AS LEIS - Platão (Livro VII)

Tradução comentada de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”

Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei oportuno abordar pontos polêmicos ou obscuros. Quando a nota for de Azcárate, um (*) antecederá as aspas.

“Nunca observaste como em todo animal o primeiro desenvolvimento é sempre o maior e mais enérgico, a ponto de muitos defenderem que o corpo humano não adquire nos 20 anos seguintes o dobro da altura que possui aos 5 anos?”

“Não me estranha, querido Clínias, que não tenhas idéia alguma do tipo de ginástica que convém aos embriões. Mas, por bizarra que essa idéia te pareça, vou explorá-la na seqüência.”

“Em Atenas, jovens e velhos indistintamente educam os filhotes de pássaro a brigar entre si. O engraçado é que não crêem que baste a prática destes duelos para fortalecê-los; pois vivem a andar para cá e para lá carregando-os (os pequenos, nas mãos; os grandes, debaixo dos braços), vários e vários quilômetros. Com a fadiga de suas pernas, estes homens pretendem dar força aos pássaros contendores, não a eles próprios. Essa pequena faceta leva quem reflete a conceber que o movimento e a agitação, não importa em que circunstância, e contanto que não levem à exaustão, são úteis a quaisquer tipos de corpos. É aí indiferente se os pássaros deste caso caminham sozinhos, ou são conduzidos por carruagens, navios, cavalos ou, enfim, da maneira que quiseres imaginar; exercício que, pois que ajuda na respiração do animal, e na digestão dos alimentos, faz com que os corpos adquiram saúde, beleza e vigor.”

“As grávidas dão passeios amiúde, no intuito de formar seu feto, como se ele fosse um amontoado de cera dentro da barriga que tem de ser moldado pela atividade da mãe; assim se concebe o bebê, ou o estágio ainda anterior ao bebê: como algo brando e flexível, ainda informado; embalá-lo-ão em mantas até que o neném tenha 2 anos de idade. Acaso multaremos as amas e babás que não levarem o objeto de seus cuidados no colo, seja em passeios pelos campos ou aos templos, ou à casa dos pais, até que sejam fortes o bastante para que se sustentem de pé por conta própria? Até as crianças chegarem aos 3 anos, terão de ser paparicadas ao extremo, resguardadas de sofrer qualquer torção ou contusão? E será que fará diferença ter uma babá magricela e frágil ou uma mulher bojuda cuidando da criança?” “Certas evidências permitem-nos conjeturar que as babás sabem por experiência quão bom é o movimento para os menininhos e menininhas que estão sob sua responsabilidade; da mesma forma que as mulheres que sabem curar o mal dos coribantes.¹”

¹ Sacerdotes de Réia, metalúrgicos da Idade Antiga. O sentido contextual é impreciso.

“Outra certeza é a de que o humor doce e o humor amargo têm participação decisiva na boa ou na má disposição das almas. É indispensável explicar os meios de influir no humor das crianças, o que deve ser tentado sem receio.”

“As babás mostram à criança vários objetos, a fim de adivinhar o que querem realmente. Quando se põe sossegado ou se cala de repente à vista de algum, inferem que deram com a causa certa; mas se a criança continua a espernear e gritar, pensam que estão longe de atinar com a solução do problema.”

“Isto não é assunto leviano. Megilo, escuta e sê, pois, árbitro entre mim e Clínias. Minha opinião é que para se viver bem não é preciso correr atrás do prazer, nem tomar os maiores cuidados a fim de evitar a dor a qualquer custo, senão ater-se a um dado meio-termo, que denomino estado pacífico.”

“nesta idade o caráter se forma principalmente sob o influxo do hábito.”

“vimos este tempo todo falando das leis não-escritas, que também são chamadas de leis dos nossos antepassados.”

“As crianças precisam brincar entre os 3 e os 6 anos (…) Como dissemos há pouco¹ que não se deve mesclar insulto e correção no caso do escravo, não lhes dando pretextos vãos para a revolta e retaliação nem para o desenvolvimento da insolência, também não se deve confundir ambas as coisas na educação das crianças livres.”

¹ Leis VI

“As crianças de 3 a 6 anos serão reunidas nos templos consagrados aos deuses. Suas babás os acompanharão, para vigiar a ordem e refrear sua vivacidade excessivamente impetuosa. Mas mesmo essas reuniões e estas babás terão uma supervisão, sendo sua inspetora em cada templo uma das 12 mulheres oficialmente autorizadas pelos guardiães da cidade, as <babás das babás>.”

