciplina História da Educação I como parte dos requisitos para aprovação.

Docente: Profª Drª Maria Ângela Borges Salvadori

Monitora: Verônica Rodrigues

Discente: Beatriz Helena Cunha

RESUMO

Este artigo tem como objetivo analisar o livro Os da minha rua, do escritor angolano Ondjaki, buscando indícios e traços que revelam o tipo de educação retratada no contexto africano apresentado, estabelecendo conexões e reflexões com o que foi visto e discutido ao longo do semestre na disciplina de História da Educação I.

INTRODUÇÃO

A obra Os da minha rua do escritor angolano Ondjaki (pseudônimo de Ndalu de Almeida), proseia com sumo desvelo e sensibilidade os mais marcantes traços de seu espaço social, dialogando com a rica tradição literária já consolidada em seu país. Composta por vinte e dois curtos textos que podem ser lidos de forma independente e publicada em 2007, a coletânea celebra a infância feliz do protagonista asmático Ndalu, que narra suas aventuras em Luanda, capital da Angola, entre as décadas de 1980 e 1990.

Cativa por sua linguagem infantil, aconchegante, simples, leve e ingênua, carregada de oralidade, sem muitas análises ou reflexões, dando as devidas atribuições e caracterizações das personagens de forma lúdica, misturando realidade e imaginação. Sutilmente, revela problemas e contradições de uma Angola que acabara de passar pelo processo de independência (1975) em meio aos avanços da globalização, que coloca este país participante com o resto do mundo.

Fazendo uma breve contextualização histórica, depois de ser exaustivamente explorada, Angola só conquistou sua independência do domínio português em 1975, após uma longa guerra de libertação. Mas, caiu em uma intensa e violenta Guerra Civil nas quais três movimentos libertários disputaram o controle com apoio dos socialistas (especialmente Cuba e a ex-União Soviética) e dos capitalistas (Estados Unidos) e das forças armadas do apartheid da África do Sul.

Durante todo esse período de guerra, as maiores influências do país eram de soviéticos, cubanos e brasileiros. As tropas cubanas permaneceram durante quinze anos em Angola – quando a ideia inicial era ficar somente dois anos – com a missão de ajudar os angolanos após a independência. Cuba fez uma intervenção militar (Operação Carlota), enviou reforço das tropas, bem como médicos, construtores e professores (citados no livro). O país contava com vestígios dos conflitos por toda parte: presença de poucos produtos novos entrando, professores cubanos e o preconceito racial.

Na reconstituição do universo da infância, o leitor acompanha a experiência individual e os conflitos que retratam a experiência coletiva. Ao mesmo tempo que nos encantamos com as histórias do narrador-menino com seus familiares, colegas e professores, a literatura também faz crítica, ainda que subliminarmente nas linhas, aos problemas de abastecimento associados ao desempenho do regime econômico adotado, dos destroços da guerra e do descompasso gerado pela modernidade e pelas economias de mercado. O tom intimista das cenas desafia os limites entre biografia e ficção, fazendo registro de uma época em Angola.

Para melhor elucidarmos o acima, destacaremos o conto “A televisão mais bonita do mundo”. Neste capítulo, Ndalu acompanha seu tio Chico à casa do seu amigo Lima, onde faria sua maior descoberta: uma televisão nova e com imagem colorida que o amigo de seu tio acabara de receber. O tamanho de sua surpresa foi o mesmo de sua inveja dos filhos de Lima, que poderiam ver cores naquela televisão todos os dias, acompanhariam a novela brasileira O Bem amado ou a Pantera cor-de-rosa.

Entramos todos, mas até tenho que dizer aqui uma coisa. Nessa altura, em Luanda, não apareciam muitos brinquedos novos nem coisas assim novas. Então nós, as crianças, tínhamos sempre o radar ligado para qualquer coisa nova. Mal entrámos no quintal, vi uma caixa bem grande e restos de esferivite no chão. Isso só podia significar uma coisa: havia material novo naquela casa, podia ser fogão, geleira ou outra coisa qualquer […]. (ONDJAKI, 2007, p. 24)

Aqui, fica clara a presença de um tempo histórico limitado quanto à oferta de produtos industrializados de consumo, fruto das marcas de uma economia planejada e controlada pelo Estado. Embora o narrador-personagem não descreva nenhuma história de uma guerra que durara até os anos 1990, as referências estão implicitamente (ou explicitamente) lá, o contexto já se tornou um fato do cotidiano.

