A REPÚBLICA - Livro III - Tradução de trechos (Platão)
Tradução de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”.
Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei que devia tentar esclarecer alguns pontos polêmicos ou obscuros demais quando se tratar de leitor não-familiarizado com a obra platônica. Quando a nota for de Azcárate, haverá um (*) antecedendo as aspas.
“- Pois bem, um homem que está persuadido da existência do Hades e que é horrível, poderá deixar de temer a morte? Poderá preferi-la em combate a uma derrota e à escravidão?
- Impossível.”
PREFIGURAÇÕES SINISTRAS DAS CALDEIRAS DE LIVROS? “Conjuremos a Homero e aos demais poetas a não levarem a mal que apaguemos de sua obra essas passagens. Não é porque não sejam demasiado poéticas e não satisfaçam o ouvido do público; mas, quanto mais belas são, tanto mais são perigosas para as crianças e para os homens que, destinados a viver livres, devem preferir a morte à servidão.”
“Apaguemos também estes nomes odiosos e formidáveis de Cócito, Estige, Ínferos, Manes¹ e outros semelhantes, que fazem tremer aos que os escutam.”
¹ “1. Sombras ou almas dos mortos; 2. Deuses infernais do paganismo; 3. [Figurado] Memória dos antepassados. <manes>, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013, https://dicionario.priberam.org/manes [consultado em 23-06-2019].”
“Com razão é que suprimimos nos homens ilustres as lamentações, e reservamo-las às mulheres, e ainda assim não às mais dignas dentre elas, nem aos homens vis”
“- Tampouco será conveniente que se sintam inclinados à hilaridade. Risos em excesso dão lugar quase sempre a uma alteração também violenta.
- Assim também o creio.”
“Somente os magistrados supremos terão o poder de mentir, a fim de enganar o inimigo ou os cidadãos pelo bem da república.”
“Não consintamos, pois então, que aqueles que são objeto de nosso cuidado e para quem é um dever chegar a ser homens de bem se comprazam, já varões, no imitar uma mulher, seja jovem ou velha, uma casada briguenta ou orgulhosa, que pretenda se igualar aos deuses, jactanciosa de sua suposta felicidade, ou que se abandone em desgraça a queixas e lamentações. Ainda menos imitarão a adoentada, a apaixonada ou a que sofre das dores do parto.(*)” “Deve-se conhecer os dementes e os homens e mulheres maus, porém não se os deve imitar nem com eles parecer-se.”
(*) “No teatro grego, todos os papéis, tanto masculinos quanto femininos, eram desempenhados por homens.”
“Em nosso Estado daremos guarida a esses 3 tipos de narrativa ou só admitiremos uma ou outra das simples ou das mistas?”
“- Me parece, meu querido amigo, que tratamos a fundo esta parte da música que corresponde aos discursos e às fábulas, posto que falamos do que há que dizer e da forma de dizê-lo.
- Concordo contigo.
- Resta-nos falar desta outra metade da música que diz respeito ao canto e à melodia, certo?
- Ó, é evidente.”
“- Quais são as harmonias lastimosas? Diga-mo, já que és músico.
- A lídia mista, a lídia tensa¹ e outras semelhantes.
- É preciso, por conseguinte, suprimi-las como más, não só para os homens, mas também para aquelas mulheres que se gabam como sábias e moderadas.
- Totalmente de acordo.”
¹ Modalidades nascidas na Lídia, Ásia.
“- Quais são as harmonias moles e usadas nos banquetes?
- Algumas variedades da jônica e da lídia, consideradas harmonias relaxantes.
- Podem ser de algum uso para os guerreiros, meu querido?
- De forma alguma, restando, assim, apenas a dórica e a frígia para utilizar.
- Eu não conheço todas as espécies de harmonia; escolhe uma destas: uma forte, que traduza o tom e as expressões de um homem de coração, seja na peleja, seja em qualquer outra ação violenta, como quando, sem que o detenham as feridas nem a morte ou estando imerso na desgraça, espera, em tais ocasiões, com firmeza e sem se abater, pelos azares da fortuna; outra mais tranqüila, própria das ações pacíficas e completamente voluntárias de alguém que tenta convencer um outro de alguma coisa, com súplicas se é um deus, com advertências, se é um homem; ou que, ao contrário, se rende a suas súplicas, escuta suas lições e seus ditames, e que pelo menos nunca experimenta o menor contratempo, e que, enfim, longe de se envaidecer de seus triunfos, conduz-se com sabedoria e moderação e está sempre contente com sua sorte.”
“- Tampouco teremos necessidade de instrumentos de numerosas cordas nem da técnica pan-harmônica em nossos cantos e em nossa melodia, correto?
- Não, sem dúvida.
- Nem sustentaremos fabricantes de triângulos, de plectros¹ e outros instrumentos de cordas numerosas e de muitas harmonias?
- Não, ao que parece.
- Mas consentirias então em receber em nossa república os construtores e tocadores de flauta? Não equivale esse instrumento justamente aos que têm o maior número de cordas? E os que reproduzem todos os tons, são algo senão imitações da flauta?
- São equivalentes da flauta, com efeito.
- Assim, não nos restam mais que a lira e a cítara para a cidade, e para os campos o pífaro,² que será utilizada pelos pastores.
- É evidente, após tudo o que dissemos.
- Além do mais, meu querido amigo, não faremos nada extraordinário se dermos preferência a Apolo sobre Marsias,³ e aos instrumentos inventados por este deus aos do sátiro.
- Não, por Zeus!”
