O empoderamento feminino das atendentes: diálogos e análises históricas e sociais
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
Artigo científico desenvolvido através da disciplina: Coordenação do Trabalho I como parte dos requisitos para aprovação.
Docente: Profª Drª Iracema Santos do Nascimento
Monitor: Lucas Vechiato de Melo
Discente: Beatriz Helena Cunha
RESUMO
O objeto de análise deste estudo consiste na reflexão da formação e manutenção dos lugares sociais ocupados pelas mulheres, principalmente negras. Partindo da premissa histórica da construção do Estado e do mercado de trabalho brasileiro, recupera-se as especificidades das relações sociais de raça, classe e gênero. Objetiva examinar a articulação entre relações de poder que configuram e reconfiguram as desigualdades no mundo do trabalho e fora dele, bem como expressar uma vulnerabilidade condicionada, que as realoca a postos de trabalhos mais precarizados e pouco valorizados. A ótica se dá através do empoderamento feminino, num contexto de uma escola privada de São Paulo, onde se realizou o estágio obrigatório da disciplina, de caráter observatório e participativo, que presenciou este ano o movimento das atendentes na luta por direitos, reconhecimento e legitimidade da categoria, enquanto sujeitos formadores e transformadores, com voz e representatividade.
PALAVRAS-CHAVE
Educação infantil; Relações de gênero; Mulheres; Atendentes; Movimentos sociais; Luta de classe; Raça; Coordenação pedagógica; Direitos; Cuidado; Empoderamento feminino.
INTRODUÇÃO
Algumas mudanças nos acordos internos geraram incômodo entre as atendentes1 da Educação Infantil de uma instituição da rede privada, de alto padrão, localizada na Zona Oeste de São Paulo, que atende crianças de 10 (dez) meses a 5 (cinco) anos de idade, onde se realizou o estágio de caráter observatório e participativo, obrigatório na disciplina. Essas mulheres, de maioria negra, residentes da periferia paulistana e sem grau de escolaridade (básico ou superior) completo, em meio ao período de reivindicações e greve dos professores em detrimento às ameaças de corte a alguns benefícios da categoria, passaram a problematizar do nome “atendente”, nome este fictício, dado pela instituição para, além de oferecer certo status à categoria distanciando-se da mera função de “cuidado”, subir o teto salarial. Também se mostraram, neste segundo semestre, completamente insatisfeitas com o fim do banco de horas – benefício utilizado durante a época de férias escolares, de forma que não fossem descontadas – agora transformado em remuneração proporcional às horas extras trabalhadas. Próximo ao feriado do “Dia dos Professores”, que neste ano caiu em dia útil, presenciou-se um movimento por parte dos professores que, ao serem notificados de que elas não teriam direito ao recesso, se sensibilizaram pela causa e construíram uma carta com um poema defendendo o direito ao recesso. Tal carta foi entregue à coordenação que, por sua vez, se posicionou alegando ser uma condição burocrática, dado o contrato administrativo (e não pedagógico) que as atendentes possuem com a instituição.
Dada tal conjuntura contextual, o presente trabalho pretende e assume a responsabilidade política e social de refletir o empoderamento feminino, à luz de produções bibliográficas pautadas nas relações de trabalho e gênero, a partir de três conceitos indissociáveis: sexo, gênero e classe. Para verificar a causa e o efeito (ou impacto) das novas condições e acordos trabalhistas instituídos, o artigo visa esclarecer quais as questões e questionamentos trazidos e o posicionamento e percepção da equipe pedagógica (que compreende a coordenação, a orientação e a própria equipe docente). Buscou-se explicações no bojo da formação histórica das classes sociais – em que se encontram na base da “estratificação” – as lutas e movimentos pela conquista de direitos e benefícios ao longo da história, a formação escolar e profissional destas mulheres, num contexto institucional educacional particular. Dá-se, então, visibilidade a uma força que vem de baixo para cima, indo na contramão de uma convenção de consciência coletiva de que a força só vem de cima para baixo.