“Passadas dos 6 anos, as crianças começarão a conviver somente com seus iguais (meninos, meninas). Cada grupo se adequará a uma rotina com prescrição dos exercícios mais próprios a cada idade e a cada gênero. Os varões aprenderão a montar a cavalo, atirar com o arco-e-flecha, usar a azagaia e a funda. As moças não estão proibidas, caso apresentem esta inclinação natural; no mínimo, entretanto, deverão entender do assunto em sua parte teórica.”

“Acredita-se, no que tange ao uso das mãos, e conseqüentemente às ações que delas dependem, que a natureza estabelecera uma diferença entre a mão esquerda e a mão direita; porque, com respeito aos pés e demais membros inferiores, não parece haver qualquer distinção entre direita e esquerda para os exercícios. Mas, quanto às mãos, somos como que mancos, por causa das babás e mamães, sempre de um dos lados. (…) Temos a prova de que o problema está na educação infantil, ao vermos os citas em batalha: tanto a mão canhota quanto a destra servem para apoiar o arco; e podem mirar as flechas com precisão seja com a direita ou com a esquerda, de modo que são atiradores ambidestros.”

“A ginástica tem duas partes, o baile e a luta. Há também duas classes de baile, uma que nos apresenta as palavras da Musa e que conserva sempre certo caráter de dignidade e de grandeza;¹ outra se destina a dotar o corpo e cada um de seus membros de saúde, agilidade e beleza, ensinando-os a relaxar e contrair na justa proporção em movimentos cadenciados, compassados e coordenados.² Com respeito à luta, não carecemos cá de mencionar todas as invenções dos mestres Anteu e Cercião, umas mais e outras menos convenientes, nem tudo que Epeu e Amico³ imaginaram a fim de aperfeiçoar o pugilato, pois essas minúcias não auxiliam na guerra.”

¹ O canto

² A dança

³ Todos esses nomes próprios se referem a figuras mitológicas.

“Os jogos ajudam no estabelecimento e na consolidação das leis. Quando os jogos se constituem em regras fixas, quando todas as crianças, em todo lugar e ocasião, jogam conforme os mesmos parâmetros, respeitando os mesmos objetos e da mesma maneira, não se deve temer que haja inovações nas leis sérias que são os pilares da sociedade.” Platão & A Re-deificação da Polis / Platão & A Destruição da História

“Será preciso desempenhar os maiores esforços para que os mais jovens não se apaixonem por novos gêneros de imitação, na dança, na melodia, etc., e que ninguém os atice ou os alicie em nenhum tipo de prazer inédito.”

DÉJÀ VU – Começa a repetir o dito em outras partes d’As Leis: “Vemos que os antigos davam o nome de leis aos ares que se tocam no alaúde.”

(*) “Os antigos eram meticulosos para que durante os sacrifícios não se pronunciasse qualquer palavra contrária ao espírito da cerimônia; quando isto acontecia, dava-se-lhes o nome de blasfêmias, maldições, etc. Quanto às palavras auspiciosas e favoráveis, eram bendições.”

“a raça dos poetas não é capaz de distinguir o bom do mau.”

“O poeta não poderá separar-se em seus versos do que é legítimo, justo, belo e honesto no Estado. E ser-lhe-á proibido ensinar seu dom em particular antes de que os guardiães e os censores hajam visto e aprovado, conforme as leis, todos os conhecimentos a ser por ele transmitidos.”

“A parte elevada da música, própria para estimular o caráter, será reservada aos homens; a parte modesta e comedida, por lei, cabe destinar às mulheres.”

“Os negócios humanos são superestimados; e no entanto são necessários; nada há de mais penoso que essa tarefa, cá entre nós.”

“MEGILO – Estrangeiro, falas com demasiado desprezo da natureza humana.

ATENIENSE – Não o estranhes, Megilo, e permite-me o uso dessa linguagem, que nada mais é que o efeito da impressão produzida em mim pela contemplação dos atributos de Deus, comparados aos nossos. Queres que o homem não seja coisa desprezível e merecedora de consideração? Convenho na idéia, mas por favor prossigamos!

(…)

Os pais não deviam ter a liberdade de enviar os filhos a estes mestres sofistas nem abandonar sua educação; é premente que todos, futuros homens e mulheres, submetam-se à educação oficial da polis, pela simples razão de que pertencem a ela mais que seus próprios pais (que não cresceram na nova polis) (…) sei que agora mesmo, nas imediações do Ponto, há um número prodigioso de mulheres, chamadas Sauromatas,¹ que, conforme a lei local, se exercitam na mesma intensidade que os homens, e montam a cavalo, atiram com arco-e-flecha e manejam todo tipo de arma.”

¹ Ou sármatas. Seriam um povo bárbaro e haveria qualquer relação entre a condição desta sociedade de “democracia de gênero” com o mito das Amazonas (sociedade de mulheres guerreiras).

