História Pública e o Samba Enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira (2019)

No Carnaval carioca de 2019, sagrou-se campeã a tradicional Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que teve como samba enredo História pra ninar gente grande. Em trinta versos e seis estrofes, a História do Brasil é apresentada ao grande público de uma forma totalmente diferente do que ocorre tradicionalmente, isso em dois sentidos. O primeiro, da institucionalização do conhecimento histórico, por universidades ou institutos históricos e o surgimento e expansão da História Pública; O segundo, das abordagens, isto é, de uma corrente historiográfica que valoriza o cotidiano, as lutas populares, as classes menos abastadas. São esses dois pontos, dois sentidos, que devem permear a presente análise.

Nunca houve uma época em que se lesse tanto sobre História, nacional ou internacionalmente, como a atual. Os livros que figuram nas listas dos mais vendidos são de História. Historiadores são solicitados para promover palestras, encontros e debates. Programas de televisão, seriados e filmes sobre história tornaram-se sensação. Nos dizeres de Cícero, a História tornou-se mestra da vida na atualidade. Tal afirmativa pode ser constatada quando se percebe que o conhecimento histórico já não é mais produzido exclusivamente por historiadores profissionais, com ampla formação, ultrapassando os muros das universidades. Está no cerne dessas mudanças a História Pública, um campo de indefinições (método, abordagem, objeto de estudo) que começa a suscitar debates acalorados no Brasil.

A História Pública tem raízes nos Estados Unidos na década de 1970. O historiador norte-americano Robert Kelley, pioneiro no assunto, apresenta a História Pública, em 1978, da seguinte forma:

“Em seu sentido mais simples, História Pública se refere à atuação dos historiadores e do método histórico fora da academia: no governo, em corporações privadas, nos meios de comunicação, em sociedades históricas e museus, até mesmo em espaços privados. Os historiadores públicos estão atuando em todos os lugares, empregando suas habilidades profissionais, eles são parte do processo público. Uma questão precisa ser resolvida; uma política pública precisa ser elaborada; o uso de um recurso ou uma atividade precisa ser melhor planejada – eis que os historiadores serão convocados para trazer à baila a questão do tempo: isso é História Pública” (1).

Dessa forma, compreende-se que a História Pública, em suas origens, é vista como um conhecimento produzido fora das universidades por historiadores que buscam outros direcionamentos que não a carreira docente, mas a atuação em centros culturais, em empresas privadas e órgãos burocráticos. No entanto, como já pôde ser visto nos meios de comunicação, a história pública não é feita apenas por historiadores com formação acadêmica, como se refere Kelley. É comum ver jornalistas, advogados, pesquisadores independentes e autodidatas produzindo e divulgando textos sobre História geral e do Brasil.

Tal produção é vista, em parte, com ressalvas pelos historiadores profissionais, que temem pela simplificação do processo de pesquisa, pela ausência de métodos e discussões mais aprofundadas. Seria, de acordo com o historiador Bruno Flávio Lontra Fagundes, “aquela história que chega a públicos não-formados mas que tem pouco cuidado metodológico, feita de modo rápido e sem rigor” (2). Outros preferem vê-la como uma chance de popularizar o conhecimento. Fugindo dessa polarização e buscando um diálogo entre academia, grande público (especializado ou não) e demandas, as historiadoras Juniele Rabêlo de Almeida e Marta Gouveia de Oliveira Rovai, autoras de Introdução à História Pública, acreditam em

“uma possibilidade não apenas de conservação e divulgação da história, mas de construção de um conhecimento pluridisciplinar atento aos processos sociais, às suas mudanças e tensões. Num esforço colaborativo, ela pode valorizar o passado para além da academia; pode democratizar a história sem perder a seriedade ou o poder de análise. Nesse sentido, a história pública pode ser definida como um ato de “abrir portas e não de construir muros” (3).

O 1° Simpósio Internacional de História Pública: A História e seus públicos, ocorrido em 2012 na USP, foi bastante profícuo, com discussões sobre os problemas, apropriações, as possibilidades e a interdisciplinaridade que envolve a História Pública. Essa abordagem/método/objeto de estudo já se tornou o mais novo foco de problematizações e campo de pesquisas fértil para os historiadores brasileiros (4).

Exemplo ímpar dessa História Pública produzida a partir de conhecimento pluridisciplinar conectado às mudanças e colaborativo, anteriormente citado por Gouveia e Rovai, foi o samba enredo da escola de samba carioca Mangueira, História pra ninar gente grande, reproduzido abaixo:

“Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Dos brasis que se faz um país de Lecis, jamelões

São verde e rosa, as multidões

Mangueira, tira a poeira dos porões

Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Dos brasis que se faz um país de Lecis, jamelões

São verde e rosa, as multidões

Brasil, meu nego

Deixa eu te contar

A história que a história não conta

O avesso do mesmo lugar

Na luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato.

Brasil, o teu nome é Dandara

E a tua cara é de cariri

Não veio do céu

Nem das mãos de Isabel

A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julho

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Brasil, chegou a vez

De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês” (5)

Ao ler esse samba enredo fica mais do que evidente que trata-se de um texto sobre a História do Brasil com uma abordagem bastante diversa do que ocorre no ensino básico (fundamental e médio), valorizando, ao invés da trajetória política e os grandes personagens, o cotidiano, as minorias e classes populares, elementos esquecidos. Isso fica evidente na primeira estrofe, em que pede-se para que se tire “a poeira dos porões” e que seja aberto caminho para os “heróis de barracões”.