Que lugar as atendentes passam a ocupar nesta escola? Como elas se veem ali? De que forma esses movimentos dão visibilidade e legitimam as lutas sociais e trabalhistas? Como a coordenação pedagógica se posiciona e dialoga com a categoria? Em que medida elas conseguem pleitear e até que ponto a instituição homologa e ratifica os direitos numa qualidade de trabalho dentro das normas e condutas internas que se estende às demais instâncias? Essas perguntas nortearam a elaboração das entrevistas semiabertas, numa perspectiva qualitativa de dados.
A quem possa interessar, o trabalho possui fins acadêmicos, sem intenção de publicação. Os nomes não serão revelados para preservar e evitar qualquer tipo de exposição indesejada.
1Atendentes: mulheres, mães, pobres, donas do lar. Auxiliam nos cuidados, na organização e na preservação do espaço. Exercem o fundamental papel de participar dos processos de aprendizagem das crianças e no funcionamento e dinâmica do próprio projeto. Sujeito produtor e reprodutor de cultura. Educadoras.
DISCUSSÃO
Contextualização histórica
Ao resgatarmos as raízes da formação social, econômica e política do Brasil que delineiam os desdobramentos do mercado de trabalho, nos esbarramos com numerosas produções e correntes teóricas que recuperam a histórica do pensamento social brasileiro acerca das relações sociais de raça e de classe, bem como a trajetória pessoal, profissional e o lugar que as mulheres negras e brancas ocuparam ao longo dos séculos.
O modelo de sociedade patriarcal e capitalista estabelece padrões de segregação ocupacional dadas pelas divisões conjunturais de classe, gênero, etnia e raça, fatores que eram (e ainda são, mesmo que em outros formatos) fatores determinantes nas formas de educação utilizadas para transformar crianças em homens e mulheres (PRIORE, 2004). O ensino assumia então o caráter desigual e excludente, atingindo somente as instâncias privilegiadas da sociedade.
A condição marginalizada de inserção da população negra no mercado de trabalho vem desde os tempos do Brasil colonial, quando as relações eram constituídas com base nas leis do sistema escravocrata. Numa dimensão histórica, sistematicamente reelaborada, o racismo não só é uma herança como também uma relação social dinâmica que estrutura e é estruturada pelas relações de poder. A essa população, a escravidão negava o acesso a qualquer forma de escolarização, reverberando até os dias atuais, em que as taxas de pessoas negras analfabetas cada vez mais crescem, chegando a representar o dobro da porcentagem de analfabetismo entre as pessoas brancas.
De um modo geral, as meninas e mulheres das camadas populares eram destinadas desde muito cedo a exercerem tarefas domésticas, relacionadas ao cuidado e também trabalhos na roça. Competia a elas a imagem e a postura discreta idealizada de recato e pudor, sendo um suplício qualquer conduta que desviasse da norma e padrão. Seu papel na sociedade resumia-se a casamento e maternidade, restringidas pelo culto da domesticidade que valorizava a função feminina no lar, compreendida por cuidar da família, costurar, cozinhar, lavar, etc.
As diferenças entre homens e mulheres, para além da conotação biológica, deflagraram hierarquias sustentadas em relações desiguais, na produção e reprodução de estereótipos de gênero. Este conceito, de caráter relacional, abarca a definição e a complexa organização dos estratos sociais, na procura de apreensão das distintas formas de desigualdades, problematizando o que é ser mulher nos distintos contextos sócio-históricos (HARAWAY, 2004 in VIANNA, 2013). Como consequência, as mulheres, principalmente negras, foram incumbidas às formas precárias e estigmatizadas de ocupação.
No caso do Brasil, as mulheres brancas e negras têm trajetórias duradouras nas ocupações de menor prestígio e de más condições de trabalho, como o emprego doméstico, atividade em que as mulheres negras são mais numerosas (HIRATA, 2014).