Chegámos à casa do sacana do Lima numa rua bem escura que era preciso cuidado quando andávamos para não pisar nas poças de água nem na dibinga dos cães. Eu ainda avisei a tia Rosa, ‘cuidado com as minas’, ela não sabia que ‘minas’ era o código para o cocó quando estava assim na rua pronto para ser pisado. (ONDJAKI, 2007, p. 22 e 23)

Cheiros, lugares, músicas, lembranças, paixões, festas, pessoas. O lirismo se encarrega pela forma poética declarada do autor que busca recordar os velhos tempos em vários flashes que são capturados naquela rua e nas adjacentes. Essas histórias constroem uma ideia de unidade, assumidas num tempo e num espaço, marcadas pela transitoriedade. A pressa na escrita, com frases curtas, anseia por contar outros lados da vida, antes de lidar com os impactos das mudanças e das despedidas. A preocupação com a estrutura e a linguagem, o ritmo da oralidade, exprimem o conjunto de vocábulos da língua portuguesa falada em Angola. Faz-se uso constante dos verbos conjugados no pretérito, deixando a narrativa mais linear. Registram os fios da memória que, imbuídas pelos cheiros das despedidas, preanunciam a melancolia do momento em que o país também entra para a vida adulta e aprende a viver como as crianças o contam.

Fazendo crônicas do cotidiano, as crianças que dão vida às histórias protagonizam nas brincadeiras de rua ou domésticas, aventuras e peripécias, consagrando à infância tempo de travessuras, fantasias, um universo único, singular e mágico.

Uma pessoa quando é criança parece que tem a boca preparada para sabores bem diferentes sem serem muito picantes de arder na língua. São misturas que inventam uma poesia mastigada tipo segredos de fim da tarde. (ONDJAKI, 2007, p. 79)

Os da minha rua carrega memória, afeto e identidade. Ao reconstruir o universo de sua infância e a vida que levava em Luanda, Ondjaki atesta a forma como se dava o convívio social em uma terra que, antes cindida, queria se fazer unida.

Enxergar o mundo pelos olhos de uma criança é singelo e poético. Essa literatura assume um caráter distante da reflexão e de crítica direta, é a felicidade e a alegria ao recordar e brincar com as palavras como no mundo da fabulação. Por meio de metáforas, emoções e sinestesias que dão novos sentidos e costuram frases de efeito impactantes, o leitor é provocado a evocar a própria infância, a seu próprio tempo. É como se Ondjaki traduzisse uma infância internacional que embora seja de Luanda, é comum à infância de outros lugares do mundo.

A vida às vezes é como um jogo brincado na rua: estamos no último minuto de uma brincadeira bem quente e não sabemos que a qualquer momento pode chegar um mais velho a avisar que a brincadeira já acabou e está na hora de jantar. (ONDJAKI, 2007, p. 59)

Assim, entre um riso e outro, o narrador-menino também revela a passagem do tempo pelas descobertas da adolescência, somada às despedidas de tudo que está ligado ou que remete à infância. O primeiro beijo, a parada de 1º de maio, uma piscina de Coca-Cola, a novela brasileira Roque Santeiro e a mudança de escola fazem parte do universo desse garoto que, ao crescer, é tomado por novas e estranhas sensações e estados emocionais.

Eu acho que nunca cheguei a dizer a ninguém, talvez só mesmo à Romina, mas na minha cabeça eu sempre escondia este pensamento: as despedidas têm cheiro. E não é cheiro bom tipo chá-de-caxinde, ou as plantas a darem ares duma primeira respiração na frescura da manhã, entre silêncios e cacimbos molhados. Não. Despedida tem cheiro de amizade cinzenta. Nem sei bem o que isso é, nem quero saber. Não gosto mesmo de despedidas. (ONDJAKI, 2007, p. 119)

DISCUSSÃO

Com uma escrita singular da literatura africana, regada de sentimentos e memória, Ondjaki nos faz conhecer a sua vida, sua terra e sua cultura. Revela a importância familiar no processo de formação e constituição do cidadão e o quanto o africano prioriza isso.

Vi um sorriso pequenino na boca do tio Joaquim. Às vezes, ele aparecia no quintal sem fazer ruído e espreitava a nossa brincadeira sem corrigir nada. Olhava de longe como se fosse uma criança quieta com inveja de vir brincar conosco. (ONDJAKI, 2007, p. 29)

Nota-se uma aprendizagem desprendida de qualquer castração. Existe uma liberdade para se aprender com as coisas da vida.