A seguir, a segunda estrofe sintetiza o sentido do enredo ao falar da “história que a história não conta”, marcada por lutas e resistência. A Mangueira trouxe “versos que o livro apagou”, rompendo com a ideia já superada de descobrimento, apresentando a violência da invasão portuguesa no século XVI, marcada pelo genocídio de índios e, posteriormente, negros. Ao citar as mulheres, os mulatos e os tamoios, clama por novos protagonismos. A força do povo e desses novos protagonistas é lembrada pelos exemplos de Dandara, mulher de Zumbi dos Palmares e guerreira do século XVII; e pela Confederação do Cariri (Kariri), movimento de resistência indígena ocorrido entre 1683 e 1713 na região Nordeste.

O fim da escravidão, com a abolição, também é revisitado. Tira-se do pedestal a figura redentora, quase divina, da Princesa Isabel e sua assinatura, sendo reforçado o papel do movimento abolicionista, das províncias de Norte a Sul. “A liberdade é um dragão no mar de Aracati”, referência a Francisco José do Nascimento (1839-1914), líder jangadeiro, prático mor e abolicionista conhecido como Dragão do Mar.

Por último, são lembrados grupos e pessoas que lutaram, resistiram e foram perseguidos, tais como os Caboclos de Julho, que participaram das lutas de Independência na Bahia; os militantes que lutaram contra a Ditadura Militar e, no tempo presente, a vereadora do PSOL Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018. No verso final, o protagonismo feminino e a revolução, lembrados pelas Marias (Maria Quitéria?); Luísa Mahin, ex-escrava e revolucionária do início do século XIX; Marielle Franco; e pela Revolta dos Malês, levante de escravos africanos muçulmanos ocorrido em Salvador, na Bahia, entre 24 e 25 de janeiro de 1835.

O samba enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira apresenta a História do Brasil a contrapelo, vista de baixo. Trata-se uma corrente historiográfica de origem inglesa que valoriza o papel das massas, das massas geralmente postas ou deixadas no anonimato. De acordo com o historiador inglês Jim Sharpe,

“essa perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores ansiosos por ampliar os limites de sua disciplina, abrir novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na principal corrente da história” (6).

Não apenas vencidos, mas de personagens que, a seu modo, encontraram formas de resistência aos poucos recuperadas. A historiadora Heloisa Starling, em entrevista, afirmou que o samba enredo da Mangueira reflete nossa atual conjuntura política e dúvidas acerca dos novos contextos em que vivemos, pois “A História é uma coisa muito viva. Você sempre viaja para o passado com as perguntas do presente. E as perguntas que ele está fazendo são questões de hoje, como a busca por mulheres que tiveram protagonismo no Brasil” (7).

Falar em História Pública e produção do conhecimento histórico extra muro é falar em apropriações, ressignificação de temporalidades e disputas. O samba enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira gerou fortes discussões e embates. O Círculo Monárquico do Rio de Janeiro publicou, antes da apresentação da escola, uma nota de repúdio ao samba enredo por este pretender levar a avenida “a imagem de Dona Isabel, a Redentora, manchada de sangue, em tom de culpabilidade pela escravidão” (8).

A produção, circulação e consumo do conhecimento histórico é marcada por embates, verdadeiras Guerras da História, nos dizeres do historiador Josep Fontana, pela transmissão ou não de versões que agradem dirigentes políticos e membros das elites. De acordo com Fontana, “[…] os debates a que se referem tem pouco a ver com a ciência e muito com o contexto político e social em que se movem os historiadores” (9).

O historiador, independente de suas visões de mundo, não dissocia sua produção da política. A própria “neutralidade” já é um direcionamento político. De um lado temos um grupo monárquico cuja concepção de história do Brasil é tradicional, feita por grandes personagens como a Princesa Isabel e formado, em sua maioria, por pessoas com conhecimento histórico autodidata. Do outro, um samba enredo que desconstrói essa história e apresenta algo mais popular e combativo ao grande público (especializado e não especializado). Ambos tem em comum o fato de serem frutos da História Pública, o que evidencia os debates e disputas no interior desse próprio método/abordagem/objeto de estudo que sem dúvidas veio para ficar.

NOTAS:

1 KELLEY, Robert Apud CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História Pública: uma breve bibliografia comentada. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-publica-biblio/. Publicado em 6 nov. 2017. Acesso em 14/03/2019.

2 FAGUNDES, Bruno Flávio Lontra. O que é, como e por que história pública? Algumas considerações sobre indefinições. VIII Congresso Internacional de História, XXII Semana de História, 9-11 outubro de 2017, p. 3021.

3 ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Introdução à História Pública. Florianópolis: Letra e Voz, 2011, p. 07.

4 Anais do 1° Simpósio Internacional de História Pública: A História e seus públicos. Textos Completos. USP, 16-20 de Julho de 2012.

5 Mangueira – Samba Enredo 2019. Disponível em: https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/. Acesso em: 15/03/2019.

6 SHARPE, Jim. A História vista de baixo. In: BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas perspectivas. Trad. Madga Lopes. São Paulo: Edunesp, 1992, p. 41.

7 Carnaval 2019: As histórias do ‘país que não está no retrato’ cantadas pelo samba da Mangueira. Disponível em: http://envolverde.cartacapital.com.br/carnaval-2019-as-historias-do-pais-que-nao-esta-no-retrato-cantadas-pelo-samba-da-mangueira/. Acesso em 16/03/2019.

8 Nota de Desagravo. Círculo Monárquico do Rio de Janeiro. Disponível em www.circulomarquicorio.org. Acesso em: 16/03/2019.

9 FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru SP: EDUSC, 2004, p. 379.