Essa desqualificação profissional que repercute em aspectos pessoais do sujeito na razão histórica, social e sociológica, de formação cultural e escolar, torna-se um círculo vicioso de vulnerabilidade, rebaixamento salarial, desprestígio social, num sentimento de decadência, humilhação e desvalorização.
Embora no cenário globalizado tenham ocorrido mudanças significativas nas estruturas ocupacionais ao longo dos séculos, como resultado das transformações tecnológicas, de uma consciência histórica e social das categorias segregadas, bem como das formas de organização dos processos de trabalho, gerando novos cargos e ocupações; as mulheres ainda enfrentam uma cultura enraizada em matrizes conservadoras e preconceituosas, mesmo que de forma velada e camuflada.
Considerando sexo e raça, os homens brancos têm os mais altos salários; em seguida, os homens negros e as mulheres brancas; e, por último, as mulheres negras com salários significativamente inferiores (GUIMARÃES, 2002, p.13 in HIRATA, 2014, p. 63).
O exemplo paradigmático de trabalho precário, que intersecta e tangencia as principais análises deste artigo, é o trabalho doméstico, mais especificamente o trabalho de cuidado (apresentado em sua forma inglesa care, como cultura americana, nas diversas bibliografias que embasam esta discussão), majoritariamente exercido por mulheres. Das mulheres brasileiras ocupadas, 17% são empregadas domésticas, em sua maioria pobres, imigrantes, majoritariamente negras ou pardas. Em contraponto, a outra ponta da relação é representada por beneficiários do cuidado, constituído por aqueles que têm o poder e os meios para serem objetos de cuidado (LEONE, 2017).
O care, estampado e estereotipado em nossa sociedade, denuncia as relações de poder fundamentadas em princípios de gênero, classe e raça, numa conotação estrutural desigual, caracterizada por quem e de que maneira se pratica. Hirata (2014) vai dizer que “a naturalização e a essencialização do cuidado como inerente à posição e à disposição (“habitus”) femininas têm como consequência a desvalorização das profissões ligadas ao cuidado”. Desta forma, as mulheres são vistas como adequadas ao trabalho doméstico, principalmente as mulheres negras como resquício de sua condição histórica de escravas.
A instituição escolar (estágio de observação)
Fazem parte da cultura escolar as prescrições de cuidado em suas formas específicas, produzidas e reproduzidas na própria instituição. À esta socialização feminina, compete o papel do envolvimento afetivo e o compromisso para com as crianças, que envolvem também questões relativas à higiene, à vigilância e à nutrição.
Como compromisso formador, qualificador e emancipador para com as atendentes que exercem a função do cuidado, a instituição escolar em que o estágio de observação foi realizado garante uma formação continuada à essas mulheres. As reuniões ocorrem duas vezes ao mês, correspondendo aos dois períodos trabalhados (elas trabalham em período integral). O objetivo desses encontros, organizados e realizados por duas orientadoras, é promover a aproximação e imersão das atendentes no projeto pedagógico da escola. São momentos importantes, em que socializam seus conhecimentos e aprendizagens, como também expõem as dúvidas, os questionamentos, as fragilidades, os desafios e suas dificuldades, num ato acolhedor, colaborativo e de respeito às singularidades de cada uma. Um espaço em que suas potências e valores ganham visibilidade, no processo de se reconhecer enquanto sujeito educador, formador, produtor e reprodutor de cultura, protagonistas de suas próprias histórias.
Eu me sinto bem aqui. Eu me sinto acolhida, faço uma coisa que eu gosto, que é trabalhar com criança. Antes eu trabalhava em outra escola, eu ajudava na cozinha, às vezes no banho das crianças. Eu fazia o que precisava, quando precisavam de qualquer coisa, eu estava ali para ajudar. Aqui é a mesma coisa, mas de um outro jeito. (R.G., atendente, 47 anos)
Além dos encontros, a escola este ano instituiu um horário semanal, com duração de uma hora, durante as aulas de Educação Corporal, para que uma professora da dupla sente e situe sua atendente sobre o que está sendo investigado, quais as intencionalidades, as teorias, as hipóteses, os valores e os princípios que estão em jogo no projeto realizado com as crianças. Essa aproximação é compartilhada também nas reuniões, de forma a socializar o que aprenderam e para que as professoras observam de que maneira elas estão compreendendo e sendo atravessadas pelo método.