¹ Palheta
² Ou pife ou pífano. As principais fontes citam sua origem como indígena, ou pelo menos ligada a comunidades suíças do século XIV, portanto seria um instrumento da idade moderna apenas; mas, pela descrição de “siringa” no dicionário, trata-se virtualmente do mesmo objeto: uma flauta mais simples, feita de tubos de cana, bambus ou ossos ocos, e portanto muito antigo.
³ Entidade mitológica. Devido a sua presunção em julgar-se melhor músico que Apolo, recebe uma cruel punição divina (uma morte penosa).
“todas as medidas se reduzem a três tipos, assim como todas as harmonias resultam de quatro tons principais”
“Creio tê-lo ouvido falar algo confusamente acerca de certo metro composto que se chamava enoplio,¹ de um dátilo² e um heróico,³ e que se compunha, não sei como, igualando a parte tônica com a átona4 e terminando em sílabas longas ou breves; ademais, formava outro que se chamava iambo,5 creio eu, e não sei qual outro chamado troqueu,6 que se compunha de longas e breves.”
¹ A palavra parece existir só em italiano, celeiro precoce da música clássica; “enóplio” em Português é um inseto. Por falta de conhecimento em teoria musical, deixo no original, acrescentando o itálico que não havia na versão de Azcárate. Descreve o movimento rítmico que vai da sílaba breve à longa. Lembrando que, no contexto do diálogo platônico, não se trata só de música, mas algo mais amplo: pode se referir simplesmente à métrica utilizada por um poeta; normalmente o poeta se apresentava no teatro, ou um ator apresentava o poema escrito, sendo a voz humana, aliás, um instrumento musical em si, e dos mais complexos e versáteis.
² Uma sílaba longa + 2 breves; nesta ordem.
³ Normalmente associado a composições de versos decassílabos.
4 Ou “tonal e atonal”.
5 Sílaba átona  sílaba tônica
6 Sílaba tônica  sílaba átona (ou ainda “coreu”).
“o ritmo e a harmonia estão feitos para as palavras, e não as palavras para o ritmo e a harmonia.”
“- Não vês que os atletas passam a vida dormindo, e que, por pouco que se separem do regime que se lhes prescreve, contraem perigosas doenças?
- Já o observei.
- Necessitamos, pois, de um regime de vida mais flexível para os atletas guerreiros, que devem estar, como os cães, sempre alertas, ver tudo, ouvir tudo, mudar sem cessar, em campanha, de alimento e de bebida, sofrer frio e calor e, em conseqüência, ter um corpo à prova de todas as fadigas.
- Penso igual.”
“Em Homero mesmo pode-se aprendê-lo. Sabes que à mesa dos heróis nunca se servira peixe embora estivessem acampados no Helesponto, nem frituras, só carne assada, alimento cômodo para gente em guerra, a quem é mais fácil fazer fogo que levar consigo utensílios de cozinha.”
“-...as novas palavras <flatulência> e <catarro>.
- Decerto que estas palavras são novas e estrambóticas.
- E desconhecidas, na minha opinião, nos tempos de Asclépio.¹”
¹ Fundador mitológico da medicina.
MODERNIDADE: MELHOR VIVER DOENTE
“Que caia doente um carpinteiro, e verás como pede ao médico que lhe dê logo um vomitório ou um purgante ou, se for necessário, recorra ao ferro ou ao fogo. Mas se lhe prescreve um tratamento muito comprido, à base de gorrinho de lã para a cabeça e outras coisinhas que são moda, dirá bem pronto que não tem tempo para ficar de cama e que prefere morrer que renunciar a seu trabalho a fim de se ocupar do seu mal. Em seguida dispensará o médico e voltará a seu método ordinário de vida, com o qual ou recobrará a saúde cedo ou tarde, dedicado à labuta diária, ou, se o corpo não pode resistir à enfermidade, advirá a morte em seu auxílio e assim se livrará de preocupações.”
“- Em compensação, o rico, segundo se diz, não tem nenhuma classe de tarefas à qual não possa renunciar.
- Isso é o que dizem, ao menos.”
“Não é certo que o primeiro efeito da música é adoçar seu valor, da mesma forma que o fogo abranda o ferro, e afrouxa essa rigidez que antes o inutilizava e o fazia de difícil trato? Mas se se continua entregando a seu feitiço sem se conter, esse mesmo valor desaparece e se derrete pouco a pouco, cortados por assim dizer os nervos da alma” “Sé a alma é fogosa, pelo contrário, sua coragem, ao se debilitar, faz-se instável; o menor motivo a irrita ou acalma, e em vez de fogosa torna-se colérica, irascível, repleta de mau humor.”
“Vós que sois todos parte do Estado, vós – dir-lhes-ei, continuando a ficção – sois irmãos; mas o deus que os formou fez entrar o ouro na composição daqueles que estão destinados a governar os demais, e assim são os mais preciosos. Mesclou prata na formação dos auxiliares, e ferro e bronze na dos lavradores e demais artesãos. Como possuís todos uma origem comum, em que pese terdes, corriqueiramente, filhos que parecem-se convosco, poderá suceder, não obstante, que uma pessoa da raça de ouro tenha um filho da raça de prata, que outra da raça de prata dê a luz a um filho da raça de ouro, e que o mesmo suceda reciprocamente nas demais raças.” “há um oráculo que diz que perecerá a república quando for governada pelo ferro ou pelo bronze.”
“Que comam sentados em mesas comuns, e que vivam juntos como devem viver os guerreiros no campo. Que se lhes faça entender que os deuses colocaram em suas almas ouro e prata divina e, por isso, eles não têm necessidade do ouro e da prata dos homens; que não lhes é permitido manchar a posse deste ouro imortal com a do ouro terrestre; que o ouro que eles têm é puro, enquanto que o ouro dos homens foi em todos os tempos a origem de muitos crimes.”