Quando chegou o capítulo das relações sexuais, eu gostei muito daquelas fotografias do homem deitado todo nu com a mulher e da parte que dizia que, para fazer um filho, “o homem introduzia suavemente o pênis na vagina da mulher”. Eu nunca queria avançar esse capítulo. A minha mãe é muito querida porque ela sabia que já tínhamos passado aquele capítulo, mas deixou-me repetir a lição. (ONDJAKI, 2007, p. 50)

Assim como a avó Catarina e a tia Maria, a avó Agnette (avó materna de Ndalu) simboliza a figura da experiência, nela está contida a história de um povo. É por meio dos mais velhos que a tradição africana se perpetua e difunde, através das histórias que eles contam – as quais fica evidente no livro o quanto Ondjaki gostava de ouvi-las. O respeito pelos mais velhos é intrínseco à educação africana. Quando um idoso morre na África, acredita-se que uma parte da história morre junto com ele.

[...] a avó Agnette continuava a partilhar as noites comigo, contando, inventando, alterando as estórias todas, as de antigamente, as do presente e as outras, como se o tempo fosse o saco de ar com bolinhas que ela gostava de rebentar, como se, às 2h da manhã — entre risos de cumplicidade, olhares de fascínio que acendiam a madrugada, ternuras faladas como se fossem verdades de ofertar —, ela me dissesse, devagarinho, com a voz convicta e os factos arrumados caoticamente, que o futuro não era uma coisa invisível que gostava de ficar muito à frente de nós, mas antes [...] (ONDJAKI, 2007, p. 143)

Ndalu narra diversos momentos em que aprendia algo com algum parente ou conhecido mais velho, seja um tio, um primo ou amigos da família. Detalha toda a preparação para ouvir as histórias, a ansiedade, a alegria ou o medo que tomavam conta do corpo todo. A participação dos amigos da rua também era bem-vinda. Sentavam-se na varanda e lá, fascinados e deslumbrados, se prendiam aos contos. Reações de espanto, de medo, bocas abertas, olhos brilhando como faíscas, gargalhadas. Mistos de emoções, mergulho nas viagens históricas que anunciam também a história daquele povo.

Ainda que os familiares, especialmente os progenitores, não consigam evitar as exposições aos conflitos sociais, privilegiam acima de tudo a educação e escolarização dos filhos para que possam prosperar de um futuro melhor. Isso fica claro quando o protagonista narra a preocupação de sua mãe com o atraso no início da escola Juventude em Luta e logo o transfere para a escola Mutu Ya Kevela, que tinha sua fama e reputação entre os jovens resumida pelas brincadeiras perigosas e violentas.

As novelas e as outras culturas de massa que são apresentadas, por sua vez, também desempenham um papel importante na socialização e educação das crianças e pelas qualidades artísticas e personagens singulares que ficam para sempre na memória das pessoas. Deixam um legado cultural e linguístico importante.

Embora a educação seja uma tarefa do casal, há funções específicas que competem à mulher, como os cuidados com a rotina diária das crianças alimentação, higiene e estudos – revelando uma cultura e uma tradição de protagonismo feminino.

Podemos dizer ao colher indícios e passagens do livro que o tipo de educação nessa comunidade deriva das premissas da educação familiar, em que as histórias, os costumes, os hábitos, os princípios, os valores e a estrutura do pensamento em cada linguagem (artística, epistemológica, social, filosófica, lógica, etc) são pautados, dentro de uma ética-moral e estética, na transmissão oral dentro de cada unidade familiar ou da comunidade na qual o sujeito está inserido, onde irá se constituir enquanto cidadão.

De forma simples, mas singular, o narrador-personagem demonstra as percepções de si nas relações próprias da infância, estabelecidas na aprendizagem de tempo e espaço, compreendidos aqui por lugar, passagem do tempo, mudanças climáticas, horas, dias, meses, anos.