A instituição se inspira e se fundamenta em princípios do modelo pedagógico de Reggio Emília, cidade localizada no norte da Itália, que viu na educação, em meio aos escombros deixados pela guerra, uma ferramenta de transformação e reestruturação social. A criança passou a ser entendida e reconhecida, dentre muitas inspirações de educadores, filósofos e sociólogos, através das “cem linguagens” (Loris Malaguzzi), no princípio de sujeito potente, ativo, protagonista, competente, criativo, inventivo, talentoso e dono de seu próprio direito.
Tal pedagogia desconstrói a ideia tradicional de que professor e aluno ocupam lugares definidos, limitados e distantes um do outro, uma vez que as crianças assumem o centro das decisões sobre sua aprendizagem e seu desenvolvimento. O professor passa a estar sempre em movimento, revendo e se revendo enquanto aprendiz. É a partir de uma escuta sensível e do direito de escolha que ele potencializa a independência e autonomia do aluno, respeitando suas singularidades e a pluralidade do grupo quanto as aprendizagens, com a possibilidade de ir além nas mais diferentes linguagens. Em coparceria, adultos e crianças descobrem mais sobre si, sobre o outro e sobre as questões que os circundam, concomitantemente.
“O papel do adulto é, cima de tudo o de ouvinte, de observador e de alguém que entende a estratégia que as crianças usam em uma situação de aprendizagem. Tem o papel de “distribuidor” de oportunidades; e é muito importante que a criança sinta que ele não é um juiz, mas um recurso ao qual pode recorrer quando precisar (...)” (EDWARDS, C; GANDINI, L; FORMAN, G, 2016).
É a partir dessa atmosfera crítica que as orientadoras dão propósitos que situam a prática como centralidade, no jogo de estabelecer conexões entre as questões teóricas e o que se vivencia na prática e no cotidiano. Em conversa com uma das orientadoras, ela conta que elas pedem para que tragam uma documentação ou situações ou indícios da própria experiência para que possam problematizar.
A ideia é que a gente desconstrua esse lugar histórico de cuidado. Esse lugar tinha uma certa incoerência com o que a escola passou a pensar como projeto. Nosso objetivo é provocá-las para além do cuidado e da ação. Não é uma formação para serem professoras ou professoras auxiliares, mas sim para que, do ponto de vista delas, do lugar delas, elas possam contribuir no olhar para o projeto e para as crianças. (C.K., orientadora, 41 anos).
Com desvelo, ela enxerga uma enorme potência na participação delas. Contando um pouco do percurso histórico do estudo do lugar das atendentes na instituição, ela diz que existia uma distância muito grande, elas não tinham nenhuma noção do que se era discutido na formação da equipe pedagógica. Eram o que ela vai chamar de “fazedoras de coisas”. Incomodada com essa lacuna, esse buraco, ela decidiu escrever um projeto que revelasse a necessidade de ganharem mais visibilidade, a urgência da tomada de consciência coletiva da responsabilidade e da presença que possuem, enquanto sujeitos atores e autores do processo de ensino e aprendizagem. Este projeto foi apresentado e abraçado pela coordenação há três anos e desde então ele cresce, se aprimora e se aprofunda, em diálogo com os movimentos de imersão e estudo sobre a Educação Infantil.
As reuniões são feitas durante o horário de aula, para que isso não implique nem prejudique os compromissos pessoais de cada uma. Qualquer tomada de decisão é feita de maneira democrática, o lugar de fala e de voz das atendentes assume caráter prioritário e é, assim, muito valorizado. Esses encontros dão subsídios e ferramentas sobre as diferentes perspectivas de aprendizagem, de infância e desse espaço que elas ocupam enquanto mulheres, enquanto categoria. Ganham sentido quando deslocam o olhar que têm das crianças e passam a falar de si mesmas, do seu processo histórico e trajetória pessoal, estabelecendo relações com o que elas vivenciam ali e desconstruindo certos estigmas e paradigmas consolidados em nossa cultura.