“Todo cidadão deve ter vergonha de, sendo homem livre que é, passar a noite inteira dormindo, sem que seja, ao mesmo tempo, aquele que primeiro aparece desperto, antes de todos os servos da sua casa.” “Sono em excesso não é saudável nem ao corpo nem à alma.”

“ATENIENSE – (…) As crianças devem se dedicar às letras dos 10 aos 13 anos; à lira e teoria musical após esta etapa; aos 16 deverá ter por concluídos estes estudos – não importa se a criança ou o pai da criança abominam ou exaltam sobremaneira esta arte, os indivíduos em formação não poderão estudá-la nem mais nem menos do que 3 anos, muito menos deixar por completo de estudá-la. Todo aquele que não seguir este cronograma será como que proscrito oficialmente da infância, condição de que falaremos adiante. (…) As crianças devem estudar as letras o tempo necessário a fim de aprenderem a ler e escrever. Para aqueles que após 3 anos não tenham atingido o nível adequado, não devemos nos afligir por isso. Quanto às obras poéticas, que não foram feitas para ser cantadas com o acompanhamento da lira, havendo poemas com metro e outros sem, e havendo prosa destituída de número e harmonia, escritos funestos que nos legaram uma vastidão de escritores mui suspeitos–, ó ilustres guardiães das leis! Para que servem estes tipos? Que credes vós que deve o bom legislador fazer com respeito a eles? (…)

CLÍNIAS – Estrangeiro, como podes fazer tantas perguntas retóricas, que parecem auto-endereçadas, tão perplexas?

ATENIENSE – Ainda bem que me interrompeste, caro Clínias! É preciso que formemos em conjunto este plano de legislação. E é justo que eu compartilhe convosco as vantagens e desvantagens que diviso.

CLÍNIAS – Mas repito: que é que te obriga a falar desta maneira e com esta entonação?

ATENIENSE – Já que insistes!… Mas não é fácil seguir adiante contra a opinião de uma infinidade de pessoas!”

“um grande número de poetas compôs em versos hexâmetros; outro, em jambos; outro grupo, ainda, elegeu temas sérios; outros escritores, temas festivos; um número infinito de pessoas, que se supõem exímios educadores, sustentam que é saudável dar todo tipo de poema e indicam todo gênero literário aos mais jovens, até a saciedade. Dizem que com isso estendem e multiplicam seus conhecimentos, até preencherem toda sua memória; outros, recortam certas passagens deste ou daquele autor, compilando-as num só volume monstruoso, obrigando os estudantes a decorar os mais díspares versos; têm o disparate de afirmar que este é o método mais seguro a fim de que atinjam a prudência, a virtude, a sabedoria e a destreza!”

“As danças báquicas e semelhantes, que tomam seu nome emprestado das ninfas, dos pãs, dos silenos, dos sátiros, nas quais imitam-se bêbados, e que são correntes em um sem-número de cerimônias religiosas, não possuem em si caráter pacífico ou guerreiro; defini-las é a coisa mais difícil. Mas me parece que pode-se segregá-las e considerá-las como um gênero novo, o de danças apolíticas.”

“o covarde, não-exercitado no auto-domínio, entrega-se facilmente a arrebatamentos e a movimentos súbitos e violentos.”

“a imitação das palavras mediante gestos é a razão de ser da dança. O que não explica por que o movimento de alguns é regular e o de outros irregular.”

“Quanto às palavras, cantos e danças cujo objetivo é imitar os corpos e os espíritos contrafeitos e afetados, onde se percebe sem esforço o caráter do bufão e do ridículo, enfim, quanto às imitações cômicas em geral, é forçoso estudar sua natureza e ter a respeito delas uma idéia exata (…) é necessário não mesclar, em nossa conduta, o sério com o ridículo; sendo que este último merece ser estudado justamente a fim de ser evitado. Seria imprudente e indecoroso. Para tais imitações o melhor é empregar escravos e estrangeiros, pois que não convém a homem ou mulher de condição livre este tipo de degradação, ainda que artística.”

“Quanto aos poetas sérios, quero dizer, os trágicos, se alguns deles se apresentassem diante de nós e nos perguntassem: <Estrangeiros, podemos ou não ir a vossa cidade representar nossas peças?>, que é que decidistes a respeito? Pelo que me diz respeito, vede vós a resposta que eu daria a estes divinos personagens: <Estrangeiros, nós mesmos estamos ocupados em compor a mais bela das tragédias; nosso plano de governo não é mais que uma imitação do mais belo e excelente que existe, e contemplamos de bom grado esta imitação como uma verdadeira tragédia.>”

“A ignorância absoluta não é o maior dos males nem o mais temível; uma vasta extensão de conhecimentos mal-digeridos é coisa muito pior.”