Quando a Petra entrou na sala já deviam ser umas 3h da tarde. Lembro-me disso porque sabíamos mais ou menos as horas pelo modo como as sombras invadiam a sala de aulas. (ODJAKI, 2007, p. 85)

Parecia que (Charlita) já estava há muito tempo na Tuga, mas os da casa dela falavam em três semanas. Naquele tempo o tempo então passava devagar e, à noite, nós íamos ver telenovela na casa do senhor Tuarles. (ONDJAKI, 2007, p. 109)

Ou ainda:

O carnaval também chegava sempre de repente. Nós, as crianças, vivíamos num tempo fora do tempo, sem nunca sabermos dos calendários de verdade. Para nós segunda-feira era um dia de começar a semana de aulas e sexta-feira significava que íamos ter dois dias sem aulas. Depois as datas eram assim isoladas: Carnaval da Vitória, dia do trabalhador, dia um das crianças, férias grandes, feriado da Independência e o Natal com o fim de ano também já a chegar. O carnaval, tinha que ser anunciado pelos mais velhos, como se nós, as crianças, vivêssemos numa vida distraída ao sabor da escola e da casa da avó Agnette. (ONDJAKI, 2007, p. 59)

A compreensão e dimensão dos sentidos e significados das comemorações e celebrações eram obtidas pela bagagem dos saberes dos mais velhos, traduzidas pelo olhar das crianças que, por sua vez, criavam seus próprios sentidos.

Ficamos todos a ver o desfile e era um mês de março. O locutor deu alguma informação errada sobre o carnaval, e um dos primos disse que não era assim, que aquele era o Carnaval da Vitória porque a 27 de março se comemorava o dia me que as forças armadas tinham expulsado o último sul-africano de solo angolano, e bué de gente começou a estigar porque ali não estávamos em nenhuma aula e não queriam lição de história. Mas eu pensei que o meu primo tinha razão. (ONDJAKI, 2007, p. 63)

Filho de professora, Ndalu demonstra o grande afeto que ele e seus colegas nutriam pelos professores cubanos, que exerceram grande influência em sua formação e educação. Em paralelo, revela também um sentimento de agradecimento e valorização comum, desse povo que encontrou na vida escolar (consagrada como direito para todos os cidadãos pela Lei Constitucional Angolana) a saída para os conflitos gerados pelas guerras, e desses professores que se empenharam na construção de uma sociedade baseada no respeito e na colaboração. As imagens da escola são de um espaço de aprendizado e amizade.

Nas despedidas acontece isso: a ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste, a saudade semeia lágrimas, e nós, as crianças, não sabemos arrumar essas coisas dentro do nosso coração. (ONDJAKI, 2007, p. 122)

A passagem da infância para a adolescência também é contada pelas aprendizagens e percepções das mudanças físicas, emocionais e comportamentais. A primeira paixão, a despedida dos professores cubanos que se retiravam de solo luandês, os sentidos de coisas da infância que ganham um outro lugar e são resignificadas, a relação com as emoções e uma postura quase imposta pelo crescimento, associada ao amadurecimento de uma identidade que se afirma e ganha novos contornos nos grupos sociais.

Dá-se, por fim, destaque ao capítulo “Nós choramos pelo Cão Tinhoso”, que simboliza em suas linhas a melancolia e a tristeza que quase arrancam lágrimas de um grupo que já proibia os rapazes de chorarem na frente dos outros; e ao capítulo “Palavras para o velho abacateiro” que traz o peso da metáfora:

(...) o abacateiro estremeceu como se fosse a última vez que eu ia olhar para ele e pensar que ele se mexia para me dizer certos segredos, não sei o que o abacateiro me disse, não soube mais entender e pode ter sido nesse momento que no corpo de criança um adulto começou a querer aparecer, não sei, há coisas que é preciso perguntar aos galhos de um abacateiro velho (...). (ONDJAKI, 2007, p. 137)

Reflete sobre essa fase da vida, cercada por incertezas, medos, dúvidas, angústias, despreparo, confusão, incompreensão; hábitos, costumes, cheiros e barulhos que são ressignificados do antigamente para o presente, mas ainda com resquícios de uma infância que insiste em resistir.

Não gosto de despedidas porque elas chegam dentro de mim como se fossem fantasmas mujimbeiros que dizem segredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido de criança. (ONDJAKI, 2007, p. 146)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse livro tem um significado muito importante e deixou marcas quando o li pela primeira vez. Estava no último ano do Ensino Médio e teríamos uma prova de Literatura sobre ele. A professora nos perguntou se conhecíamos alguma obra de origem africana e, sem espanto, somente uma aluna respondeu que já tinha lido algo. Lembro da capa já me chamar atenção, aqueles dois pés de criança, soltos, um vestindo um sapatinho de boneca e o outro, maior, um tênis Adidas, revelando a transformação e a passagem da infância para a adolescência e a entrada de produtos importados no país recém-independente.