Eu amo as reuniões de formação. Elas nos ensinam a melhorar o nosso olhar com as crianças,com que elas fazem, o que elas aprendem. São muito ricas. A gente tem uma visão mais apurada sobre algumas coisas que antes a gente não tinha, como por exemplo um desenho. A gente não dava tanto valor a um simples desenho e agora eu consigo ver beleza e muita investigação neles. A gente aprende a ter respeito sobre elas, a gente aprende com elas no dia a dia. Cada professor tem uma coisa pra ensinar, com cada um você pega o que ele tem de melhor. É um aprendizado contínuo. Essa formação é muito importante, ajuda muito. A gente fica por dentro dos planejamentos de vocês. (R.G., atendente, 47 anos)
A orientadora diz que é necessário e se mostra um desafio a construção desse lugar protagonista, na afirmação e no reconhecimento de si e de sua importância. É algo a ser conquistado por cada uma delas, na relação com outras pessoas. A convivência diária revela pontos marcantes que decorrem de ideias e construções sociais, afetando na forma como elas se vêem ali dentro. Não é incomum presenciarmos um tom quase que de inferioridade na fala, na forma como se dirigem aos docentes ou qualquer posição considerada, do ponto de vista hierárquico, superior. Porém, é por meio dessa formação continuada pertinentemente consolidada e investida pela instituição, que, aos poucos, elas se posicionam contrárias a esse lugar que a sociedade as entrega e nos surpreendem.
Minha função (...) eu não me acho menos importante, eu me acho tão importante quanto qualquer um aqui dentro, na sua função. É isso que faz a escola, cada um tem um jeito e todos são necessários, se um falta, faz falta pra todos. (V.L., atendente, 42 anos)
Desta forma, através de algumas falas mesmo que ainda não tão seguras, elas se enxergam como educadoras. Elas vão para fora com mais força, na percepção de si no e do mundo, sabendo de colocar nas diferentes instâncias e problematizando as questões que as cercam. Enfrentam o dilema enquanto mães, na relação e nos questionamentos das instituições em que os filhos estudam. Elas passam a ter esse olhar mais sensível, observando e criticando as discrepâncias do local onde trabalham em relação ao lugar onde seus filhos estão matriculados.
Quanto a qualquer tipo de preconceito ou discriminação por raça, classe social, religião, etc., elas dizem não sentirem tanto por parte dos colegas ou da própria escola (embora já tenham sofrido ou presenciado), mas ressalvam a forma de tratamento que recebem das famílias e uma certa competição entre o grupo.
Eu já fui muito criticada aqui dentro. No começo eu não me importava com aparências. Aí muitas pessoas me criticavam. Têm umas (atendentes) aqui que falam que eu quero me aparecer pelo meu jeito de brincar com as crianças e de falar com as pessoas. Eu só quero dar o meu melhor pras crianças, muito amor. Aqui a gente trabalha com humanismo, com troca de valores e escuta. (...) A gente vê alguns pais que não entregam as crianças pra gente, que não dão bom dia. Eu fico chateada, mas o importante é a minha relação com as crianças, isso está acima de qualquer coisa. (I.O., atendente, 51 anos)
Durante a entrevista, ao ser perguntada de que forma e com que potência acredita que essas mulheres ganham fora da escola, em caso delas se desligarem da instituição e seguirem outros caminhos, a orientadora entende o mercado se mostrando cada vez mais limitado, um limitador de funções para essa categoria.
“Eu acho difícil elas encontrarem o que elas têm aqui em outro lugar, porque o mercado é cruel para com as camadas populares. A gente vem de uma cultura em que mulheres, principalmente negras e pobres, são estigmatizadas e segregadas das funções e cargos com maior reconhecimento, prestígio e valorização. Por outro lado, acredito que essa formação que a gente garante aqui dentro proprociona a elas muita força, elas saem daqui mais fortalecidas e com maior compreensão. Elas constróem esse sujeito crítico e investigativo, que se coloca e se posiciona frente às dificuldades, à sua vida pessoal, enfim.” (C.K., orientadora, 41 anos)
O próprio questionamento do nome “atendente” foi desencadeado por uma questão de categoria, no período da greve dos professores. A pergunta que se deve fazer é: o que o nome revela e o que ele não revela dentro da escola? Ele diz para os pais que elas vão atender às famílias. Elas se mostram incomodadas porque quando os pais querem falar sobre questões da formação e do projeto pedagógico, falam com as professoras, quando querem falar da troca ou de algum pertence, se dirigem às atendentes. Essa lógica vai na contra-mão do que a escola se propõe a pensar, desse lugar de coconstrução, de coparceria que cada integrante ali tem como responsabilidade. É nessa ótica que elas se posicionam quanto ao Dia dos Professores, frente à incoerência da escola dar esse papel de educador, mas não darem o direito ao recesso que, para elas, está ligado muito mais lidado a um certo reconhecimento.
A gente fica muito triste assim porque a gente faz com amor, né? Independente do nome que a gente tem, eu acho que a gente tinha que ser respeitado. A gente faz uma entrega de verdade. Eu queria ser enxergada. É muito triste quando a gente vem e não tem criança. Eu poderia estar no mesmo motivo que vocês ali fora. (B.S., atendente, 47 anos)
Não existe exigência de estudo para as atendentes serem contratadas, considera-se a existência de contato ou experiência com criança e com escola. Há a preferência por mulheres não tão jovens nem muito mais velhas. Elas entram primeiro na limpeza, se trabalha em cima da que tem mais perfil para ganhar o cargo de atendente e, assim, são promovidas. A escola se preocupa com o cuidado humano (encaminhando, por exemplo, para a terapia quando se mostra necessário), auxiliando nas situações que se estendem às instâncias escolares.
O lugar do professor foi socialmente intelectualizado, na perspectiva de uma formação escolar tecnicista, voltada para o mercado de trabalho. Para ocupar a função de professor e professor auxiliar, é pré-requisito que o indivíduo seja formado ou esteja se formando no curso de Pedagogia, atendendo à lógica irreversível do mercado. Entretanto, ali dentro, a escola se mostra na missão de romper com essa inerente ideia hierárquica e segregadora no que tange as relações, sem tirar a função que é de cada um, no reconhecimento das singularidades que se fazem no coletivo.
Eu não tenho condições de estar no lugar da professora, eu sei disso. Eu fiz Assistência Social depois de trabalhar por muitos anos no abrigo que eu cresci. Eu sou formada, eu dou muito valor pros estudos, pra minha formação. Mas eu não quero ser professora nem professora auxiliar, eu estou feliz onde eu estou. É essa a minha missão na vida. Eu queria ganhar mais, mas não dá, né? (I.O., atendente, 51 anos)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando ao longo dos tempos a trajetória pessoal e profissional das mulheres, principalmente negras e pertencentes às camadas populares – aqui devidamente representadas pelas atendentes de uma escola privada de São Paulo – observa-se uma formação social complexa, na construção de identidade nos contornos sociais e culturais próprios dos indivíduos da sociedade moderna.
Sem dúvida alguma a grande maioria dos negros e mulatos no Brasil é exposta aos mesmos mecanismos de dominação de classe que afetam outros grupos subordinados. Mas, além disto, as pessoas de cor sofrem uma desqualificação peculiar e desvantagens competitivas que provêm de sua condição racial. (HASENBALG, 1979. p. 20)
A luta por direitos, no reconhecimento enquanto sujeito histórico e político se fez nos moldes de uma leitura feminista, enquanto uma política contestadora, que passou a embasar a análise da presença das mulheres em ações coletivas como formas de resistência feminina ainda que não articuladas.