As memórias relatadas se misturam com as de quem lê, num processo nostálgico. Lembro de ter me identificado e me visto em diversas cenas, parecia ser eu mesma contando as lembranças mais marcantes da minha infância, sobretudo as mais engraçadas que se embelezam em sua pureza e inocência. Ainda que eu já tivesse lido e sido atravessada por ele uma vez, os capítulos ganharam novos contornos, outros sentidos e significados, bem como questionamentos que não suscitaram na época. É de extrema importância termos contato com literaturas pouco divulgadas e prestigiadas, sobretudo de países e/ou continentes que pouco ou quase nada sabemos e aprendemos sobre suas constituições e formações, seus hábitos e costumes, seus valores, artes, músicas, arquiteturas, estruturação do saber, formas de se comunicar, de aprender e ensinar. Tudo o que sabemos é estereotipado, valorado, de uma perspectiva cultural tendenciosa, que carrega e dissemina uma verdade universal, sem contradições e nós simplesmente aceitamos por sermos pouco expostos ao outro lado da história.

A gente quase se esquece – se não fossem por algumas palavras e gírias locais – que o português lido é o português angolano, língua de matriz comum à nossa. Nos esbarramos com elementos culturais populares aqui do Brasil, como telenovelas e cantores brasileiros que embalam dia a dia das personagens, daquele povo do outro lado do oceano, povo este que herdamos ritmos e instrumentos musicais, crenças, gastronomia, entre outros.

O conflito com a passagem do tempo e o crescimento também reflete os paradóxos existentes na ruptura da infância e do início da adolescência. A infância acaba. De uma hora para outra. De repente. Só as lembranças e a imaginação permanecem, num emaranhado de emoções e saudade de um tempo que não volta mais. Na verdade esses paradoxos se reverberam em todas as fases da nossa vida.

A leitura destes pequenos contos teve um outro lugar depois das aulas, um lugar de reflexão e questionamento. As ações provocadas pela temporalidade com que a História enquanto ciência assume como uma de suas premissas de pesquisa, operam o modo como uma experiência num tempo e num espaço nos atravessa e interfere no nosso cotidiano. Passamos a compreender e extrair dos relatos de Ndalu a forma como a Educação era compreendida em Luanda, capital de um país até então condenado pelas guerras.

Embora seja costume haver um choque cultural dado pela nossa formação egoísta e eurocêntrica, ao se relacionar com a realidade de outro país, principalmente os africanos, é possível perceber como as vivências se dialogam, se encontram e se tornam comuns umas às outras. O fato de termos tido pouco contato com a história da África na escola se confirma mais uma vez ao desconhecermos costumes e celebrações típicas locais que são relatadas nesta obra biográfica.

Precisamos nos desconstruir, olhar para os processos históricos de cada lugar pelas bordas, através de outras lentes, outras perspectivas, de maneira a questionar a forma naturalizada que nos é contada e ensinada e a destacar os valores que o autor nos diz, valores estes que são dele e precisam ser respeitados e ligitimados, refutando qualquer tipo de preconceito. O olhar do outro sobre a gente desnaturaliza o que nós pensamos sobre nós mesmos.

A educação de Ndalu, marcada pela oralidade e memória (traços da cultura africana), se esbarram com a nossa educação na infância, ainda que contornada pelos conteúdos formais escolares. Nossas experiências de criança são temperadas pela pureza e inocência, somos atravessados e afetados pelos conhecimentos de quem o tem, na perspectiva dialógica de uma aprendizagem mútua, considerando nossas vivências também como aprendizados. Revelam um modo de ver e lidar com o mundo e, a escrita numa forma de diário, recorda os tempos em que colocávamos dentro daqueles cadernos nosso cotidiano, nossos segredos, nossas amizades, nossas felicidades, tristezas, amores, nossos desejos e sonhos que prosperávamos realizar.

Entre a criança e o adulto existe um tempo vivo, presente. O tempo é peça de fundamental importância, articula os espaços historicamente transformados, revela tensões e contradições. Cabe a educação, seja em qual for sua forma apresentada, a ferramenta que compreende e constitui os indivíduos enquanto sujeitos pertencentes a uma sociedade. É através dela que as realidades são transformadas e que acessamos as histórias de outros lugares. A memória é de Ondjaki, a memória é sua mas também minha, a memória é nossa.