Acredita-se que a educação formal com qualificação profissional pode angariar maior dignidade à função, desempenhada por mulheres, de cuidar e educar crianças pequenas. Trabalhar nessas instituições, mesmo com baixos salários, pode significar iniciação profissional para algumas mulheres. Amplia-se o mercado de trabalho para mulheres com baixo nível de instrução e originárias dos estratos menos privilegiados da população. Mulheres, resistindo ao destino de empregadas domésticas, acomodam-se às sobras do sistema, o desafio deste, por sua vez é a equalização de oportunidades e do padrão de qualidade, no princípio de formação educacional.
A coordenação da instituição, onde o estágio foi realizado e que culminou na documentação e elaboração deste artigo, abraçou e se sensibilizou pelos estranhamentos e questionamentos das atendentes quanto a esse nome. O setor administratrivo de Recursos Humanos pediu que se investigasse que nome faria mais sentido para elas, em diálogo com o movimento que a escola vem fazendo. A nomeação já não fazia mais sentido e colocava em xeque a sua relação com a função que exercida de fato. Deste modo, elas escolheram auxiliar de grupo, justificando que grupo dá ideia de criança, de vida (as outras opções eram: auxiliar de sala e auxiliar de classe), distanciando-se do reducionismo que o nome “atendente” ganha nos dicionários e na função exercida perante a sociedade.
Assim, é dentro deste ambiente acolhedor, que garante a formação continuada dessas mulheres, que elas se emancipam e ganham uma força que cada vez mais cresce e reverbera seja nas instâncias pessoais, seja nas instâncias profissionais de suas vidas. Elas se mostram mais capacitadas e mais protagonistas, no ato cidadão de reivindicar pelos seus direitos, problematizando e questionando questões que, antes, elas talvez jamais se colocariam a pensar por razões históricas e sociais que as colocam num lugar de silêncio. Constituem-se então pessoas conhecedoras do mundo, que estão vendo sua luta se transformar em mudanças, no ganho de novos sentidos.
Eu achei legal do “auxiliar de grupo” porque nós somos um grupo. A gente se sente dentro do grupo, se sente parceria, motivada. Todo mundo faz a união. (R.S., atendente, 45 anos)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DE CARVALHO, Maria Pinto. A História de Alda: ensino, classe, raça e gênero. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 89-106, jan./jun. 1999
DEL PRIORE, Mary (org); BASSANEZI, Carla. História das mulheres no Brasil. 7. ed. – São Paulo : Contexto, 2004
EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. (Org.). As cem linguagens da criança: a experiência de Reggio Emilia em transformação. Porto Alegre: Penso, 2016. v. 2.
HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdade raciais no Brasil. 2. Ed. – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2005.
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 26, n. 1, pp. 61-73, jun. 2014
LEONE, E.T.; KREIN, J.D. (et al). O mundo do trabalho das mulheres: ampliar direitos e promover a igualdade. – São Paulo: Secretaria de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres / Campinas, SP: Unicamp. IE. Cesit, jun, 2017.
PERRELLA, C.; DE CAMARGO, R.B. (et al.). A escola pública feita por várias mãos: dimensões críticas da formação de conselheiros. – São Paulo : Xamã, 2015.
PERRELLA, Cilede dos Santos Sant’Anna. Conselheiros e conselheiras da escola em formação: aprendendo e ensinando partipação. 1. Ed. – Curtiba : Appris, 2015.
ROSEMBERG, Fúlvia. Expansão da Educação Infantil e Processos de Exclusão. Fundação Carlos Chagas, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo : Cadernos de Pesquisa, nº 107, p. 7-140, julho/1999
VIANNA, Claudia Pereira. A feminização do magistério na educação básica e os desafios para a prática e a identidade coletiva docente. In: YANNOULAS, Silvia Cristina (Org.). Trabalhadoras: análise da feminização das profissões e ocupações. Brasília, DF: Abaré, 2013. p. 159-180. http://www.producao.usp.br/handle/BDPI/44242